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O Direito Sucessório da pessoa concebida por meio de técnicas de inseminação artificial post mortem - Parte I

terça-feira, 16 de junho de 2015

Atualizado às 08:57

É fato que nos salta aos olhos que os avanços científicos e tecnológicos crescem em progressão. Uma enciclopédia que há poucos anos precisava de anos para ser confeccionada, hoje, com as mesmas informações, pode ser produzida em dias. No campo do biodireito, que envolve questões de bioética e biomedicina, o crescente desenvolvimento não é diferente.

É nítido o impacto social, econômico e jurídico advindo das descobertas biomédicas em matéria de reprodução e fertilização, intra e extracorpóreas. Em 1978, a técnica da reprodução assistida1, que já havia sido realizada em animais, passou a ser aplicada em seres humanos. O sucesso do procedimento não tardou a surtir efeito. Em 1980, na Austrália, por exemplo, cento e três casais optaram pela fertilização extrauterina2.

Em pouco tempo, as técnicas de fertilização in vitro, cada vez mais aperfeiçoadas, foram difundidas pelo mundo a fim de garantir a reprodução de casais nas mais diversas situações. Hoje, essas técnicas viabilizam a reprodução em casos de esterilidade, possibilitam a seleção eugênica e permitem que as partes optem pela fertilização in vitro com gestação por "barriga de aluguel" (prestadora de serviços de gravidez).

No Brasil, o planejamento familiar é de livre decisão do casal e o Estado deve propiciar recursos científicos para o exercício desses direitos. Portanto, a reprodução - quer natural ou artificial - passa a ser um direito fundamental3 , inerente à liberdade e ao planejamento familiar.

Contudo, a adoção de técnica conceptiva não é plena ou ilimitada4, o que significa que existe controle. Um casal que goza de todas as condições econômicas e plenas de saúde não pode optar por uma inseminação heteróloga extra uterina e contratar uma terceira para o exercício da gestação.

Nessa linha de raciocínio, somente é permitida essa forma de fertilização nos casos clinicamente comprovados de problemas reprodutivos com um ou ambos os parceiros, tais como esterilidade ou risco de transmitir ao filho doenças hereditárias, desde que o procedimento seja cientificamente aceito e não haja risco à vida e à saúde dos participantes, conforme dispõe o artigo 9º da lei 9.263/965.

Além da restrição acima mencionada, o Código de Ética Médica e Resoluções do Conselho Federal de Medicina limitam os poderes e direitos das partes quanto ao exercício da concepção e da gestação, havendo assim um dirigismo jurídico e ético. Nesse contexto a resolução 1.957/10 do Conselho Federal de Medicina a qual estabelece diretrizes e princípios para médicos e instituições no tocante à fertilização in vitro.

Antes de analisarmos os questionamentos jurídico-normativos, faz-se imperiosa a análise dos métodos6 de inseminação artificial. A fertilização pode ocorrer dentro ou fora do corpo da mulher, in vivo ou in vitro.

No que diz respeito ao procedimento in vivo, cuja ocorrência é no corpo da mulher, na medida em que foi inserido o gameta masculino, a concepção ocorre na cavidade uterina. Já a fertilização in vitro, por sua vez, caracteriza-se pela realização de um procedimento externo, realizado em laboratório, com material genético da própria ou de terceiros.

Quanto à origem dos gametas, a fertilização in vitro ou in vivo pode ainda ser homóloga, caso sejam utilizados gametas do casal interessado, o que para o CC deve ser marido e mulher7, ou heteróloga, se pelo menos um dos gametas provier de um terceiro doador8.

Um dos principais objetivos da fertilização in vitro homóloga é garantir ao casal a plena fertilidade, a possibilidade de prole - inclusive com grande probabilidade de conceber gêmeos - fundamentalmente em situações em que por enfermidade ou acidente haja impossibilidade ou risco à geração de prole9. De toda sorte, essas técnicas acabam assegurando ao casal a geração de descendentes naturais e biológicos.

A fertilização, além de efetivar a dignidade da pessoa humana para aqueles que manifestam vontade procriacional, tem como normativa básica a resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina10. A bem da verdade, essa resolução disciplina a inseminação heteróloga, ou seja, para mulheres solteiras, em caso do material advir de doadores necessariamente desconhecidos. Cumpre salientar, inclusive, que o Brasil não admite a escolha fenotípica, como regra.

Dessa forma, se o Conselho Federal garante inseminação heteróloga, pode-se deduzir ser permitida também a homóloga na qual o material é do próprio marido11. Ainda que não haja menção expressa na normativa do CRM, não haveria razão para a proibição do uso de material genético advindo do marido com sua autorização.

O princípio reinante em matéria de inseminação é o da vontade procriacional. Isso significa que se cônjuges inférteis desejem procriar, é permitida a fecundação do óvulo12 e a inseminação em uma mulher.

Questão que se mostra pertinente diz respeito à regulação jurídica e à segurança notadamente quando o tema é inseminação artificial post mortem. Como resguardar tanto o direito dos descendentes vivos ou já concebidos e do outro direito de embriões, de um lado, que possam eventualmente ser implantados em útero e resulta em nascimento com vida após a morte do pai.

Primeiramente, deve-se ter expressa a vontade de ter um filho após a morte, requisito da resolução 1.358/92. Com isso, tem-se que a vontade de procriar post mortem é válida e a manifestação da pessoa nesse sentido deve ser efetivada13. Pois bem, com a manifestação expressa de vontade, bem como com a morte da pessoa, realiza-se a transferência de bens14, conforme especialmente o artigo 1.787 do CC, o qual regula a sucessão, permitindo os herdeiros legítimos ou testamentários incorporarem os bens do de cujus por força do princípio da saisine15 .

