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Quando até o passado pode ser incerto - A tributação do terço de férias

terça-feira, 27 de abril de 2021

Atualizado às 08:35

No Brasil, infelizmente os Tribunais Superiores ainda não produzem, como seria desejável, jurisprudência uniformizada e estável. Ao contrário, é muito comum que, em relação a muitos temas, a jurisprudência seja instável, isto é, que haja mudança frequente de orientação sobre muitos assuntos. Não se trata da mudança jurisprudencial saudável e desejável, cujo objetivo é adaptar o direito às alterações sociais, já que estas ocorrem em décadas e, às vezes, até mesmo em séculos. Trata-se, isto sim, de alterações geradas pela mudança da "composição humana" dos Tribunais e, até mesmo, infelizmente, pela mudança de opinião dos Ministros. O sábio legislador de 2015, sabendo disso, criou o instituto da modulação, que tem por objetivo neutralizar o choque que uma mudança radical e repentina de posição de um Tribunal Superior pode gerar na sociedade. A modulação é um instituto que permite aos Tribunais Superiores e, também, a outros Tribunais, em circunstâncias especiais, postergar os efeitos de uma mudança brusca de orientação, de modo a que estes atinjam exclusivamente os fatos ocorridos depois de dita alteração.

A modulação deve ocorrer justamente quando a alteração de orientação dos Tribunais ocorre em campos do direito em que, de rigor, essa mudança não deveria ocorrer, que são searas do direito em que os princípios da segurança jurídica e da previsibilidade são tratados de modo muito especial, já que são relevantes para a possibilidade que deve ser assegurada ao jurisdicionado no sentido de planejar a sua conduta. Nestes campos do direito se encaixa, perfeitamente, o direito tributário.

Tudo o que se disse, portanto, se relaciona intimamente a um assunto extremamente atual, que diz respeito ao julgamento da tese jurídica relativa à tributação, pela contribuição social previdenciária, do adicional de 1/3 de férias.

Já há uma decisão tomada pelo STJ no regime dos recursos repetitivos em 2014 (REsp 1.230.957 - RS), no sentido de que não se deve tributar esse adicional pago pelo empregador. Decidiu o STJ, naquela ocasião, que o 1/3 relativo às férias indenizadas não poderia ser alvo do tributo em questão por expressa vedação legal1; e no que concerne ao adicional atinente às férias usufruídas, firmou-se tese no sentido de que  a referida verba "...possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa)" (Tema 479 dos recursos especiais repetitivos).

Convém sublinhar que essa orientação foi firmada em consonância com jurisprudência do STF relativa ao tema. Veja-se, por exemplo, o AgR no RE 587.941/SC, de relatoria do Ministro Celso de Mello (de 2008): "O Supremo Tribunal Federal, em sucessivos julgamentos, firmou entendimento no sentido da não incidência de contribuição social sobre o adicional de um terço (1/3), a que se refere o art. 7º, XVII, da Constituição Federal. Precedentes"2-3.

Tratando-se de precedente vinculante (do STJ), obviamente foi imediatamente aplicado.

Entretanto, o tema foi novamente submetido à apreciação do STF por intermédio do RE 1.072.485/PR (Rel. Ministro Marco Aurélio), que originou o Tema 985 da repercussão geral, e, dessa vez, o STF decidiu em sentido contrário à sua própria jurisprudência e à tese firmada pelo STJ por ocasião do julgamento do recurso especial repetitivo de 2014.  Por maioria de votos (vencido o Ministro Edson Fachin), decidiu o Supremo Tribunal Federal que "É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias"4.

Contra esse acórdão foram opostos cinco embargos de declaração, sendo que em quatro deles houve pedido de modulação temporal dos efeitos da decisão do STF5.

O julgamento destes embargos declaratórios chegou a ser iniciado no plenário virtual. A votação quanto à modulação estava apertada: cinco votos a quatro para os contribuintes, faltando apenas as manifestações dos Ministros Luiz Fux e Nunes Marques. Foi então que o Ministro Fux, Presidente do Supremo Tribunal Federal, interrompeu o julgamento, determinando que o feito fosse deslocado do plenário virtual para o presencial, que acontece atualmente por videoconferência. Com esse movimento, os votos que foram proferidos durante o julgamento no plenário virtual praticamente deixaram de existir, podendo os Ministros que já votaram votar novamente, e em sentido diferente.

Este é um típico caso que, a nós, parece evidente ter de haver modulação. A modulação deve ocorrer sempre a favor do particular, nos casos em que o Estado está envolvido, pois, do contrário, se estaria prejudicando o particular duplamente.

O Estado existe para dar tranquilidade ao particular, que não pode ser surpreendido com a mudança das regras no meio da partida. Alteração de orientação de um Tribunal, quando a nova orientação prejudica o indivíduo, deve ser aplicada apenas prospectivamente, nunca retroativamente. O fato de um Tribunal alterar sua orientação, repentinamente, num curto espaço de tempo, consiste, por si só, num venire contra factum proprium, correspondendo, portanto, a uma conduta de má-fé objetiva; e o particular, evidentemente, deve ser poupado dos efeitos negativos deste modo de agir.  Dessa forma, quando a nova posição prejudica o particular, aí sim é que não pode deixar de haver modulação.

