COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
O vocábulo "interino" invoca a ideia de transitoriedade no exercício de função ou cargo. No âmbito da atividade notarial e registral, a concepção de interino identifica aquele provisoriamente responsável pela delegação de notas e registro, em período de vacância da unidade, até o seu ulterior preenchimento via concurso público. A figura do interino foi inicialmente regulamentada pela Resolução nº 80/2009 do CNJ, que disciplina a vacância das serventias irregularmente outorgadas. A referida normativa, além de uniformizar, em nível nacional, os critérios para apuração da situação jurídica da serventia e sua respectiva vacância, serviu como instrumento moralizador e de aplicação imediata pelos Tribunais Estaduais. No art. 1º, caput, a Res. CNJ nº 80/2009 é declarada a vacância dos serviços notariais e de registro cujos então responsáveis não tenham sido investidos por meio de concurso público de provas e títulos específico para a outorga de delegações de notas e de registro, na forma da CF/1988. As funções do interino somente são exercidas durante o tempo em que a delegação vagou e ainda não foi outorgado e investido o novo titular com atribuição de fé pública pelo Estado. A interinidade finda com a assunção da respectiva unidade pelo novo delegado (art. 3º da Res. CNJ 80/2009). A figura do interino surge para compatibilizar duas exigências constitucionais: a) a exigência de aprovação em concurso público para a outorga da delegação de notas e registro; b) A proibição a que qualquer unidade fique vaga, sem abertura de concurso, por mais de seis meses (prazo reforçado pelo art. 67 do CNN) e vedação à manutenção da vacância por tempo indeterminado; O interino permite a continuidade do funcionamento do serviço vago enquanto não ocorrer o efetivo provimento por titular concursado. Tem natureza jurídica de forma heterodoxa e precária de reversão do serviço ao Poder Público, excepcionando temporariamente o caráter privado do exercício dos serviços notariais e de registro (STF, MS 28959 - DF). Em 2024, o Provimento n. 176, de 23.7.2024 promoveu uma série de alterações e inclusões no CNN, regulamentando de maneira mais minuciosa a interinidade. O art. 71-F reafirma a natureza do interino, indicando que ele, seja substituto ou delegatário, atua como preposto do Estado, devendo se submeter diretamente aos princípios da Administração Pública e ao regime de direito público. A interinidade não confere ao interino qualquer direito adquirido à unidade, nem faz jus às mesmas prerrogativas do titular concursado. Antes da CF/1988, o art. 208 da CF/1967 previa que os substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial tinham direito à efetivação no cargo de titular quando ocorresse a vacância, desde que contassem com cinco anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983. Porém, este dispositivo não foi replicado na nova ordem constitucional, que exige a realização de concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro (STF, RMS nº 46.377). Logo, inexiste um direito subjetivo do substituto legal à interinidade. A nomeação constitui dever da autoridade encarregada pela fiscalização do serviço vago. Sendo uma função baseada na relação de confiança com o órgão designante, pode ser revogada a qualquer tempo se houver quebra dessa confiança (arts. 71-T do CNN). A natureza jurídica provisória e precária da interinidade também reflete no exercício do gerenciamento da serventia. O interino desenvolve a função com limitações normativas de gerência, não exercendo, de forma plena, a gestão administrativa da unidade. Essa gerência deve ocorrer de forma a manter a eficiência do serviço, sem onerar a unidade ou assumir compromissos futuros que vinculem o titular a ser futuramente investido (v. art. 3º, § 4º, da Res. CNJ nº 80/2009). Tanto que o Provimento nº 176 inseriu uma série de regras de relacionadas ao exercício da interinidade, principalmente no que tange aos aspectos trabalhistas. Para garantir uma administração eficaz durante a interinidade, as Corregedoras-gerais das Justiças dos Estados e do Distrito Federal devem elaborar um Plano de Gestão. Deve o interino prestar contas da regularidade dos atos praticados, sob pena de caracterização de quebra de confiança (arts. 71-F do CNN/). Nessa linha, os direitos e privilégios inerentes à delegação, inclusive a renda obtida com o serviço, pertencem ao Poder Público. Inclusive, o STF já se posicionou no sentido de que o interino, por não atuar como delegado do serviço notarial e registral, não preenchendo os requisitos constitucionais para tanto (art. 236, § 3º) age como preposto do Poder Público. Consequentemente, deve submeter-se ao teto remuneratório constitucional (Tese de repercussão geral - Tema 7791. A questão da incidência do teto remuneratório ao interino foi diretamente endereçada no âmbito do CNNcujo art. 71-H, caput, incluído pelo Provimento n. 1762 assim dispõe: Ainda, o § 1º do dispositivo permitiu uma limitação estadual a esse teto3. Quanto à destinação dos valores eventualmente excedentes, devem ser repassados ao Tribunal de Justiça respectivo. Conforme o art. 67, caput, do CNN, a designação do interino caberá à Corregedoria-Geral das Justiças dos Estados e do Distrito Federal ou ao juiz competente, se assim dispuser os atos normativos locais. Contudo, a designação do interino tornou-se mais complexa. O STF estabeleceu uma diferenciação entre a situação de substituição temporária e de substituição prolongada por outro titular de serventia extrajudicial. A primeira hipótese diria respeito à substituição por período, ou seja, à hipótese em que o substituto assume a condução da serventia durante o prazo de até 6 meses, durante o qual impõe-se a realização de concurso público para efetivo provimento da delegação. Nesse caso, o interino não é delegatário do serviço público, de modo que se aplicam todas as limitações apontadas, especialmente o teto remuneratório constitucional. A segunda hipótese, por outro lado, diria respeito à substituição ininterrupta, ou seja, à hipótese em que a interinidade deve ser prolongar por mais de 6 meses. Quanto a essa situação, o STF entendeu, no julgamento da ADI 1183/DF, em 21/06/2021, que embora o art. 20 da lei 8.935/1994 seja constitucional, não pode ser interpretado de modo a admitir que "prepostos, indicados pelo titular ou mesmo pelos tribunais de justiça, possam exercer substituições ininterruptas por períodos maiores de que 6 (seis) meses." Nesse caso, de "longas substituições", segundo a Corte, é imprescindível que o "substituto" seja outro notário ou registrador, observadas as leis locais de organização do serviço notarial e registral, e sem prejuízo da abertura do concurso público respectivo. O Tribunal, por maioria, conheceu da ação direta e julgou parcialmente procedente o pedido formulado, apenas para declarar inconstitucional a interpretação que extraia do art. 20 da lei 8.935/94 a possibilidade de que prepostos (não concursados), indicados pelo titular ou mesmo pelos tribunais de justiça, possam exercer substituições ininterruptas por períodos maiores de que 6 (seis) meses. Declarou, ainda, que, para essas longas substituições (maiores que 6 meses), a solução constitucionalmente válida é a indicação, como "substituto", de outro notário ou registrador, observadas as leis locais de organização do serviço notarial e registral, ressalvada a possibilidade de os tribunais de justiça indicarem substitutos "ad hoc", quando não houver interessados, entre os titulares concursados, que aceitem a substituição, sem prejuízo da imediata abertura de concurso público para preenchimento da(s) vaga(s). Por fim, reconheceu a plena constitucionalidade dos arts. 39, II, e 48 da lei 8.935/94. Tudo nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio, que julgava procedente, em parte, o pedido, para conferir interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 20, cabeça e parágrafos 1º a 4º, da lei 8.935/1994, a fim de assentar a substituição eventual, por preposto indicado pelo titular, do notário ou registrador. Plenário, Sessão Virtual de 28.5.2021 a 7.6.2021. Ou seja, no caso de substituições por períodos que excedam o limite de 6 meses, entendeu a Corte que a função de interino deve obrigatoriamente ser exercida por outro notário ou registrador. Esse entendimento foi reforçado com a superveniência do Provimento n. 176/2024, que inseriu no CNN/CN/CNJ-Extra regra expressa prevendo que ultrapassado o prazo de 6 meses, a substituição deve ser realizada por outro notário ou registrador concursado, e o concurso público para provimento da vaga deve ser realizado imediatamente (art. 69). Por fim, as hipóteses de revogação da designação do interino estão atualmente previstas no art. 71-F ao CNN. Essa revogação é feita de forma discricionária, mediante decisão motivada e individualizada, sem a necessidade de um processo administrativo que assegure ampla defesa e contraditório (art. 71-T). A revogação da designação do interino é decorrência da quebra de confiança, já que é a confiança depositada no interino que sustenta a manutenção do seu vínculo com o Estado. Se você quiser se aprofundar nos estudos sobre a interinidade, conheça o curso coordenado academicamente por Vitor Kümpel. Voltaremos com novos comentários; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 "Os substitutos ou interinos designados para o exercício de função delegada não se equiparam aos titulares de serventias extrajudiciais, visto não atenderem aos requisitos estabelecidos nos arts. 37, inciso II, e 236, § 3º, da Constituição Federal para o provimento originário da função, inserindo-se na categoria dos agentes estatais, razão pela qual se aplica a eles o teto remuneratório do art. 37, inciso XI, da Carta da República" 2 "Art. 71-H. Durante o exercício da interinidade, o interino será remunerado como agente do Estado e preposto do Poder Judiciário e fará jus apenas ao recebimento da remuneração correspondente, no máximo, a 90,25% (noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) dos subsídios de ministro do Supremo Tribunal Federal, ainda que esteja no exercício de múltiplas interinidades. (incluído pelo Provimento n. 176, de 23.7.2024)." 3 "Art. 71-H. § 1º Norma da Corregedoria-Geral das Justiças dos Estados e do Distrito Federal poderá limitar a remuneração do interino em valor inferior ao limite de que trata o caput deste artigo, levando em consideração a renda da serventia e a natureza do serviço, contudo, em valor nunca inferior àquele fixado para o Programa de Renda Mínima na respectiva unidade da federação. (incluído pelo Provimento n. 176, de 23.7.2024)."
