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Legítimo e radical

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Atualizado em 8 de novembro de 2004 11:02

Francisco Petros*


Legítimo e radical


"Mais vale ser amado que temido, ou temido que amado?"
(Maquiavel)

Depois da batalha de Waterloo, o Duque de Wellington foi percorrer o campo de batalha no qual venceu Napoleão. Com ele cavalgava o seu ajudante de ordens. Pouco a pouco, Wellington foi constatando a carnificina produzida naquela decisiva batalha e emocionou-se em meio aos mortos e feridos. Virou-se então para o seu ajudante de ordens e disse: "não há nada tão terrível como a vitória, exceto a derrota".

A vitória de George W. Bush, nas eleições presidenciais ocorridas na semana passada nos EUA nos dá a oportunidade de parafrasear Wellington dizendo que a vitória de Bush senão terrível, nos parece trágica. Desta vitória pode-se discorrer sobre vários temas. Gostaria de me deter com brevidade na análise do caráter desta vitória à luz de dois aspectos: a sua legitimidade e aos riscos sucedâneos a obtenção desta legitimidade.

Do ponto de vista formal e legal, a vitória de Bush é incontestável. Venceu na contagem dos votos de todos os eleitores. Venceu no colégio eleitoral. Venceu obtendo a maioria no Senado e na Câmara dos Representantes. Venceu, portanto, obtendo a legitimidade oriunda da Vontade Geral, expressa na Lei. Como pregou Rousseau em Do Contrato Social, é da Lei que o governante obtém a legitimidade para o exercício do Poder.

Não obstante a grandiosidade da obra de Rousseau, a história nos ensinou que nem sempre a legitimidade "formal" encarrega o governante do cumprimento de um programa de governo legítimo. Pode faltar-lhe a "vocação" (Weber) requerida para que o político seja legítimo na liderança que leva às sociedades ao progresso. A eleição de Hitler em 1933, conquistada sob a égide constitucional, significou a maior tragédia do povo germânico. A Democracia não era um valor para aquele líder. Foi meramente um meio cujas conseqüências são por demais conhecidas.

Não creio que Bush possa ser comparado a Hitler. Nem as condições históricas se aproximam. De outro lado, a pergunta persiste. De que valerá a "legitimidade democrática" de Bush? Será um valor político supremo ou um meio para a consecução de um programa que divide o mundo, que traz suspeitas ao Estado laico, que implora o medo ao povo para que certas liberdades civis sejam vendidas como um prato de lentilhas?

Bush e a sua entourage encastelada na Casa Branca traíram a característica mais fascinante da democracia americana. Alexis de Tocqueville em "A Democracia na América" (escrita entre 1835-1840) fascinou-se pelo desenvolvimento político dos EUA, sobretudo pela Igualdade das Condições, forjada na Liberdade, este valor "tão íntimo e virtuoso" na alma da maior nação do Ocidente. Falava do livre-arbítrio, da capacidade moral dos homens em traçar os seus destinos e do sagrado encargo de cumprir os seus deveres. Reconhecia Tocqueville que os benefícios desta liberdade vêm com o tempo. Contudo, alertava que "a liberdade dá, de quando em quando, a um certo número de cidadãos (meu grifo), sublimes prazeres".

Bush, em nome da Liberdade, já deixou um legado e tanto. Nunca se viu a nação americana tão fascinada pela idéia de segurança, a tornar suspeitos os homens que viajam à América ou nela moram, que retiram sapatos nos aeroportos, que se deixam fotografar e serem fichados, enfim, que possam ter as suas vidas vasculhadas e, assim, submetidos os seus direitos ao dever supremo da segurança. A América já foi vítima surpresa em Pearl Harbor. As marcas de 11 de setembro não são mais profundas que as do Vietnã ou a decisiva Segunda Guerra Mundial. Sob Bush, a América transformou-se em uma nação com políticas unilaterais, uma marca que jamais os EUA registraram na sua política externa. Outrora, foi isolacionista (J.Monroe) ou multilateralista (Roosevelt). Unilateralista, nunca foi! Legado de Bush.

Bush violou todas as leis e práticas internacionais para invadir o Iraque e "libertá-lo do jugo de Saddam Hussein para tornar a América mais segura". A ideologia da "Liberdade e a Segurança", o dueto de uma doutrina conhecida, inclusive neste continente em que moramos. Adicionou a "presunção" como estratégia de ataque. Vendeu-a como "prevenção". Se esta doutrina vier a se espalhar pelo mundo, teremos a política como extensão da guerra. O contrário daquilo que acreditava Carl Von Clausevitz. O fim do processo civilizatório na política internacional, a diplomacia.

Bush abandonou todos os acordos em relação ao meio-ambiente (sobretudo o Acordo de Kioto) como se a Terra pertencesse aos Big Businesses. Pregou que a tecnologia nos libertará do aquecimento global. Pairam dúvidas científicas sobre o tema, enquanto sobram discursos do cowboy do Texas.

Na economia, Bush gerou o maior déficit fiscal da história (em relação ao PIB), bem como a menor taxa de poupança desde os anos 30. O orçamento militar dos EUA é hoje semelhante ao do período da Guerra Fria (sem os custos do Iraque e Afeganistão, algo em torno de US$ 500 bilhões; com os custos do Iraque e Afeganistão cerca de US$ 750 bilhões). Eis o aparato militar para "espalhar a democracia ao redor do mundo".

Foi este o Presidente que se tornou "legítimo" a partir dos votos depositados pelos eleitores norte-americanos na semana passada que o reelegeram.

A conquista da maioria no Senado e na Câmara dos Representantes neste novo mandato abre espaço para o aprofundamento do projeto mais radical da história dos Estados Unidos da América.

Bush poderá tornar a Suprema Corte dos EUA (vitalícia) o resguardo destas políticas radicais. (Não são conservadoras, favor não confundir!). Deverá substituir Alan Greenspan no Federal Reserve por alguém mais afável aos seus déficits orçamentários. Poderá privatizar ou mesmo acabar com todo o aparato de Welfare State (serviços de saúde básicos e previdência social universal) construído desde a Grande Depressão nos anos 30. Facilitará, ainda mais, todas as restrições ambientais e tentará reduzir o impacto das leis e regras de responsabilidade social das empresas. No âmbito externo, nada deve mudar. Mudará o protagonista do Departamento de Estado. Sai Colin Powell e, finalmente, Condoleezza Rice exercerá de direito aquilo que já exerce de facto. Consolida-se o ideário do "Imperialismo Democrático".

Montesquieu no seu famoso "Espírito das Leis" ensinou-nos que os legisladores devem ter o espírito de moderação. Para ele o bem moral, assim como o bem político, sempre se encontra entre dois limites. Ou seja, a composição das leis não deve ter traços a mais, senão os que levam à Justiça. Identificar os limites da Lei é a arte do equilíbrio.

Prezados leitores: não sabemos se estamos diante de um novo paradigma político após a eleição de George W. Bush na semana passada. Todavia, seria ingênuo pensarmos que ocorreu apenas uma eleição na maior nação do mundo.

Na Casa Branca, vive um homem que provou que não é moderado, não compreende os limites entre os valores morais e políticos e cujo equilíbrio nas decisões é duvidoso. Não subestimemos, contudo, a sua extraordinária capacidade de criar graves desequilíbrios.

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* Economista e pós-graduado em Finanças. Foi Vice-Presidente e Presidente (1999-2002) da APIMEC - Associação Brasileira dos Analistas e Profissionais do Mercado de Capitais (São Paulo).







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