A modulação, como se disse, deixou de ser o instituto cuja utilização é absolutamente excepcional.

Essa figura surgiu no direito brasileiro pela primeira vez na lei 9.868/1999 que diz respeito ao controle concentrado de constitucionalidade. Naquele momento histórico, estava-se diante de uma hipótese absolutamente excepcional: só se podiam modular os efeitos de decisões de procedência de ações em que se pleiteava uma declaração, com efeito erga omnes, no sentido de que uma lei, ou uma certa interpretação de lei, não se compatibilizariam com a Constituição Federal, com o fim  de proteger aquele que confiou no sistema, ou seja, aquele que agiu de acordo com a lei que, presumivelmente, era constitucional até que houvesse uma decisão dizendo o contrário.

Atualmente, esse mesmo instituto também está no CPC (art. 927, § 3º), e igualmente tem em vista a proteção da confiança do jurisdicionado, que agiu em conformidade com o direito em vigor no momento de sua conduta.

Sabe-se que o direito em vigor não se limita à lei: na verdade, o direito em vigor é a lei, interpretada, num dado momento histórico, pelos Tribunais mais relevantes do Poder Judiciário; portanto,  alguém que agiu em conformidade com a orientação que prevalecia nos Tribunais Superiores a respeito do sentido de determinada regra jurídica não pode ser prejudicado por uma decisão que acaba tendo efeitos, por assim dizer, retroativos. Transpondo o que ora se afirma para o direito tributário: quando não se modula, se considera inadimplente o contribuinte que, ao não pagar o tributo, agiu em estrita observância do direito vigente à época. Ocorre que o sistema jurídico não autoriza esse tipo de situação: a esse respeito dispõem com clareza os dispositivos recentemente acrescentados à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (arts. 22 a 24).

Portanto, nos parece inafastável a necessidade de que haja modulação, com o objetivo de não prejudicar o particular e, sobretudo, no caso concreto, de não causar um injusto impacto negativo na vida das empresas.

Acrescente-se que, justamente em função da circunstância de não se tratar mais de um instituto tão excepcional quanto podia ser utilizado (lembrando que era admitido apenas no controle concentrado), não tem sentido se pensar, na atualidade, em quorum qualificado. Na verdade, o quorum exigido para decidir a respeito da modulação é o mesmo exigido para a decisão a respeito de dever, ou não dever, haver alteração do entendimento anterior. E mais: mesmo aqueles que ficaram vencidos no que diz respeito à mudança, ou seja, aqueles que entenderam que a orientação não deveria se modificar, porque ficaram vencidos, devem, necessariamente, votar quanto à modulação. É exatamente a mesma coisa que acontece quando se julga uma apelação: os desembargadores que ficaram vencidos na preliminar, devem votar quanto ao mérito.

Espera-se, portanto, que em nome da necessidade de se preservar a segurança jurídica, o julgamento seja em breve retomado, e que se decida pela modulação para proteger a confiança que teve o jurisdicionado na pauta de conduta anterior.

__________

1 Lei 8.212/91 - art. 28, §9º, "d" (redação dada pela lei 9.528/97).

2 AgR RE 587.941 AgR, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 22.11.2008.

3 Em 2007: AgR no AI 603.537, Rel. Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJe 30.03.2007, com destaque ao seguinte trecho da ementa: "CONTRIBUIÇÃO SOCIAL INCIDENTE SOBRE O TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS. IMPOSSIBILIDADE"). Em 2009: AgR no AI 710.361, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 08.05.2009, em que na ementa se fez constar a "IMPOSSIBILIDADE DA INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE O TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS". Também em 2009: AgR no AI 712.880, Rel. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 19.06.2009, merecendo destaque a seguinte passagem da ementa: "CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. INCIDÊNCIA SOBRE TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS. IMPOSSIBILIDADE".

4 Reconheceu-se a constitucionalidade da tributação do adicional incidente sobre o 1/3 de férias relativos às férias usufruídas pelo empregado, tendo sido ressalvada da incidência da contribuição a parcela concernente às férias indenizadas, conforme se fez constar no voto condutor do acórdão: "A exceção corre à conta do adicional relativo às férias indenizadas. Nesse sentido, presente a natureza indenizatória, há disposição legal expressa na primeira parte da alínea 'd' do § 9º do artigo 28 da lei 8.212/1991" (Voto do Ministro Marco Aurélio). A mesma ressalva foi feita no voto proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes: "Quanto ao terço constitucional de férias indenizadas, há expressa disposição legal (Lei 8.212/1991) excluindo a verba da incidência da contribuição previdenciária, dado seu caráter indenizatório".

5 Requereram a modulação: (1) Sollo Sul Insumos Agrícolas Ltda., que é parte no processo; (2) Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (amicus curiae); (3) Associação Brasileira de Advocacia Tributária - "ABAT" (amicus curiae); e (4) Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário ("IBDP"), (amicus curiae). Apenas a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil - CSPB (5), que pediu seu ingresso no feito como amicus curiae, não fez o pedido de modulação.