O inventário e a partilha são procedimentos essenciais para formalizar a transmissão de bens deixados pelo falecido (de cujus) aos seus herdeiros, cumprindo-se o que dispõe o Código Civil brasileiro (arts. 1.991 a 2.027) e o CPC (arts. 610 a 673). Apesar de a transmissão de bens ocorrer no momento da morte, o inventário é necessário para identificar e descrever os bens, realizar a partilha entre meeiro e sucessores, e assegurar a devida regularização patrimonial.1 O termo "inventário" refere-se, em sentido estrito, ao ato de listar os bens deixados pelo falecido para transmissão aos herdeiros. Em um contexto mais amplo, significa todo o processo de apuração e distribuição desses bens, incluindo o pagamento de eventuais dívidas, para que o patrimônio líquido seja partilhado entre os sucessores.2 Embora a transferência de propriedade ocorra automaticamente com a morte (conforme o art. 1.784 do Código Civil3-Princípio da Saisine-), é necessário formalizar essa transmissão por meio do inventário, que define ativos e passivos, possibilitando a quitação de débitos e a partilha entre os herdeiros. Assim, com a abertura da sucessão, os bens são transferidos de maneira unificada e indivisível, cabendo ao inventário dividir esse patrimônio entre os herdeiros. Antes da promulgação da lei 11.441/07, que alterou o art. 982 do antigo CPC4, o inventário era realizado exclusivamente pela via judicial, sem a possibilidade de intervenção do tabelião na transmissão mortis causa. Com a entrada em vigor da lei 11.441/07, o inventário passou a poder ser realizado tanto judicialmente quanto extrajudicialmente, opção mantida pelo atual CPC. Assim, o processo de apuração e partilha do patrimônio pode ocorrer em juízo ou mediante escritura pública, desde que todos os herdeiros sejam maiores e capazes, e que o falecido não tenha deixado testamento. Essa legislação trouxe à atividade notarial uma nova atribuição, considerada mais ágil e segura, ao desonerar o Judiciário de casos de transmissão sem conflito entre as partes. O inventário extrajudicial, portanto, é realizado no tabelionato escolhido pelos herdeiros e apura o ativo e passivo da herança, com vistas à divisão do patrimônio líquido entre os sucessores, sendo um meio eficaz e menos custoso para a partilha. O procedimento está regulamentado pelo CPC e pela resolução 35/07 do CNJ, além de normas complementares emitidas pelas Corregedorias Estaduais para a atividade notarial. Nesse sentido, a autorização legal para realizar inventário extrajudicial demandou ajustes nos serviços de cartórios, implementados por normas das corregedorias gerais de justiça estaduais e por órgãos federais, especialmente o CNJ. Esse tema foi regulamentado pela resolução CNJ 35, de 24/4/07, posteriormente alterada pela resolução CNJ 326, de 26/6/20. Essa normativa define os procedimentos, exigências e condições para a realização de inventários por escritura pública, além de tratar de escrituras de separação e divórcio. Outra atualização importante ocorreu com a resolução CNJ 452, de 28/4/22, que incluiu os parágrafos 1º, 2º e 3º ao art. 11 da resolução 35, permitindo que "o meeiro e os herdeiros possam, em escritura pública anterior à partilha ou adjudicação, designar um inventariante." Essa designação visa capacitar o inventariante a "representar o espólio para obter informações bancárias e fiscais necessárias à conclusão de negócios essenciais ao inventário e ao recolhimento de impostos e emolumentos relacionados ao processo". A nomeação marca "o início formal do inventário extrajudicial", evitando que um atraso na abertura do inventário gere complicações fiscais para os herdeiros.5 Por fim, outra importante modificação realizada na resolução 35 foi a publicação da resolução 571 em 27/8/24 pelo CNJ, em resposta a um pedido feito pelo IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, permitindo que divórcios e inventários sejam realizados de forma extrajudicial, mesmo nos casos que envolvem filhos menores ou testamentos. A escritura de inventário e partilha é facultativa, não excluindo o direito de recorrer ao Judiciário, mesmo com a opção extrajudicial disponível. A escolha pela via judicial ou extrajudicial é uma prerrogativa dos interessados, conforme art. 2º da resolução 35/07, sendo vedado que ambos os procedimentos ocorram simultaneamente para garantir a segurança jurídica. Além disso, a data do óbito não é um impedimento para a lavratura da escritura, pois a lei 11.441/07 tem aplicação imediata. Inventários podem ser realizados por escritura pública mesmo que a morte tenha ocorrido antes de 5/1/07. No contexto do inventário extrajudicial, um dos requisitos fundamentais era a plena capacidade civil das partes envolvidas. Conforme dispõe o § 1º do art. 610 do CPC, o procedimento extrajudicial para inventário e partilha requeria que o cônjuge ou companheiro sobrevivente, os herdeiros e seus respectivos cônjuges fossem plenamente capazes; do contrário, o inventário deveria ser conduzido exclusivamente pela via judicial. Essa regra admitia a exceção de herdeiros emancipados, uma vez que, conforme o parágrafo único do art. 5º do Código Civil, a emancipação atribuía capacidade civil plena, permitindo, assim, o trâmite extrajudicial. Ainda, a partir da leitura do §2º do art. 610 do CPC, é possível extrair duas ideias, quais sejam: Haverá a necessidade de inventário judicial sempre que houver testamento, ainda que os herdeiros sejam capazes e concordes; ou por uma interpretação sistemática e teleológica, haverá a necessidade de inventário judicial sempre que houver testamento, salvo quando os herdeiros sejam capazes e concordes. Mediante solicitação do interessado e a apresentação da certidão de óbito emitida pelo Registro Civil de Pessoas Naturais competente, as informações sobre testamentos podem ser consultadas pela CENSEC, através do módulo do RCTO - Registro Central de Testamentos OnLine. Este sistema centraliza dados sobre testamentos públicos e aprovações de testamentos cerrados em todo o território nacional. Desde o provimento 56/16 do CNJ, tornou-se obrigatório anexar a certidão que comprova a inexistência de testamento do falecido em processos de inventário e partilha judicial, bem como em escrituras de inventário extrajudicial. As normas do Estado de São Paulo, com o provimento 37/16, passaram a autorizar o inventário extrajudicial quando houver expressa autorização do juízo sucessório nos autos de abertura e cumprimento de testamento, desde que todos os herdeiros sejam capazes e estejam de acordo.6 O parecer 133/16-E embasou o provimento 37/16 e destacou o enunciado 600 da VII Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília sob a coordenação do ministro Ruy Rosado de Aguiar, que estabelece: "Após a homologação judicial do testamento, com todos os interessados sendo capazes e concordes com seus termos, sem conflitos de interesse, é permitido realizar o inventário extrajudicialmente". Em julgamento do REsp 1.808.767/RJ7, ocorrido em 15/10/19, a 4ª Turma do STJ, sob a presidência do ministro Luis Felipe Salomão, analisou a possibilidade de inventário extrajudicial quando há um testamento válido. A Corte decidiu, de forma unânime, que o inventário extrajudicial é viável mesmo em casos com testamento, desde que este esteja registrado judicialmente ou autorizado por um juiz competente, e desde que todos os envolvidos sejam capazes, concordem e estejam assistidos por advogados. Inicialmente, o inventário havia sido aberto judicialmente, mas os interessados solicitaram a transferência para a via extrajudicial, o que foi recusado em primeira instância e confirmado pelo TJ/RJ, com base no art. 610 do CPC/15, que requer inventário judicial na presença de testamento. Ao recorrer ao STJ, os herdeiros argumentaram que o § 1º do art. 610 permite uma exceção ao caput, uma vez que autoriza o inventário extrajudicial quando os herdeiros são capazes e concordam. O relator aceitou essa interpretação, considerando o § 1º uma exceção que permite o inventário extrajudicial em casos com testamento, desde que cumpridos os requisitos de capacidade e concordância. Ele destacou que a legislação incentiva o inventário extrajudicial para simplificar o processo e reduzir custos e burocracia, conforme artigos da LINDB e do CPC. Além disso, ressaltou que, quando todos os herdeiros são maiores, capazes e concordam com a partilha, não há necessidade de judicialização para validar um testamento já reconhecido judicialmente. De acordo com o ponto de vista exposto, a restrição da via judicial para o inventário quando há um herdeiro incapaz tem como objetivo proteger os mais vulneráveis. No entanto, a proteção ao incapaz não deveria necessariamente obrigar o inventário judicial como única via, pois essa modalidade é, de fato, a que mais pode prejudicar o herdeiro vulnerável, na medida em que pode precisar de sua parte na herança para suprir suas necessidades básicas. Impor o processo judicial nesses casos equivale a penalizar quem já está em situação de desvantagem, o que não seria a medida mais apropriada. Ressalte-se que o Ministério Público desempenha um papel fundamental na defesa dos interesses dos incapazes e, portanto, deve fiscalizar o inventário - seja judicial ou extrajudicial. Se o incapaz estiver sendo lesado, o Ministério Público pode intervir, levando a questão ao Judiciário para proteger seus direitos.8 Uniformizando os procedimentos a serem adotados, o art. 12-A da resolução 35/07, incluído pela resolução 571/24 passa a permitir que o inventário ou partilha seja realizado por escritura pública ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento de seu quinhão ou meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público. Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público. (incluído pela resolução 571, de 26/8/24) Conforme o § 1º do art. 12-A incluído da resolução 571, é proibida a realização de atos que disponham sobre os bens ou direitos de herdeiros menores ou incapazes no inventário extrajudicial. A proibição busca evitar que o patrimônio desses herdeiros seja comprometido sem a devida proteção judicial, assegurando que nenhuma decisão que envolva a alienação ou modificação de seus direitos seja tomada fora dos parâmetros legais. Essa medida preserva o patrimônio do incapaz até que haja uma manifestação apropriada de tutela ou curadoria. Ainda, o § 2º do mesmo artigo acrescenta que, caso o falecido tenha deixado um herdeiro ainda não nascido (nascituro), a conclusão do inventário extrajudicial deverá aguardar o registro do nascimento, confirmando a filiação, ou a comprovação de que o nascituro não nasceu com vida. Essa previsão garante que o inventário extrajudicial contemple todos os herdeiros de forma adequada, inclusive o nascituro, evitando que direitos sejam omitidos ou subestimados durante o processo de inventário. A espera pelo registro de nascimento do nascituro assegura que o processo seja finalizado de maneira justa e completa, sem prejuízo aos herdeiros. Por sua vez, o § 3º exige que a escritura pública de inventário, nos casos que envolvem herdeiros menores ou incapazes, tenha eficácia condicionada a uma manifestação favorável do Ministério Público. O tabelião de notas deve encaminhar a documentação ao Ministério Público para análise e parecer. Por fim, caso o Ministério Público ou um terceiro interessado apresente impugnação ao procedimento, o inventário deverá ser remetido ao juízo competente para apreciação. Essa medida é uma salvaguarda adicional, pois possibilita que o Judiciário intervenha caso surjam dúvidas ou discordâncias relevantes que possam comprometer a lisura do inventário extrajudicial. Ao remeter o processo ao juízo competente, a resolução reforça o compromisso com a proteção dos interesses dos incapazes, permitindo que questões controversas sejam resolvidas judicialmente, garantindo a justiça e transparência. Ao tornar o processo mais célere e menos burocrático, a resolução 571 do CNJ contribui para reduzir o impacto financeiro e emocional sobre herdeiros incapazes e suas famílias, ao mesmo tempo em que garante a devida proteção ao patrimônio. Essas mudanças promovem uma integração mais eficaz entre segurança jurídica e celeridade processual, mostrando-se como uma solução moderna e equilibrada para o inventário com incapazes. Sejam felizes! _________ 1 E. OLIVEIRA, S. AMORIM. Inventário e Partilha: Teoria e Prática, 28ª ed., São Paulo, Saraiva, 2024.  2 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Tabelionato de Notas, v.3., 2ª ed., São Paulo, YK, 2022. 3 Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. 4 Art. 982. Proceder-se-á ao inventário judicial, ainda que todas as partes sejam capazes. § 1º Se capazes todos os herdeiros, podem, porém, fazer o inventário e a partilha por acordo extrajudicial. 5 E. OLIVEIRA, S. AMORIM. Inventário e Partilha: Teoria e Prática, 28ª ed., São Paulo, Saraiva, 2024.  6 Item 130, Cap. XVI, das NSCGJSP. 7 RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. SUCESSÕES. EXISTÊNCIA DE TESTAMENTO. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE OS INTERESSADOS SEJAM MAIORES, CAPAZES E CONCORDES, DEVIDAMENTE ACOMPANHADOS DE SEUS ADVOGADOS. ENTENDIMENTO DOS ENUNCIADOS 600 DA VII JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CJF; 77 DA I JORNADA SOBRE PREVENÇÃO E SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS; 51 DA I JORNADA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DO CJF; E 16 DO IBDFAM. 1. Segundo o art. 610 do CPC/2015 (art. 982 do CPC/73), em havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. Em exceção ao caput, o § 1° estabelece, sem restrição, que, se todos os interessados forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. 2. O Código Civil, por sua vez, autoriza expressamente, independentemente da existência de testamento, que, "se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz" (art. 2.015). Por outro lado, determina que "será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz" (art. 2.016) - bastará, nesses casos, a homologação judicial posterior do acordado, nos termos do art. 659 do CPC. 3. Assim, de uma leitura sistemática do caput e do § 1° do art. 610 do CPC/2015, c/c os arts. 2.015 e 2.016 do CC/2002, mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente. 4. A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes. Deveras, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça. 5. Na hipótese, quanto à parte disponível da herança, verifica-se que todos os herdeiros são maiores, com interesses harmoniosos e concordes, devidamente representados por advogado. Ademais, não há maiores complexidades decorrentes do testamento. Tanto a Fazenda estadual como o Ministério Público atuante junto ao Tribunal local concordaram com a medida. Somado a isso, o testamento público, outorgado em 2/3/2010 e lavrado no 18° Ofício de Notas da Comarca da Capital, foi devidamente aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões. 6. Recurso especial provido. (Min. Rel. Luis Felipe Salomão, j. 15.10.2019., Dj. 03/12/2019). 8 I.F.L.B Lôbo Cavalcanti, É possível proceder ao inventário extrajudicial com herdeiro incapaz?, disponível aqui.
