Reflexões sobre os novos paradigmas do século XXI
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Atualizado em 10 de novembro de 2025 13:31
O mundo contemporâneo, face à cultura de velocidade em nomear tudo como "novo", apresenta-se como verdadeira ruptura, sobretudo das estruturas, mas também como repetição de velhas promessas que, não raro, se cumprem às avessas.
Nunca tivemos tantos algoritmos a nos orientar (ou desorientar), e paradoxalmente, nunca estivemos tão perdidos. É como se a bússola da modernidade girasse em falso, sem norte magnético, condenada a apontar para todos os lados e para lado nenhum. O resultado é uma sensação de movimento constante. Ironicamente, o processo pouco nos desloca, como a dança circular de um pião que gira sem sair do lugar. Os desafios estruturais permanecem. Vejamos.
Nesse cenário, a política, a economia e a sociedade se reinventam em paradigmas que mais parecem simulacros do novo do que verdadeiras novidades. São anúncios da transformação radical, mas que, observados com atenção, lembram a amarga constatação de que o futuro deverá incluir a reencenação ampliada das velhas contradições da humanidade e, especificamente, de nosso país, o Brasil. Como numa peça trágica, os atores trocam as máscaras, mas o enredo permanece o mesmo: a luta pela dominação geopolítica e política, a angústia da desigualdade social, a fragilidade da democracia e a promessa, sempre adiada, de uma ordem racional, observados valores, digamos, aceitáveis.
A política, em particular, revela-se o palco mais instável dessa encenação. O que antes era chamado de "democracia liberal" tornou-se, nas últimas décadas, objeto de desconfiança. O "governo do povo", como proclamava a tradição ocidental desde Atenas, tornou-se suspeito não apenas para seus inimigos declarados - os modernos autocratas e déspotas - mas também para seus beneficiários. O paradoxo é cruel: cidadãos que desfrutaram dos valores das liberdades civis e direitos políticos agora duvidam de sua "utilidade", como herdeiros ingratos que questionam o valor da herança recebida. O Brasil, infelizmente, está ao meio desse cenário, quando a grande maioria esteja silenciosa.
Do ponto de vista de dados e informações, os relatórios internacionais mais recentes confirmam esse mal-estar: a série histórica do V-Dem Institute, em seu Democracy Report 2025, indica que o fenômeno da autocratização, outrora restrito a países periféricos, tornou-se endêmico no coração do Ocidente1. Já o relatório Freedom in the World 2025, publicado pela Freedom House, assinala o oitavo ano consecutivo de declínio global das liberdades, apontando que mais da metade da população mundial vive sob regimes considerados "não livres"2. O Global State of Democracy Report 2024, do International IDEA, acrescenta um dado particularmente perturbador: em cerca de 20% das eleições recentes, inclusas as de países centrais do capitalismo, os resultados foram contestados por perdedores, em clara erosão da confiança no processo eleitoral3. Vejam que Jair Messias Bolsonaro agiu nesse sentido e desde o início de seu mandato, em um contexto que não é isolado e que não desapareceu com o aparente ocaso do ex-presidente.
Ora, quando o voto deixa de ser "consenso mínimo", o que pode restar da democracia, não é mesmo? Se a regra básica do jogo é recusada, a partida inteira perde legitimidade intrínseca. Não é que o jogo se torne imprevisível: o jogo desaparece, substituído por uma lógica cujo destino é incerto.
A ascensão do populismo, tão comentada e, a meu ver, tão mal compreendida, insere-se nesse quadro. O famoso best-seller de Levitsky e Ziblatt, em How Democracies Die, mostram que a morte democrática raramente se dá por golpes espetaculares. O colapso é lento, sorrateiro, um processo de desgaste das normas informais que sustentam as instituições4. Yascha Mounk, em The People vs. Democracy, vai além: o populismo surge não apenas como "ameaça", mas como resposta a um "mal-estar real" - a sensação de que as democracias se tornaram prisioneiras de elites desconectadas das massas5. Aqui está a ironia, especialmente perigosa para o Brasil desigual: ao tentar curar o mal da distância entre governantes e governados, o populismo aprofunda essa mesma distância, convertendo a política em plebiscito permanente, uma espécie de teatro interativo em que o público aplaude e vaia, mas nunca realmente governa. Não foi o que ocorreu desde 2010 (pelo menos) por aqui? Esconder-se na ideia de que as "instituições são fortes" é um erro analítico grave. Basta ver os EUA nesse momento, cercado de riscos institucionais.