Identificados os requisitos para a abertura da sucessão, qual sejam morte do titular; existência de bens suscetíveis; existência de legitimados passivos, na qualidade de nascidos vivos e nascituros, questiona-se: e os embriões ainda não concebidos?

No caso do embrião, o mesmo encontra-se abarcado pelo artigo 1.845 do CC16, combinado com o artigo 1.798, inc. I do CC, ou seja, os "já concebidos", no momento da abertura da sucessão. Isso significa que o embrião não é filho eventual, é filho já concebido, porém não nascituro caso esteja in vitro. É considerado herdeiro legítimo na medida em que é descendente do de cujus. Possui capacidade sucessória e legal com base no supracitado artigo, porém está, da mesma forma que a filiação eventual, a necessitar do efetivo nascimento com vida para recepcionar os bens.

O embrião, neste caso, é capaz? Há neste ponto uma primeira dificuldade jurídica, pois a capacidade sucessória é diferente da capacidade civil. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, a capacidade sucessória é a "acepção estrita de aptidão da pessoa para receber os bens deixados pelo falecido"17. O embrião se enquadra nessa caracterização?

A capacidade sucessória do nascituro está sujeita ao seu nascimento com vida. Cumpre indagar, contudo, se um embrião que ainda sequer foi implantado no útero materno também é titular desse direito. O CC/02 sabiamente não apenas deu resposta a essa questão tão dificultosa, como também estabeleceu certos limites. Consoante, dispõe o artigo 1.799 do referido Código, "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão".

Assim, o embrião está abarcado no pressuposto fático da norma por já ter sido concebido. Persiste, contudo, a dúvida quanto ao status jurídico do concepturo, isto é, aquele que ainda não foi concebido, mas para cuja concepção post mortem do genitor existe material genético disponível e viável.

Retomando o que foi exposto, o embrião está no artigo 1.798, pois já concebido, portanto tem capacidade legítima. Porém, não há que se descartar de estar também no artigo 1.799, inciso I posto ser filho eventual na medida em que não foi implantado no útero materno.

Acerca dessa vexata quaestio, a doutrina divide-se. De um lado, há autores que não reconhecem direito algum ao concepturo, seja em matéria de família ou sucessão. Essa vertente doutrinária parece ter sido superada18. De outro lado, há quem não admita a sucessão legítima, mas reconheça a filiação de modo a salvaguardar o direito ao nome. Existe ainda uma terceira corrente, segundo a qual o filho gerado nessas condições tem amplos direitos, sucessórios inclusive.

É imperioso deixar claro que o embrião in vitro não é concepturo, na medida em que o concepturo é aquele que vai ser concebido no futuro, ou seja, uma ficção criada pelo direito para salvaguardar o testador, sendo, portanto, o filho eventual de alguém (Artigo 1.799, inciso I).

O embrião in vitro também não é nascituro, na medida em que não está em desenvolvimento celular. Portanto, o embrião rigorosamente não está no artigo 1.798 de forma plena, posto que mesmo já na situação de concebido, não está em desenvolvimento celular. É um filho eventual, na medida em que houve concepção, restando necessária sua desenvoltura celular em progressão.

Qual, portanto, é a condição jurídica do embrião in vitro?

No próximo Registralhas discutiremos as possibilidades e adentraremos outras questões referentes à inseminação post mortem. Até lá!

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1 Texto disponível in https://www.ghente.org/temas/reproducao/art_fiv.htm [02-01-2015].
2
https://veja.abril.com.br/noticia/saude/nascidos-por-reproducao-assistida-chegam-a-5-milhoes/ [02-01-2015]
3 Artigo 226, parágrafo 7º da Constituição Federal de 1988.
4 Cf. NOGUEIRA, Guilherme Calmon, A Nova Filiação: O Biodireito e As Relações Parentais - Estabelecimento da Parentalidade-Filiação e os Efeitos Jurídicos da Reprodução Humana Assistida Heteróloga, Rio de Janeiro, Renovar, 2003 pp. 636.
5 Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996.
6 Cf. DINIZ, Maria Helena, O Estado Atual do Biodireito, São Paulo, Saraiva, 2014 pp. 475
7 Artigo 1.597, inciso III do Código Civil de 2002.
8 Art. 1.597, inciso V do Código Civil de 2002.
9 Para o Código Civil, a reprodução homóloga tem por objetivo a presunção petir, 1597, III
10 BRASIL, Artigo 1º, Capítulo II, Resolução n. 1358/92.
11 "Qui plus potest, potest minus".
12 Trata-se de fecundação homóloga.
13 Cf. AGUIAR Mônica, Direito à Filiação e Bioética, Rio de Janeiro, Forense, 2005, pp. 117.
14 Cf. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário, Instituições do Direito Civil - Direito das Sucessões, vol. VI, 2012, pp. 17.
15 Droit de Saisine, princípio francês segundo o qual a transmissão de herança do de cujus é automática e imediata aos seus sucessores.
16 "Artigo1.845. "São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge". Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002 [Código Civil de 2002, ou CC/2002].
17 Cf. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário, Instituições do Direito Civil - Direito das Sucessões, vol. VI, 2012, pp. 30.
18 Consoante doutrina de Maria Helena Diniz e Silvio Venosa.


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*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.