A separação de fato, embora não dissolva formalmente o vínculo matrimonial, é uma realidade que afeta diretamente os direitos e deveres dos cônjuges no ordenamento jurídico brasileiro. Esse conceito ganhou relevância, especialmente após as alterações legislativas decorrentes da EC 66/10, que simplificou o processo de divórcio. A separação de fato não caracteriza um estado civil formal, mas sim uma convivência complexa entre a condição oficial de casado e a realidade prática de separação. Apesar de o estado civil ser modificado, em regra, por meio de um ato público, isso não impede o reconhecimento da posse de estado como elemento que pode corrigir a ausência de formalidade. Esse conceito tem sido amplamente utilizado nas relações familiares, especialmente no que se refere à filiação socioafetiva (posse de estado de filho) e à união de duas pessoas com o objetivo de constituir uma família, configurando uma união estável.1 Nesse sentido, a separação de fato, ou informal, ocorre quando o casal decide interromper a convivência como parceiros, ainda que possam continuar a compartilhar a mesma residência. Ainda que vivendo sob o mesmo teto, passam a manter vidas separadas, sem objetivos comuns ou intimidade. Trata-se de uma situação em que o casal, embora casado formalmente, opta por seguir caminhos individuais, sem a interferência de um sobre o outro. Essa separação pode ser uma etapa prévia à antiga separação judicial ou extrajudicial, ou ao divórcio propriamente dito. Para muitos, é um momento de reflexão e amadurecimento antes da dissolução definitiva do casamento; para outros, pode ser um período de conflitos que, eventualmente, leva a uma reconciliação.2 No ordenamento jurídico brasileiro, a posse de estado de cônjuge se manifesta na união estável, que é reconhecida constitucionalmente como uma entidade familiar (art. 226, §3º, CF/88). De modo inverso, também pode-se considerar a posse de estado de separado, embora a separação de fato não receba a mesma regulamentação detalhada que a união estável. Nesse contexto, assim como nem todos os efeitos do casamento se aplicam à união estável, os efeitos da separação judicial ou extrajudicial não podem ser automaticamente atribuídos à separação de fato. Conforme dispõe CAMPOS3, "A cessação do dever de coabitação, ou melhor, a cessação da vida em comum, tenha ela ocorrido por abandono unilateral do lar conjugal ou por acordo mútuo entre as partes, não constitui elemento essencial da separação de fato. Muito importante para a sua caracterização é a presença do outro elemento, qual seja, o elemento psicológico, volitivo, o desejo de realmente acabar com a vida em comum." Dessa forma, para a autora, independentemente de qual for a classificação que se dê a separação de fato, isto é, seja ela amigável ou não, o elemento intencional a acompanhar a cessação da vida em comum é fundamental. Chega-se, assim, a conclusão de que a separação de fato "é o estado em que se encontram os cônjuges que, sem qualquer homologação por tribunal competente, decidem quebrar o dever de coabitação de modo intencional e permanente, podendo esta decisão partir somente de um dos cônjuges ou de ambas as partes". Dadas as definições, DO VAL4 entende que a separação de fato pressupõe dois elementos inter-dependentes: objetivo e subjetivo. O aspecto objetivo consiste na cessação material da coabitação entre os cônjuges, se concretizando com o afastamento de um dos consortes do domicílio conjugal, no entanto, a autora enfatiza que  "ambos os cônjuges podem continuar a viver no mesmo imóvel, embora inexistindo a referida coabitação. (...) pode-se reconhecer a separação de fato quando, não obstante a permanência dos cônjuges sob o mesmo teto, se acerta que é terminado, de modo inequívoco e total, o diálogo de amor, se estima, de confidência e de colaboração e que a comunhão espiritual e material sofreu um definitivo e irreversível fracionamento".  Por sua vez, o elemento subjetivo externa-se pela intenção concretizada de extinguir a comunhão conjugal, isto é, trata-se do "animus" unilateral ou bilateral dos cônjuges em terminar a vida em comum. No Brasil Colônia e no Império, o casamento era visto como um sacramento indissolúvel, refletindo a influência da igreja católica. Com a Proclamação da República em 1889 e a separação entre igreja e Estado, houve uma mudança significativa no reconhecimento do casamento civil, mas a dissolução do vínculo matrimonial ainda não era permitida, exceto em casos extremos e com limitações. Embora a convivência entre os cônjuges seja requisito fundamental no Direito Canônico, segundo São Tomás de Aquino, são dois os casos em que há essa tolerância por parte da igreja: havendo fornicação, por autoridade própria, ou com autorização da igreja.5 Até a segunda parte do século XX, o desquite era a única forma de dissolução da convivência, não rompendo o vínculo matrimonial e, portanto, impossibilitando o recasamento. A separação de fato, por outro lado, ocorria informalmente, sem reconhecimento jurídico, e, em muitos casos, era estigmatizada. A separação de fato começou a ser reconhecida gradualmente após a promulgação da "lei do divórcio" (lei 6.515/77). Essa lei trouxe a possibilidade do divórcio como forma de dissolver definitivamente o casamento, mas exigia, inicialmente, que o casal estivesse separado judicialmente por, pelo menos, um ano, ou separado de fato por dois anos, para que o divórcio pudesse ser requerido.6 Esse dispositivo deu visibilidade à separação de fato, pois passou a ser um requisito para o divórcio direto. A separação de fato foi, então, pela primeira vez reconhecida pela legislação como um elemento importante na dinâmica do casamento, embora não tivesse efeitos automáticos no estado civil dos cônjuges. A CF/88 trouxe mudanças significativas no direito de família, consolidando o direito ao divórcio e a proteção das diversas formas de constituição familiar, incluindo a união estável. A separação de fato permaneceu relevante, pois continuou a ser um requisito para a obtenção do divórcio direto. Com a nova Constituição Federal, o conceito de família foi ampliado, garantindo a proteção a diversos arranjos familiares. Nesse contexto, a separação de fato também se tornou uma possibilidade de livre escolha para os cônjuges, que podiam decidir romper a convivência sem a necessidade de intervenção judicial imediata. O foco passou a ser na autonomia dos cônjuges e no respeito às suas decisões pessoais. A EC 66, promulgada em 2010, representou um marco para o Direito de Família brasileiro ao eliminar a necessidade da separação judicial como pré-requisito para o divórcio. Com isso, o divórcio passou a ser direto, sem exigir um período prévio de separação formalizada judicialmente ou a comprovação de separação de fato, modificando substancialmente o §6º do art. 226 da CF/88.7 Essa mudança impactou diretamente o papel da separação de fato, que deixou de ser uma etapa obrigatória para a dissolução do casamento. No entanto, ela continuou relevante para definir o fim da convivência e para determinar questões patrimoniais, como a cessação da comunhão de bens. A separação de fato passou a ser vista como uma escolha pessoal, não mais vinculada a formalidades ou à necessidade de ser declarada para fins de divórcio. Assim, mesmo sendo casado, é possível estabelecer uma união estável com outra pessoa, desde que esteja separado de fato, podendo essa união ser formalizada por meio 6 Art. 40. No caso de separação de fato, e desde que completados 2 anos consecutivos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual deverá ser comprovado decurso do tempo da separação. (Redação dada pela lei 7.841, de 1989) 7 Vide MAHUAD, Cássio, Separação judicial e a EC 66/10 de escritura pública. Nesse caso, em razão de um dos envolvidos ainda ser casado, o regime de bens aplicado será o de separação obrigatória, e a referida união estável não poderá ser registrada no RCPN. A lei 11.441/07 introduziu o art. 1.124-A no CPC de 1973, inaugurando a possibilidade de separação e divórcio extrajudicial consensual por escritura pública, desde que não houvesse filhos incapazes, representando um importante avanço ao simplificar e agilizar o processo. Além de permitir a dissolução da sociedade conjugal, a lei estendeu essa possibilidade ao divórcio consensual. O CNJ regulamentou esse procedimento por meio da resolução 35/07, uniformizando sua aplicação. O CPC de 20158 manteve a restrição da escritura pública para casais sem filhos incapazes, e incluiu explicitamente a palavra "nascituro".9 Ressalte-se que a resolução 571/24 alterou a resolução 25/07, de forma que os divórcios consensuais poderão ser realizados em cartório ainda que envolvam herdeiros com menos de 18 anos de idade ou incapazes, de forma que a parte referente à guarda, à visitação e aos alimentos destes deverá ser solucionada previamente no âmbito judicial. A separação de fato e a separação judicial têm pontos em comum, como o fim da sociedade conjugal e a cessação dos deveres de coabitação, fidelidade e regime de bens. Ambas permitem a formação de uma nova união estável sem caracterizar concubinato. Ambas encerram a sociedade conjugal, mas mantêm o vínculo matrimonial. A separação de corpos, por sua vez, é uma medida cautelar para preparar ações como nulidade, anulação, divórcio ou dissolução de união estável. O SF, em 08 de agosto de 2023, julgou o tema 1.053 da repercussão geral (RE 1.167.478) e estabeleceu a seguinte tese: "Após a promulgação da EC 66/10, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF)". Na realidade, os casais que não admitem o divórcio, por questões religiosas ou de ordem pessoal, ficaram desamparados diante da decisão limitativa do STF, que interpretou de forma oblíqua o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio objetiva ampliar os institutos de registro civil, garantindo ao cidadão a resolução de seus anseios e necessidades pessoais, e não os constranger a se adaptar a uma realidade uniforme projetada para todo o conjunto social. A separação de fato passou a ser a solução imediata para o problema criado pelo tema 1.053, conforme o art. 1.723, § 1º do CC, que garante aos separados a possibilidade de constituir uma união estável. O grande problema dos separados de fato é que eles não conseguem registrar a referida união sem determinação judicial. Destaca-se que, em virtude da resolução 571/24, que alterou a resolução 35/07, as escrituras públicas de declaração de separação de fato passaram a ser consideradas títulos aptos tanto para o registro civil quanto para o registro imobiliário, possibilitando a transferência de bens e direitos, bem como a efetivação de todos os atos necessários para a concretização dessas transferências e o levantamento de valores. Assim, a separação de fato passa a constituir um estado civil passível de registro no RCPN, substituindo integralmente a separação judicial. O art. 88 do decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, previa que o divórcio não dissolvia o vínculo conjugal, mas permitia a separação indefinida de corpos e a extinção do regime de bens. Dessa maneira, resgata-se o efeito da separação de fato, agora consagrado como um estado civil registrável. Portanto, a separação de fato comprovada cessa o regime de bens, encerra o dever de fidelidade e a obrigatoriedade de vida em comum entre os cônjuges. A partir da separação de fato, os bens adquiridos por cada cônjuge são considerados particulares, e não mais comuns. De comum acordo, eles devem declarar sua intenção de separação perante o notário, que formalizará o fim do casamento com a autoridade que lhe é conferida. A documentação resultante, incluindo a cópia autenticada e a certidão, servirá como evidência da data da separação, os efeitos legais e a disposição dos bens dos ex- cônjuges, e será reconhecida como prova perante terceiros. Conforme entende NERY e NERY: "Separação de corpos consensual. Escritura pública. Admissibilidade. A lei silencia quanto à medida preventiva consensual de separação de corpos por escritura pública. Tendo em vista que a lei permite o mais, que é a própria separação consensual por escritura pública, com o rompimento da sociedade conjugal e do dever de coabitação -, a fortiori podem os cônjuges o menos, que é impor restrições, por vontade conjunta, ao dever de coabitação, podendo fazê-lo por escritura pública. É conveniente que nessa escritura se estabeleça prazo de duração dessa separação de corpos consensual, quer para