A variável política desse novo paradigma, portanto, é a erosão da legitimidade. Não se trata apenas da legitimidade do governante ou do partido no poder, mas da própria legitimidade do sistema democrático como forma de governo. A democracia já não é percebida como um meio legítimo, mas como um instrumento contingente, útil apenas enquanto garante prosperidade econômica e estabilidade social. No contexto atual, quando falha a democracia nesses quesitos, a tentação autocrática aparece como uma solução quase natural. É a velha tentação de trocar a liberdade pela segurança - embora, como sempre, ao final se perca ambas. Lembremos, na ditadura brasileira pós-1964, o binômio Segurança e Desenvolvimento.
Os dados corroboram essa tendência. O relatório Global Risks Report 2025, do World Economic Forum, aponta que a polarização política e a erosão da confiança institucional figuram entre os principais riscos globais para os próximos dez anos, ao lado da crise climática e das enormes transformações tecnológicas6. O curioso é que, mesmo diante dessa constatação, a resposta política parece ser justamente intensificar as práticas que nos trouxeram até aqui: maior concentração de poder econômico e político, menos transparência e mais hostilidade ao dissenso. A leitura diária da mídia brasileira e mundial reflete esse cenário.
Não é exagero dizer que a política se transformou em um campo de batalha simbólico, em que a desinformação ocupa lugar central. O estudo clássico de Vosoughi, Roy e Aral, publicado na revista Science, demonstrou que as notícias falsas circulam nas redes sociais com maior rapidez e alcance do que as verdadeiras7. Se a política é a arte de narrar o mundo em comum, então vivemos uma era em que essa narrativa se fragmenta em milhões de estilhaços contraditórios. A verdade já não é construída coletivamente. De fato, é customizada em pacotes digitais, servida sob medida a cada consumidor-eleitor. E, como em toda loja virtual, há sempre a possibilidade de "adicionar ao carrinho" a versão mais conveniente da realidade. A fragmentação é imensa, senão "líquida", nas palavras de Zygmunt Bauman.
O risco, aqui, como apontamos em outros artigos e ensaios, não é apenas a mentira em si, mas a destruição da esfera pública. Sem um espaço de debate comum, não há deliberação possível. Sem deliberação, a democracia torna-se mero ritual vazio, um formalismo que já não convence. O processo político converte-se em espetáculo, e os cidadãos, em plateia passiva. A democracia, que nasceu como ágora, transforma-se em feed de notícias, onde cada um assiste sozinho à sua própria versão da realidade. Tem mais: o ataque a democracia é fragmentado e intenso e a sua defesa é igualmente fragmentada e frágil, o que retroalimenta o processo.
Leia a coluna na íntegra.
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1 V-DEM INSTITUTE. Democracy Report 2025: Autocratization Turns 25. University of Gothenburg, 2025
2 FREEDOM HOUSE. Freedom in the World 2025: The Mounting Costs of Repression. Washington, D.C., 2025.
3 INTERNATIONAL IDEA. The Global State of Democracy 2024: The Age of "Winner-Takes-All" Politics. Stockholm, 2024.
4 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How Democracies Die. New York: Crown, 2018
5 MOUNK, Yascha. The People vs. Democracy: Why Our Freedom Is in Danger and How to Save It. Cambridge: Harvard University Press, 2018.
6 WORLD ECONOMIC FORUM. Global Risks Report 2025. Geneva, 2025.
7 VOSOUGHI, Soroush; ROY, Deb; ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. Science, v. 359, p. 1146-1151, 2018.