que os cônjuges possam meditar melhor acerca de possível e futura separação, quer para prevenir consequências que lhes possam advir da separação de fato (v. CC 1580, caput, e §2º). Para manter-se a mesma lógica do sistema, os cônjuges devem fazer- se assistir de advogados ou de advogado comum, para que seja regular a escritura pública de separação de corpos consensual".10 A escritura pública pode ser utilizada como alternativa à via judicial para formalizar a separação física dos cônjuges. No entanto, é necessário que ambos os cônjuges estejam de acordo com a separação e com os termos estabelecidos na escritura. Essa solução é mais rápida e menos onerosa do que um processo judicial. Uma escritura de separação de corpos deve conter cláusulas claras e detalhadas, de modo a evitar conflitos futuros. Além da identificação das partes, as cláusulas podem contemplar a motivação da separação, o regime de bens, a guarda dos filhos, a prestação de alimentos, o uso do nome de casado, a utilização da residência e a divisão das despesas comuns. No que se refere à averbação dessa escritura no RCPN, conforme decisões administrativas já proferidas (2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo - Pedido de Providências: 1031479- 53.2021.8.26.0100, j. 23/03/22, DJe 23/03/22, e Processo 1118504-12.2018.8.26.0100, DJe/SP 13/02/19), tal averbação não seria possível à margem do assento. No entanto, por decisão jurisdicional que entenda não haver incompatibilidade entre o tema 1.053 e a mencionada escritura, a prática do ato no RCPN, com caráter definitivo, poderá ser realizada por meio de alvará ou mandado judicial. Caso os cônjuges optem por restabelecer a sociedade conjugal, uma nova escritura será suficiente para o cancelamento da averbação da separação. Importante destacar que a resolução 571/24, que alterou a resolução 35/07, trouxe expressamente a possibilidade de registro da escritura pública de separação de corpos tanto no RCPN quanto no RI.11 A evolução histórica da separação de fato no Brasil reflete as mudanças sociais e jurídicas na concepção das relações conjugais e do direito de família. Desde os tempos em que a separação era um tabu e não havia qualquer reconhecimento legal, até os avanços possibilitados pela lei do divórcio de 1977, pela CF/88 e pela EC 66/2010, a separação de fato passou a ter um papel significativo na dinâmica dos casamentos. Sejam felizes! ________ 1 RITO, Fernanda Paes Leme Peyneau, disponível aqui. 2 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1997.   3 CAMPOS, Maria Cristina Borges de Lara, "Conseqüências jurídicas da Separação de fato no Direito Brasileiro", 1987, Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da USP.   4 DO VAL, Silvia Soares De Mello. Separação de fato: efeitos pessoais e patrimoniais entre cônjuges. Dissertação (Mestrado em Direito), 1994.   5 Cf. MASDEU, Luis Zanon, apud CAMPOS, Maria Cristina Borges de Lara, "Conseqüências jurídicas da Separação de fato no Direito Brasileiro", 1987, Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da USP. "Verdade é que a igreja, não obstante a linha de conduta adotada autoriza, em determinadas circunstâncias, a separação por autoridade própria e com caráter perpétuo (nos casos de adultério ou se preenchidas as circunstâncias do Canon 1129 - em caso de adultério pode o cônjuge inocente despedir ou abandonar o cônjuge adúltero).   6 Art. 40. No caso de separação de fato, e desde que completados 2 (dois) anos consecutivos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual deverá ser comprovado decurso do tempo da separação. (Redação dada pela Lei  7.841, de 1989)   7 Vide MAHUAD, Cássio, Separação judicial e a Emenda Constitucional 66/2010, disponível aqui.    8 Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731 .   § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.   § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.   9 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Tabelionato de Notas, v.3, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022.   10 NERY JR. Nelson. Andrade Nery, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.   11 Art. 3º As escrituras públicas de inventário e partilha, divórcio, declaração de separação de fato e extinção da união estável consensuais não dependem de homologação judicial e são títulos hábeis para o registro civil e o registro imobiliário, para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil das Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas etc.)
Retomamos os comentários à proposta de reforma do Código Civil, desta vez direcionando nosso enfoque ao direito de família, com ênfase especial na questão patrimonial. Neste artigo, analisaremos o regime de bens e as possibilidades trazidas pelos pactos conjugais ou convivenciais. A reforma propõe inovações significativas nesse campo, visando proporcionar maior flexibilidade e autonomia às partes envolvidas, sempre respeitando os princípios fundamentais do ordenamento jurídico. Exploraremos as implicações dessas mudanças, destacando como elas podem influenciar a dinâmica das relações familiares e a gestão patrimonial dos cônjuges e companheiros. O regime de bens é um componente essencial do direito de família, exercendo impacto direto sobre a administração patrimonial de cônjuges ou companheiros. O propósito deste artigo é analisar as alterações no regime de bens sob a égide do CC de 2002 e de seu projeto de reforma, com ênfase nos elementos históricos que impulsionaram tais mudanças legislativas. O regime de bens regula as relações patrimoniais entre os cônjuges, definindo como será a administração, o uso e a divisão do patrimônio adquirido antes e durante o matrimônio. Historicamente, no Brasil, o regime de bens sofreu várias transformações, refletindo as mutações sociais, econômicas e culturais. A implementação do CC de 2002 introduziu inovações significativas, adaptando-se às realidades e necessidades emergentes dos casais modernos. O CC de 1916 representa um marco inicial significativo, estipulando quatro regimes de bens: A comunhão universal, a comunhão parcial, a separação de bens e o regime dotal.1 Predominantemente, o regime de comunhão universal refletia a percepção do casamento como uma união perpétua, com a mulher desempenhando um papel secundário na gestão patrimonial. Com a promulgação da lei do divórcio, na ausência de um pacto antenupcial, o regime de comunhão parcial de bens tornou-se o padrão. As transformações sociais significativas, como o aumento da participação feminina no mercado de trabalho e a valorização da autonomia individual, culminaram na necessidade de reformas no regime de bens. A promulgação da Constituição Federal de 1988, que enfatiza a igualdade e a dignidade da pessoa humana, catalisou significativamente a reformulação do Código Civil. O CC de 2002 trouxe inovações importantes no que diz respeito ao regime de bens. Uma alteração significativa foi a possibilidade de modificação do regime de bens durante o casamento mediante autorização judicial.2 Antes dessa mudança, o regime de bens escolhido no ato do casamento era considerado imutável, com exceções muito limitadas. No entanto, a modificação introduzida pelo § 2º do art. 1.639 do Código Civil permite a alteração do regime de bens mediante autorização judicial, desde que ambos os cônjuges a solicitem com justificativas plausíveis e que não prejudiquem terceiros. A mudança do regime de bens após o casamento, portanto, não é absolutamente livre. Requer a aprovação judicial baseada numa solicitação conjunta dos cônjuges, independentemente da duração do matrimônio, e deve haver motivos substanciais para tal alteração. O juiz responsável irá considerar as razões apresentadas e, constatando a inexistência de prejuízos a terceiros, poderá autorizar a modificação, expedindo uma ordem ao Registro Civil das Pessoas Naturais que efetuou o assento do casamento para realizar a devida averbação. Cabe ao oficial do registro civil verificar o trânsito em julgado da sentença antes de proceder à averbação. Embora o parágrafo único do art. 1.640 do Código Civil exija uma escritura pública para qualquer escolha de regime de bens diferente do padrão legal, as modificações do regime de bens após o casamento dispensam tal formalidade, pois a sentença judicial substitui a necessidade de um instrumento público para a escolha de regimes distintos da comunhão parcial de bens ou da separação obrigatória. No entanto, é permitido lavrar uma escritura pública para a mudança de regime de bens, desde que haja autorização judicial.3 A averbação da mudança do regime de bens não corrige um erro no registro, mas visa modificar o status quo, produzindo efeitos a partir da data da alteração. Dado que a mudança no regime de bens não possui efeito retroativo, é imperativo que o oficial de registro civil indique na certidão a alteração, mencionando o regime de bens vigente na data do casamento e a respectiva modificação, além da data em que a averbação foi realizada. A falta dessa informação pode resultar em registros imprecisos sobre o regime de bens no momento do casamento. É importante destacar que foi um dos objetivos da Comissão de Reforma do Código Civil de 2002 a redução de burocracias, promovendo, assim, a desjudicialização dos processos. A análise inicia com o exame das modificações do art. 1.639 do Código Civil, cuja redação foi alterada para permitir que "aos cônjuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, seja lícita a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais". Note-se que, além de contemplar a união estável, essa redação possibilita a alteração do regime patrimonial de forma extrajudicial após a celebração do casamento ou a constituição da convivência. Dada a jurisprudência consolidada que não reconhece eficácia retroativa à escritura pública que altera o regime de bens, o art. 1.653-A, também revisado pela Comissão, estabelece que "não se admitirá eficácia retroativa ao pacto conjugal ou convivencial que sobrevier ao casamento ou à constituição da união estável", e o § 2º do art. 1.639 reitera que "o regime de bens pode ser modificado por escritura pública e só produz efeitos a partir do ato de alteração, ressalvados os direitos de terceiros."4 Partindo do princípio de que "quem pode o mais, também pode o menos", o casamento e sua dissolução podem ocorrer extrajudicialmente, permitindo que a alteração do regime de bens seja realizada por escritura pública perante o Tabelionato de Notas, sem necessidade de intervenção judicial. Ademais, o art. 734 da codificação processual civil, que regulamenta o procedimento para a modificação do regime de bens mediante petição ao juiz, foi objeto de revisão na III Jornada de Direito Processual Civil de 2023, resultando no enunciado 177, que limita a intimação do Ministério Público nos casos previstos nos arts. 178 e 721 do CPC.5 Com isso, optou-se pela revogação expressa do art. 734 do Código de Processo Civil. A fim de proporcionar maior autonomia na gestão de questões pessoais e experiências relacionadas ao direito de família, a Comissão de Juristas do Senado introduziu a chamada "sunset clause" ou cláusula de caducidade. Por meio dessa estipulação negocial, oriunda da experiência anglo-saxônica, a doutrina explica que "prevê-se um termo ou uma condição resolutiva, que opera a alteração de uma situação jurídica ou a extinção dos seus efeitos. Encerra-se um panorama ou horizonte jurídico, para iniciar-se outro, como se dá, diariamente, após o pôr-do-sol, daí derivando a origem da expressão "sunset clause"".6 As sunset clauses são frequentemente incorporadas em legislações e contratos como um mecanismo de controle temporal. Sua adoção pode ser motivada por diversas razões, incluindo a necessidade de revisões periódicas, a avaliação da eficácia de uma legislação ou a prevenção de efeitos adversos a longo prazo. No direito de família, essas cláusulas podem desempenhar um papel vital, garantindo que acordos de custódia, pensão alimentícia e outros arranjos sejam atualizados conforme mudam as necessidades das partes envolvidas.7 Nesse sentido, além da modificação do regime de bens por escritura pública, nos termos do art. 1.653-A, também será possível a sua alteração por cláusula prévia estabelecida no contrato entre cônjuges ou companheiros, por pacto antenupcial ou convivencial celebrado sempre por escritura pública, sob pena de nulidade absoluta. O art. 1.653-B permite que, no pacto antenupcial ou convivencial, se estipule a alteração automática do regime de bens após um período de tempo predeterminado, sem efeitos retroativos, resguardando os direitos de terceiros. A título ilustrativo, duas pessoas podem acordar que, durante os primeiros três anos de casamento ou união estável, as responsabilidades financeiras e os lucros serão divididos igualmente. Após esse período, se a parceria for considerada bem-sucedida, poderão optar por um modelo onde as contribuições e os lucros são repartidos proporcionalmente ao investimento de cada um. Esta cláusula visa proteger os interesses de ambos os parceiros durante o período inicialde adaptação, garantindo conformidade com as normas obrigatórias e de ordem pública, conforme preconizado pela reforma legislativa. Em suma, as reformulações propostas ao regime de bens refletem um esforço significativo para modernizar e desburocratizar aspectos do direito de família, alinhando-os com as necessidades contemporâneas e promovendo maior autonomia entre os cônjuges ou conviventes. Tais mudanças, se adotadas, poderão alterar a maneira como os bens são administrados dentro das relações familiares, oferecendo flexibilidade e adaptabilidade a situações variadas. Em um próximo artigo, exploraremos outra proposta da Comissão de Juristas: A eliminação da separação obrigatória de bens e da participação final dos aquestos. Discutiremos os potenciais impactos dessas mudanças, que prometem reconfigurar ainda mais as normativas patrimoniais e as dinâmicas financeiras entre os cônjuges, especialmente em contextos de uniões formadas em circunstâncias específicas ou por indivíduos de certas faixas etárias. Sejam felizes! __________ 1 Arts. 256 a 314 do Código Civil de 1916. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, v.2, 29 ed., São Paulo, YK Editora, 2022. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, v.2, 29 ed., São Paulo, YK Editora, 2022. 4 (...) CELEBRAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INCOMUNICABILIDADE PATRIMONIAL COM EFICÁCIA RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE, POIS CONFIGURADA A ALTERAÇÃO DE REGIME COM EFICÁCIA EX-TUNC, AINDA QUE SOB O RÓTULO DE MERA DECLARAÇÃO DE FATO PRÉ-EXISTENTE. (...) 6- Em razão da interpretação do art. 1.725 do CC/2002, decorre a conclusão de que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do regime de bens da união estável com eficácia retroativa, especialmente porque a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, inexistindo lacuna normativa suscetível de ulterior declaração com eficácia retroativa. (...)" (STJ - REsp: 1845416 MS 2019/0150046-0, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 17/08/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe. 24/08/2021) "(...) AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DIVÓRCIO. UNIÃO ESTÁVEL CONFIGURADA. AUSÊNCIA DE DEFICIÊNCIA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. CASAMENTO. PACTO ANTENUPCIAL. SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. EFICÁCIA EX NUNC. SÚMULA 83 DO STJ. (...) 2. "Conforme entendimento desta Corte, a eleição do regime de bens da união estável por contrato escrito é dotada de efetividade ex nunc, sendo inválidas cláusulas que estabeleçam a retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto." (AgInt no AREsp n. 1.631.112/MT, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 26/10/2021, DJe de 14/2/2022)." (Agravo Interno no Recurso Especial 2023/0292022-7, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI (1145), T4 - QUARTA TURMA, j. 04/12/2023, DJe. 07/12/2023). 5 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: I - interesse público ou social; II - interesse de incapaz; III - litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público. Art. 721. Serão citados todos os interessados, bem como intimado o Ministério Público, nos casos do art. 178, para que se manifestem, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias 6 GAGLIANO, Pablo Stolze, A cláusula do pôr-do-sol (Sunset Clause) no Direito de Família, disponível aqui. 7 Nos termos da Revisão da Comissão Australiana de Reforma da Lei do Sistema de Direito da Família, ao dispor sobre a "sunset clause" consideraram o seguinte: "In addition to considerations of timing, independent legal advice and full financial disclosure, New York attorneys advocated the insertion of a 'sunset clause' when drafting a prenup. The effect of a sunset clause is that once a defined period of time has elapsed, the award to the non-moneyed spouse increases, or alternatively the prenup is no longer enforceable. Several attorneys felt that this clause represented a compromise between the parties, as the non-moneyed spouse will not waive his or her equitable distribution rights if the marriage lasts, yet the moneyed spouse's assets are protected in the short term. Other attorneys, however, preferred to avoid the insertion of sunset clauses, as they had been involved in multiple cases where the moneyed spouse ended the marriage before the clause came into effect. Indeed, one attorney felt that the true effect of sunset clauses is to cause spouses to re- evaluate their marriage and think about divorce." [Além de considerações de tempo, aconselhamento jurídico independente e divulgação financeira completa, os advogados de Nova York defenderam a inserção de uma 'cláusula de caducidade' ao redigir um acordo pré-nupcial. O efeito de uma cláusula de caducidade é que, uma vez decorrido um período de tempo definido, a sentença ao cônjuge sem dinheiro aumenta ou, alternativamente, o acordo pré-nupcial não é mais aplicável. Vários advogados sentiram que esta cláusula representava um compromisso entre as partes, já que o cônjuge sem dinheiro não renunciará a seus direitos de distribuição equitativa se o casamento durar, mas os bens do cônjuge com dinheiro são protegidos no curto prazo. Outros advogados, no entanto, preferiram evitar a inserção de cláusulas de caducidade, pois estiveram envolvidos em vários casos em que o cônjuge endinheirado terminou o casamento antes que a cláusula entrasse em vigor. De fato, um advogado sentiu que o verdadeiro efeito das cláusulas de caducidade é fazer com que os cônjuges reavaliem seu casamento e pensem em divórcio.] [tradução nossa]. Australian Law Reform Commission Review of the Family Law System-Issues Paper (IP 48) Submission of Written Evidence Dr S Thompson, Cardiff University, UK. Disponível aqui. GAGLIANO, Pablo Stolze, A cláusula do pôr-do-sol (Sunset Clause) no Direito de Família, disponível aqui.
O provimento 172 do CNJ, de junho de 2024, alterou o Código Nacional de Normas do Extrajudicial para inserir o art. 440-AO que dá nova interpretação ao art. 38 da lei 9.517/97, sobre a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis: Art. 440-AO. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário (art. 2º da lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo: I - administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08); II - entidades integrantes do Sistema Financeira de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21/8/64). Dispõe o art. 38 da lei 9.514/97: Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública. (redação dada pela lei 11.076/04) A redação da legislação especial (art. 38 da lei 9.514/97) permitia que o contrato de alienação fiduciária em garantia fosse celebrado por escritura pública ou instrumento particular, independentemente do valor do bem, excepcionando a regra do art. 108 do Código Civil. Muito embora se tratasse de exceção prevista em legislação especial, havia uma inversão da lógica jurídica da constituição de direitos reais no ordenamento, na medida em que o art. 108 determina a forma pública para constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país. A alienação fiduciária em garantia confere direito real de aquisição ao fiduciante, nos termos do art. 1.368-B, assim, seria lógico que ela seguisse a disposição anterior do art. 108 do Código Civil. A regra visa garantir maior segurança jurídica aos negócios que envolvam imóveis e valores de alto montante, obrigando os particulares a submeterem o contrato à análise profilática do tabelião de notas. Além disso, a AFG é um contrato acessório e sua acessoriedade muitas vezes se dá em relação à própria transmissão da propriedade, não havendo sentido, portanto, que o negócio principal seja obrigatoriamente por escritura pública e o acessório não. Ao mesmo tempo, manter-se a exceção apenas aos contratos em âmbito de SFH e de consórcio parece bastante adequado, na medida em que existe uma natural carência de recursos financeiros dentro desses sistemas e que as suas administradoras fazem um controle mais rigoroso de documentos e compradores, a fim de suprir a segurança jurídica objetivada pelo sistema. A questão já vinha sendo discutida no procedimento de controle administrativo do CNJ 0000145-56.2018.2.00.0000. Antes da publicação do provimento 172, alguns estados já previam nas normas de serviço a obrigatoriedade da escritura pública, como Pará, Maranhão, Paraíba, Bahia e Minas Gerais - neste último, foi levantada a discussão em razão da alteração do art. 852 do Prov. 260/CGG/13 (Código de Normas de MG). No PCA, foi suscitado o limite do poder regulamentar dos Tribunais. No âmbito de sua competência, o Tribunal pode editar regulamentações sobre o serviço extrajudicial no Estado, vinculando os seus serventuários, contudo, a norma não vincula as partes e demais usuários do serviço. Isso gerava o seguinte problema: apenas em alguns estados, as partes eram obrigadas a fazer o contrato por escritura pública, sob pena de qualificação negativa no RI, mesmo que a lei federal permitisse o instrumento particular e que elas não estivessem vinculadas às normas extrajudiciais. Ademais, alegou-se que o art. 38 da lei 9.514/97 estava alinhado com os objetivos do SFI e SFH, que objetivam viabilizar o financiamento em situações específicas, para promover a construção e aquisição de casa própria, não havendo porque proibir a utilização do instrumento particular nesses casos. O PCA concluiu que competiria ao CNJ "definir a melhor interpretação da legislação federal em comento, dados os desdobramentos daí advindos (instabilidade jurídica na região, eventuais ações judiciais a discutir a questão, possível interferência na atividade jurisdicional, ausência de contraditório e ampla defesa aos diretamente atingidos pela deliberação, possível descontrole dos registros imobiliários da região, desorientação patrimonial, entre outros)". Assim, nos parece que o ministro Luis Felipe Salomão deixou um bom legado, acertando a lógica do sistema de transmissão da propriedade imobiliária também à AFG a nível Federal. Além disso, a exceção mantida ao SFI e sistema de consórcio está alinhada à suas finalidades de construção e aquisição de casa própria. Ademais, o ministro já anteviu a reforma do Código Civil, cujo projeto dá nova redação ao art. 1081, colocando como regra que todos os negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis sejam por escritura pública, sem a limitação dos 30 salários mínimos. Por fim, resta esclarecer uma dúvida prática que vem sendo questionada. Em São Paulo, o item 1.6 da Tabela de Emolumentos do Tabelionato de Notas preconiza que: "as transações, cuja instrumentalização admitem forma particular, terão o valor previsto no item 1 da tabela reduzido em 40%, devendo sempre ser respeitado o mínimo ali previsto, combinado com o art. 7º desta lei". Ainda será possível a aplicação do desconto ou será cobrado o valor integral para as escrituras públicas de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis? Parece mais correto que, deixando a escritura pública de ser facultativa em âmbito de AFG, não será mais possível a aplicação do referido item, devendo-se cobrar o valor integral. Embora o usuário seja onerado financeiramente com tal mudança, dá-se agora uma maior segurança jurídica ao negócio e ao sistema como um todo. Voltaremos com novos comentários; sigam conosco! Sejam felizes! ____________ 1 Nova redação proposta do art. 108: Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. § 1º Os emolumentos de escrituras públicas de negócios que tenham por objeto imóvel com valor venal inferior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País, terão os seus custos reduzidos em cinquenta por cento. § 2º Em caso de dúvida e para as finalidades deste artigo, o valor do imóvel é aquele fixado pelo Poder Público, para os fins fiscais ou tributários."
Em continuidade à nossa série de artigos comentando as propostas de reforma do Código Civil, desta vez destacamos a inclusão da filiação decorrente de reprodução assistida. Exploraremos os aspectos legais e práticos dessas mudanças e como elas poderão influenciar a atividade notarial e registral. A regulamentação da reprodução assistida, anteriormente sob a responsabilidade do Conselho Federal de Medicina1, com a proposta de reforma, passou também a ser disciplinada pelo Código Civil. Além disso, foram integradas as diretrizes do CNJ referentes ao registro de filhos concebidos por meio dessas técnicas. A RHA - reprodução humana assistida é uma técnica médica que permite a concepção de um filho com o auxílio de intervenções tecnológicas. Essas práticas têm sido cada vez mais utilizadas, levantando questões jurídicas e éticas importantes sobre os direitos dos envolvidos. No Brasil, a regulamentação dessas técnicas é abrangente, buscando garantir a igualdade de direitos e a segurança de todos os participantes no processo reprodutivo. O Código Civil de 2002 explora as técnicas de reprodução assistida como critério para determinação da incidência da presunção pater is de paternidade, nos incisos III a V do art. 1.597. O inciso III do art. 1.597 do Código Civil de 2002 estabelece que os filhos concebidos por fertilização artificial homóloga - utilizando material genético do casal-, são reconhecidos como filhos legítimos, ainda que o marido tenha falecido. Esse método garante a origem do material genético, pois todo o processo é supervisionado por profissionais, ao contrário da reprodução natural. Portanto, presume-se que a criança é filha de ambos os cônjuges quando se utilizam essas técnicas com seu próprio material genético. Essa presunção de paternidade não é invalidada pela morte do marido, desde que se trate de seu material genético. Embora o Código Civil não exija explicitamente, é necessária a autorização do marido para o uso de seu material genético na inseminação artificial, mesmo após seu falecimento.2 Com o objetivo de preencher o vácuo normativo acerca da reprodução assistida, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o provimento 52, de 14/5/16, posteriormente revogado pelo provimento 63, de 14/8/17. Referido provimento especifica os documentos necessários para o registro de crianças nascidas por reprodução assistida, esclarecendo os requisitos para a autorização mencionada. Ressalte-se que com a edição do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), o provimento 63 foi incorporado pelo provimento 149/23, que passou a regular a matéria nos arts. 512 a 515. O provimento 63/17, incorporado pelo provimento 149/23, modificou os requisitos do anterior, permitindo que a autorização prévia do falecido seja materializada tanto por escritura pública quanto particular, desde que com firma reconhecida. Dessa forma, em casos de reprodução assistida post mortem, para que o nome do falecido conste no registro de nascimento, é necessário apresentar um termo de autorização prévia específica, elaborado por instrumento público ou particular com firma reconhecida. Essa orientação está alinhada com as normas do Conselho Federal de Medicina, que exigem que os pacientes interessados na criopreservação de seu material genético expressem, por escrito, a sua vontade quanto ao destino desses materiais em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento.3 Em relação à doação voluntária de gametas, o provimento 63/17, incorporado pelo provimento 149/23, proíbe a identificação do doador no registro de nascimento de crianças geradas por reprodução assistida, visando preservar o anonimato do doador, conforme as diretrizes do Conselho Federal de Medicina. Isso impede que os receptores e doadores conheçam suas identidades, exceto em casos de doação para parentes de até 4º grau, desde que não haja consanguinidade.4 O inciso IV do art. 1.597 do Código Civil de 2002 presume a filiação de embriões excedentários concebidos artificialmente durante o casamento. Isso se aplica à concepção in vitro, onde embriões excedentários são criados e armazenados. A lei de biossegurança (lei 11.105/05) regula a destinação desses embriões não utilizados. A presunção de paternidade se aplica se os embriões forem implantados posteriormente, pois o material genético é do casal. Ressalte-se que "da mesma forma que se exige a autorização do marido para a inseminação artificial post mortem com seu sêmen, exige-se sua autorização para implantação post mortem do embrião formado pelo seu material genético".5 Por sua vez, o inciso V do art. 1.597 do Código Civil de 2002 aborda a fecundação heteróloga, na qual o material genético não pertence aos pais. Mesmo sem vínculo genético, a paternidade é presumida com base na autorização prévia dos cônjuges para o uso de material genético de terceiros. Com a revogação do provimento 52/16, essa autorização não precisa ser pública, bastando um documento particular assinado pelos participantes, conforme dispõe o item 4, Cap. I, da resolução CFM 2.320/22. A presunção de paternidade na fertilização heteróloga baseia-se na intenção procriacional, não no vínculo genético. Isso também se aplica à gestação por substituição, onde a mãe registral pode não ser a mãe biológica. A intenção de ter filhos é o que estabelece a filiação, não os vínculos biológicos ou de parto. Dessa forma, o registro civil não incluirá o nome da parturiente na DNV - Declaração de Nascido Vivo, sendo necessário um termo de compromisso da doadora temporária do útero.6 Embora a filiação civil prevaleça sobre a biológica nesses casos, isso não implica uma superioridade abstrata da filiação civil. A exclusão da filiação biológica se deve ao consentimento dos doadores e da "barriga solidária", que renunciam ao vínculo parental, permitindo que este seja estabelecido com os beneficiários do procedimento. Conforme dispõe Kümpel e Ferrari: "a filiação socioafetiva pressupõe o comportamento reiterado dos envolvidos, que têm o condão de criar uma situação filiatória aparente (posse do estado de filho) ao longo do tempo. Sendo assim, a filiação decorrente de reprodução assistida não pode ser considerada propriamente uma filiação socioafetiva, já que não decorre de um fato sociojurídico protraído no tempo, mas de um conjunto de manifestações de vontade antecedentes ao próprio nascimento da criança".7 Como proposta de reforma ao Código Civil, revogam-se os incisos do artigo 1.597 e acrescenta-se o Capítulo V intitulado "Da filiação decorrente de reprodução assistida", que inclui os arts. 1.629-A a 1.629-V. O art. 1.629-A estabelece que a reprodução humana assistida deve utilizar técnicas médicas cientificamente aceitas, que interferem diretamente no ato reprodutivo para viabilizar a fecundação e a gravidez. Esta norma busca assegurar que os procedimentos utilizados sejam seguros e eficazes, baseando-se em evidências científicas consolidadas. Conforme o art. 1.629-B, todas as pessoas nascidas por meio de técnicas de reprodução assistida têm os mesmos direitos e deveres daqueles concebidos naturalmente. Qualquer forma de discriminação é vedada, com exceção das disposições específicas do art. 1.798.8 Isso reforça o princípio da igualdade, assegurando que a origem do nascimento não interfira nos direitos fundamentais dos indivíduos. Visando garantir a autonomia dos indivíduos em decidir sobre sua própria capacidade reprodutiva, o art. 1.629-C estabelece que qualquer pessoa maior de dezoito anos pode se submeter ao tratamento de reprodução assistida, desde que seja capaz de manifestar sua vontade de forma livre e inequívoca. Quanto às limitações com o objetivo prevenir abusos e garantir que as técnicas reprodutivas sejam usadas de maneira ética e responsável, o art. 1.629-D impõe várias restrições ao uso, proibindo: A fecundação de óvulos humanos para finalidades distintas da procriação; A criação de seres humanos geneticamente modificados; A criação de embriões para investigação científica; A escolha de sexo, eugenia ou criação de híbridos ou quimeras; Qualquer intervenção sobre o genoma humano para modificações, exceto para terapias gênicas relacionadas ao tratamento de doenças graves. Por sua vez, a "Seção II" aborda as regras para a doação de gametas, permitindo a doação pura e simples, mas proibindo sua comercialização (art. 1.629-F). Os doadores devem ter mais de dezoito anos e manifestar sua vontade por escrito (art. 1.629-G). A escolha dos doadores é responsabilidade do médico, que deve garantir a maior semelhança fenotípica e compatibilidade com os receptores (art. 1.629-H). Todos os dados relacionados a doadores e receptores devem ser tratados com o mais estrito sigilo, não podendo ser divulgadas informações que permitam a identificação das partes envolvidas (art. 1.629-I). O objetivo é manter o anonimato do doador ou da doadora, conforme as diretrizes do CFM a, que proíbem a divulgação da identidade dos doadores para os receptores e vice-versa. Essas diretrizes estabelecem a confidencialidade sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, assim como dos receptores, exceto nos casos de doação de gametas para parentes de até 4º grau de um dos receptores, desde que não haja consanguinidade, conforme já analisado. Ressalte-se que é garantido o sigilo ao doador de gametas, mas permite-se que a pessoa nascida através de reprodução assistida conheça sua origem biológica mediante autorização judicial, se necessário para preservar sua saúde física ou psicológica (art. 1.629-K). Busca-se equilibrar o direito à privacidade do doador com o direito à informação do nascido. Além disso, as clínicas são obrigadas a informar ao Sistema Nacional de Produção de Embriões sobre os nascimentos resultantes de reprodução assistida, garantindo um controle e rastreamento adequado pelos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais, em razão de verificação de impedimentos em procedimento pré-nupcial para o casamento (art. 1.629-J), isto é, se o casal é composto, por exemplo, por pais e filhos ou avós e netos. No que toca à cessão temporária de útero (barriga solidária), é permitida apenas em casos em que a gestação não é possível por causas naturais ou contraindicações médicas (art. 1.629-L). A cessão não pode ter finalidade lucrativa e deve, preferencialmente, envolver uma cedente com vínculo de parentesco com os autores do projeto parental (art. 1.629-M e 1.629-N). Tal cessão deve ser formalizada em documento escrito antes do início dos procedimentos médicos, detalhando a atribuição do vínculo de filiação (art. 1.629-O). O registro de nascimento será feito em nome dos autores do projeto parental, e as informações sobre a gestação não serão publicizadas (art. 1.629-P). Nesse sentido, dispõe o §1º do art. 513 do provimento 149/23 (CNN/ CN/CNJ-Extra): "Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação." O registro de nascimento de crianças geradas por reprodução assistida será feito no Livro A, sem precisar de autorização judicial prévia, conforme a legislação vigente e com a presença de ambos os pais e a documentação necessária. Caso os pais sejam casados ou em união estável, um deles pode realizar o registro sozinho, desde que apresente a documentação exigida. Para filhos de casais homoafetivos, o registro deve incluir os nomes dos ascendentes sem diferenciar entre pais e mães.9 Destaque-se que para o registro e emissão da certidão de nascimento, é necessário apresentar os seguintes documentos: Declaração de Nascido Vivo - DNV; Declaração com firma reconhecida do diretor técnico da clínica onde foi realizada a reprodução assistida heteróloga, indicando os beneficiários; Certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença reconhecendo a união estável do casal.10 Por sua vez, o art. 1.629-Q permite o uso de material genético de pessoas falecidas, desde que haja autorização expressa em documento escrito, indicando o destino do material e a pessoa que deverá gestar.11 A filiação post mortem estabelece os mesmos direitos jurídicos de uma relação paterno-filial. O consentimento informado é essencial para a realização de procedimentos de reprodução assistida. Todos os envolvidos devem assinar o termo de consentimento após receberem todas as informações necessárias (art. 1.629-S e 1.629-T). Se os pacientes forem casados ou estiverem em união estável, é necessária a concordância expressa do cônjuge ou convivente (art. 1.629-U). O termo de consentimento deve especificar o destino do material genético criopreservado em caso de rompimento da relação conjugal, doença grave ou falecimento dos envolvidos, bem como em caso de desistência do tratamento (art. 1.629-V). Os embriões criopreservados podem ser destinados à pesquisa ou para outras pessoas necessitando de material genético, mas não podem ser descartados. Note-se, após a análise dos referidos artigos, que uma das possibilidades de inseminação não foi considerada na proposta de reforma do Código Civil: A auto-inseminação, também conhecida como reprodução caseira. Este procedimento deveria ser realizado com a supervisão do Oficial do Registro Civil, que teria a função de ouvir as partes envolvidas e obter a manifestação do ministério Público. Assim, é recomendável que todas as partes envolvidas assinem um acordo de consentimento informado, detalhando as intenções e responsabilidades relacionadas ao procedimento.12 A auto-inseminação, também conhecida como inseminação caseira, é um procedimento em que a pessoa ou o casal realiza a inseminação artificial fora de um ambiente clínico. Este método pode ser escolhido por diversas razões, incluindo custo, privacidade e conveniência. No entanto, a prática suscita questões importantes de ordem médica, legal e ética. Tal procedimento envolve a introdução de esperma no trato reprodutivo feminino sem a assistência de profissionais médicos. O esperma pode ser obtido de um banco de esperma, doado por um amigo ou parceiro, ou do próprio cônjuge, no caso de casais heterossexuais. No Brasil, a auto-inseminação não é regulamentada de maneira específica, de forma que algumas questões legais podem surgir, especialmente no que diz respeito à doação de esperma e aos direitos de paternidade. A ausência de um quadro legal claro pode complicar a determinação de paternidade e os direitos de filiação. Em casos de doação de esperma informal, sem a intermediação de um banco de esperma ou instituição reconhecida, pode haver disputas sobre direitos e responsabilidades parentais. __________ 1 Quanto aos aspectos éticos e bioéticos da atuação médica, a prática está regulamentada pela Resolução 2.320/22, do Conselho Federal de Medicina e quanto aos aspectos registrais do assento de nascimento, pela Seção III, do Provimento 63/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, atualmente incorporado no Provimento nº 149/2023 (CNN/ CN/CNJ-Extra). 2 VIII -Reprodução Assistida Post Mortem. Resolução CFM nº 2.320/2022. É permitida a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização específica para o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente. Dispõe o artigo 513, §2º do Provimento nº 149/2023: § 2.º Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida. 3 Resolução CFM nº 2.320/2022 - V - Criopreservação de Gametas ou Embriões (...) 3. Antes da geração dos embriões, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino dos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los. 4 Cap. IV, itens 2 e 4 da Resolução CFM nº 2.320/2022. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais, vol. 2, São Paulo, YK Editora, 2022. 6 Art. 513, §1º do Provimento nº 149/2023. 7 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial cit. nota 5 supra. P. 543 8 Art. 1.798 - proposta de reforma ao Código Civil -: "Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão, bem como os filhos do autor da herança gerados por técnica de reprodução humana assistida post mortem, nos termos e nas condições previstos nos parágrafos seguintes. § 1º Aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até cinco anos a contar dessa data, é reconhecido direito sucessório. § 2º O direito à sucessão legítima dos filhos concebidos ou gerados por técnica de reprodução humana assistida, concluída após a morte, quer seja por meio do uso de gameta de pessoa falecida ou por transferência embrionária em genitor supérstite ou, ainda, por meio de gestação por substituição, depende da autorização expressa e inequívoca do autor da herança para o uso de seu material criopreservado, dada por escritura pública ou por testamento público, observado o disposto nos arts. 1.629-B e 1.629-Q. § 3º A autorização de que trata o §2º é revogável a qualquer tempo. § 4º O juiz poderá nomear curador ao concepturo em caso de ausência de genitor supérstite ou conflito de interesses com o inventariante ou com os demais herdeiros, para resguardar os interesses sucessórios do futuro herdeiro, até o seu nascimento com vida. § 5º O curador ou o genitor sobrevivente podem requerer a reserva do quinhão hereditário pelo período a que se refere o § 1º. § 6º O limite temporal do § 1º deste artigo não repercute nos vínculos de filiação e de parentesco." 9 Art. 512, §§ 1º e 2º do Provimento nº 149/2023. 10 Art. 513 do Provimento nº 149/2023. 11 Art. 513, §2º do Provimento nº 149/2023: Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida. 12 Conforme dispõe Maria Berenice Dias: "(...) No entanto, uma das hipóteses de inseminação foi ignorada: a chamada auto inseminação ou reprodução caseira.  Só que esta é uma prática recorrente. Quer em face dos elevados custos dos procedimentos nas clínicas de reprodução assistida; quer porque o projeto parental envolve mais pessoas e, muitas vezes, é desejo de todos assumirem a parentalidade." (Projeto do Código Civil: avanços, retrocessos e omissões, 08/04/2024, in https://berenicedias.com.br/projeto-do-codigo-civil-avancos-retrocessos-e-omissoes/ [27/06/2024])
Inauguramos neste artigo uma sequência de comentários às propostas de reforma do Código Civil com impacto direto na atividade notarial e registral. Iremos analisar os efeitos práticos das alterações do anteprojeto de revisão e tecer alguns comentários de como isso pode influenciar no extrajudicial. Abrimos com o art. 1.247, fundamental para o sistema de transmissão da propriedade imobiliária. Redação atual: Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule. Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente. Redação proposta: Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado postular que seja retificado ou cancelado. § 1º Não se procederá ao cancelamento do registro de título aquisitivo irregular que possa atingir direitos reais adquiridos onerosamente por terceiros de boa-fé, sem eles que sejam ouvidos. § 2º Não será considerado de boa-fé o terceiro que comprovadamente tinha ciência da irregularidade do título. § 3º A aquisição do terceiro de boa-fé não prevalecerá em face de direitos reais adquiridos, independentemente do registro; e nas situações expressamente previstas em lei. Antes de adentrar a análise do artigo propriamente dita, é imprescindível retomar alguns fundamentos do sistema registral brasileiro. Nos termos do art. 1.245 do Código Civil, a aquisição da propriedade imobiliária segue o sistema do título e modo: "título" porque o fundamento jurídico ou causa de mutação jurídico-real está no título, que será, justamente, o negócio levado a registro ("modo") para que se efetive a transferência do direito real. É da relação entre o contrato e o registro, inclusive, que se extrai a causalidade do sistema, ou seja, o vínculo entre o direito obrigacional e a disposição da propriedade pelo registro1. O Registro de Imóveis garante ao titular da propriedade segurança jurídica, tanto sob o ponto de vista estático, quanto sob o ponto de vista dinâmico2. A segurança jurídica estática é aquela que se preocupa com os direitos subjetivos do titular do direito real, a fim de garantir a estabilidade e a certeza do seu conteúdo3. Dela decorre a ideia de que o domínio somente poderá ser transferido com o consentimento de seu titular4. Também denominada de "segurança do direito", a segurança estática "consiste na proteção do titular do direito contra qualquer invasão de terceiros". Para tanto, é necessária a criação de um sistema de publicidade, que garante a eficácia do direito real erga omnes. A segurança dinâmica, por outro lado, está voltada à proteção do terceiro de boa-fé que venha a adquirir a propriedade. O objetivo dessa segurança é que o terceiro de boa-fé possa confiar no conteúdo do registro5, sem se prejudicar posteriormente por omissão ou erro de informações. Também denominada de "segurança do tráfego jurídico" ou "segurança das aquisições", a segurança dinâmica "consiste na proteção de um potencial ou pretenso adquirente de um direito" e está fundada na proteção da aparência jurídica, decorrente da publicidade registral. O terceiro adquirente de boa-fé confia no conteúdo do registro e recebe proteção do sistema em razão dessa confiança. Ademais, o Brasil adota também o sistema do fólio real, organizado pelas matrículas, regido pelo princípio da concentração. Trata-se de uma "regra abstrata de que todos os atos, fatos e negócios jurídicos que envolvem o imóvel ou seus titulares tabulares devem estar ("concentrados") na matrícula, a fim de torná-los oponíveis em face de terceiros"7. O princípio da concentração, como ensina J. P. Lamana Paiva, foi consolidado pelo art. 54 da lei 13.097/20158, o qual estipulou a necessidade de registro ou averbação de constrições e restrições na matrícula para fazer valer sua oponibilidade perante terceiros de boa-fé, assim como tornou obrigatória a consulta da matrícula pelo terceiro interessado para garantir a validade e eficácia dos atos praticados relativos ao imóvel. Feitas tais ponderações, retoma-se a análise do texto legal. A redação do caput foi brevemente alterada para adequar a melhor terminologia do "cancelamento" do registro, no lugar da "anulação". A redação do parágrafo único, por sua vez, foi suprimida e deu lugar a três novos parágrafos. Os §§1º e 2º tratam do terceiro de boa-fé e o título irregular, estabelecendo-se que o cancelamento de um registro decorrente de título aquisitivo irregular que possa prejudicar direitos reais adquiridos de forma onerosa por um terceiro de boa-fé não será procedido sem a oitiva do mesmo. Além disso, se o terceiro conhecia a irregularidade do título, não será considerado como de boa-fé. Ambos os parágrafos parecem bastante adequados ao princípio da concentração, consolidado pelo art. 54 da Lei nº 13.097/2015 e pela própria lei 6.015/1973. A nova redação do Código Civil garante a proteção ao terceiro de boa-fé adquirente de direitos reais, mesmo com a irregularidade do título e a verificação da boa-fé é feita a partir da consulta à certidão da matrícula do imóvel, nos termos do art. 54 referido. Assim, há uma consonância entre a lei civil e o sistema registral: o Código Civil garante uma proteção dupla ao terceiro de boa-fé e aos titulares de direitos sobre o imóvel, a qual decorre da consulta ao Registro de Imóveis. Exige-se, portanto, que o terceiro interessado seja prudente, consultando a matrícula imobiliária e, com isso, há uma garantia de proteção a ele, caso esteja de boa-fé e aos demais titulares de direitos sobre o imóvel, caso a boa-fé inexista; e o critério objetivo analisado para a aferição da boa-fé é conferência dos ônus existentes ou não na matrícula imobiliária. Veja-se que o sistema em nenhum momento inibe a aquisição do bem onerado, porém é gerada uma segurança, a partir do princípio da concentração, àqueles de boa-fé, coibindo-se fraudes contra credores e a oposição de situações jurídicas não constantes na matrícula. Na sequência, contudo, parece haver um desalinhamento do §3º ao sistema. Define-se na proposta do texto legal que a aquisição do terceiro de boa-fé não prevalecerá sobre direitos reais adquiridos, independentemente do registro e nas situações expressamente previstas em lei. Diferentemente dos parágrafos anteriores em que se prevê a proteção àquele de boa-fé diligente (que consultou o Registro), o §3º protegeu as situações de aquisição de propriedade fora do sistema registral em detrimento do adquirente de boa-fé. De maneira contrária, priorizou-se a tutela da realidade fática da transmissão dos direitos de maneira independente do registro imobiliário, desalinhando a segurança estática e dinâmica do sistema. Toma-se uma situação hipotética prática como exemplo: imagine-se que um imóvel tem um titular matricial que vendeu a propriedade do bem a um terceiro de boa-fé (considerando que esse terceiro consultou a matrícula imobiliária a fim de conferir a regularidade do título a ser formulado), porém, o mesmo imóvel, em realidade, já foi usucapido por uma outra pessoa que cumpriu os requisitos para tal. Como a usucapião é uma forma de aquisição originária cujo registro é declaratório, pela nova redação do §3º, o usucapiente seria priorizado em detrimento do terceiro de boa-fé que adquiriu o bem do titular que constava na matrícula, mas sem conhecer a realidade fática do imóvel. Está-se, portanto, tutelando a realidade fática de uma pessoa que não regularizou sua propriedade no Registro em desfavor do terceiro de boa-fé que confiou nas informações da matrícula. O sistema brasileiro já possui muitas situações "excepcionais" que dispensam a necessidade do registro para a transmissão da propriedade - a exemplo da usucapião, arrematação e adjudicação, desapropriação, entre outras -, e a nova regra proposta fomenta o descompasso já existente entre a realidade fática e o registro imobiliário. Na medida em que a tutela é direcionada para quem adquiriu a propriedade fora do registro em detrimento do terceiro de boa-fé que se baseou na presunção de veracidade da matrícula, o sistema fica fragilizado. Como mencionado acima, o objetivo do Registro de Imóveis é fazer coincidir a segurança estática com a dinâmica, e na medida em uma é relativizada, como consequência, a outra também o é. Como o Brasil é sincrético e adota diversas exceções ao sistema registral, a exemplo dos modos originários de aquisição da propriedade, acaba por não garantir nem a segurança estática e nem a segurança dinâmica9. Tutelar a situação fática em detrimento da situação registral faz com que o Registro vire uma mera aparência (que não condiz com a realidade), fazendo prevalecer as formas independentes de aquisição e desestimulado a regularização da propriedade imobiliária. Diante disso, propõe-se a alteração do §3º a fim de estabelecer que a aquisição do terceiro de boa-fé não prevalecerá em face de direitos reais adquiridos, exceto quando ocorrer respeitando-se a continuidade registral constante na matrícula imobiliária. Voltaremos com novos comentários à proposta de reforma; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 Este parágrafo e os dois seguintes foram extraídos de V. F. KÜMPEL, Sistemas de Transmissão Imobiliária Sob a Ótica do Registro. São Paulo, YK, 2020, p. 256 e p. 34. 2 MARIA HELENA DINIZ, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 59-60. 3 L. BRANDELLI, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 7 4 L. BRANDELLI, Registro cit., p. 8. 5 L. BRANDELLI, Registro cit., p. 11. 6 M. V.A. SOUSA JARDIM, Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013., p. 40. 7 Sistemas, p. 346 8 J. P. LAMANA PAIVA, A Consolidação do Princípio da Concentração na Matrícula Imobiliária, in Registro de Imóveis - 1ª Zona de Porto Alegre, 24-01-2017, disponível aqui. [07-06-2024]. 9 V. F. KÜMPEL, Sistemas cit., p. 35.
O presente artigo visa examinar a ata de arrematação, documento derradeiro nos procedimentos extrajudiciais de caráter satisfativo no registro de imóveis, e aprofundar a compreensão de sua natureza jurídica, seu papel na formalização da aquisição da propriedade e os impactos legais decorrentes de seu registro. Além disso, serão exploradas as especificidades da ata de arrematação em comparação com a escritura pública. Após a publicação da lei 14.711, de 31/10/23, denominada de "Novo Marco Legal das Garantias", a ata notarial passou a ser um dos títulos a ser assentado no registro de imóveis, no caso de arrematação e adjudicação de imóveis nos leilões públicos extrajudiciais. O procedimento de execução extrajudicial pode resultar em arrematação por meio de leilões, adjudicação pelo credor ou venda direta1. O título formalizado por esses atos notariais, hábil para o registro, pode trazer certos paradoxos para o sistema do título e modo2, a ser analisado. No Brasil, os atos notariais são praticados exclusivamente por tabeliães de notas ou seus prepostos no exercício de suas funções e dentro dos limites legais. Esses atos resultam em instrumentos públicos, documentos lavrados e autorizados pelos notários com fé pública, destinados a adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir negócios ou atos jurídicos. A lei 8.935/94, em seu art. 6º, define o ato notarial como a formalização jurídica da vontade das partes, intervenção em negócios e atos jurídicos para dar-lhes forma legal, e autenticação de fatos, tudo com a fé pública conferida pelo Estado ao tabelião.3 Ressalte-se que, anteriormente, a instrumentalização do ato notarial era realizada por meio de Escritura Pública, enquanto atualmente passou a ser feita por meio de ata notarial, além da Escritura mencionada. A história do notariado moderno se inicia na Baixa Idade Média, nos séculos XII e XIII d.C., originado da Escola de Bologna e a Summa artis notarial.4 Atualmente, os atos notariais são classificados em exclusivos ou concorrentes - sem exclusividade. Os atos notariais exclusivos podem ser atos protocolares ou extraprotocolates. Os atos protocolares são aqueles lançados nos livros de notas, dentre os quais se inserem as atas notariais, as escrituras públicas, as procurações e os testamentos públicos. Nesse sentido, formaliza-se, com fé-pública, a manifestação de vontade das partes em ato ou negócio jurídico em que há a intervenção notarial. Por outro lado, os atos extraprotocolares referem-se àqueles em que a intervenção do tabelião e a prática notarial se dão em documentos não contidos nos livros notariais, como o reconhecimento de firma, chancela ou letra e a autenticação.5 Os atos notariais concorrentes, que não são exclusivos dos tabeliães de notas, podem ser praticados por diversos agentes. Exemplos desses atos incluem a certificação do implemento ou frustração de condições e outros elementos negociais, bem como a mediação, conciliação e arbitragem.6 A teoria do negócio jurídico está diretamente relacionada à atuação dos notários, pois a eles compete a tarefa de formalizar, de maneira opcional ou obrigatória, a vontade das partes envolvidas. Essa vontade se concretiza em atos e negócios jurídicos, e o notário é responsável por orientar os interessados sobre os requisitos legais necessários para que esses atos ou negócios produzam seus efeitos jurídicos. Primeiramente, é importante distinguir fato jurídico de ato jurídico. O fato jurídico é qualquer ocorrência que impacta o mundo jurídico, gerando efeitos legais. Ele é o grande gênero que inclui tanto o ato quanto o negócio jurídico, daí ser o título do Livro III da Parte Geral. O ato jurídico, por sua vez, é definido pela vontade humana com o objetivo de obter certos efeitos legais desejados. É toda manifestação lícita de vontade destinada a criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica. O negócio jurídico é uma categoria específica de ato jurídico caracterizada pela manifestação de vontade. É crucial destacar a importância da manifestação de vontade humana, que pode criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões, ações ou exceções, com a intenção de produzir efeitos no mundo jurídico. Insere-se a ata notarial como um instrumento de constatação de fatos presentes, inclusos nos atos da atividade notarial. Na ata notarial, o tabelião registra tudo o que observa, ouve, verifica e conclui através de seus próprios sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar), sem influências externas. Nesse sentido, caracteriza-se como ato protocolar, pelo qual o notário narra, de forma objetiva, fiel e detalhada fatos naturais ou jurídicos presenciados ou verificados pessoalmente, em seu Livro de Notas com fé pública.7 Deste modo, distingue-se da escritura pública, que tem por função precípua formalizar juridicamente a vontade de uma ou mais partes, em atos ou negócios jurídicos, os quais fazem prova plena8, isto é, enquanto a escritura pública inclui uma declaração de vontade destinada a formalizar um negócio jurídico com fé pública, a ata notarial relata apenas fatos, sem qualquer declaração de vontade e podendo não constituir nenhum direito. Em outras palavras, a ata notarial documenta fatos para proteger terceiros, enquanto a escritura pública descreve uma relação jurídica. O presente documento público é ato notarial exclusivo do tabelião de notas. O art. 384 do CPC reconhece a ata notarial como um meio de prova fundamental. Antes do novo "Marco Legal das Garantias", a competência para a lavratura da ata notarial era, em regra, definida pela livre escolha do requerente, independentemente do domicílio das partes ou da localização dos bens objeto do ato ou negócio. No entanto, a ata notarial deve ser lavrada por um tabelião de notas devidamente investido em delegação, que não pode praticar atos fora do município para o qual foi designado. Porém, o legislador ordinário criou algumas exceções, em que a competência é exclusiva, como a ata notarial de usucapião ou de adjudicação compulsória via extrajudicial, em que a atribuição é do tabelião do município onde situado o imóvel ou a sua maior parte.9 Ambas as hipóteses de exceção são atos sem valor de confirmação ou estabelecimento de propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial de usucapião ou adjudicação compulsória para processamento perante o registrador de imóveis.10 Essas atas corroboram o título, mas não o criam, embora devessem constituir um título por si só. Igualmente, a cobrança de emolumentos pelo notário por essas atas seguirá as faixas de preço da tabela de emolumentos para escrituras públicas de transmissão ou constituição de direitos reais, até que o legislador estadual defina uma forma específica de cobrança.11 O sistema criou as atas de arrematação na via extrajudicial, instrumentalizando o lance vencedor em leilões extrajudiciais como negócio derradeiro do procedimento de execução de imóveis hipotecados ou alienados fiduciariamente em garantia.12 É importante ressaltar que a lavratura de uma ata notarial de arrematação pelo tabelião de notas, contendo dados de intimação do devedor e do garantidor, bem como os autos do leilão e constituindo título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante a ser registrado na matrícula do imóvel, representa uma novidade trazida pela lei 14.711/23. Essa inovação configura um tertium genus entre a Escritura Pública e a Ata Notarial. Assim, ao mesmo tempo que atesta fatos, o tabelião formaliza a vontade e descreve os elementos essenciais do negócio jurídico, tudo em um único instrumento notarial.13 Concluído o procedimento de execução via extrajudicial de hipoteca ou alienação fiduciária, e havendo lance vencedor, os autos do leilão e o processo de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos ao tabelião de notas com circunscrição delegada que abranja o local do imóvel para lavratura de ata notarial de arrematação, que conterá os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos do leilão. Em sendo a ata notarial a constatação de fatos, por parte do tabelião, no mundo fenomenologicamente aferível, não resta dúvida de que a ata notarial é um ato-fato jurídico. Aquilo que o tabelião constata, no exato sentido da sua pura descrição, independe do elemento volitivo, muito embora no campo dos efeitos a ata notarial possa eventualmente ter contorno de ato ou de negócio jurídico. No caso específico da ata notarial de arrematação, descreve a manifestação de vontade de um sujeito que arremata um bem perante o leiloeiro, configurando, assim, um negócio jurídico indireto. Ou seja, o tabelião certifica a ocorrência do evento diante do leiloeiro, mas não declara a vontade; ele apenas descreve a manifestação da vontade apresentada ao leiloeiro. Ao contrário das atas notariais usuais, a ata de arrematação representa uma modalidade distinta, uma vez que o tabelião indiretamente corporifica o negócio jurídico. Nesse contexto, a ata descreve o negócio concluído, reconhecendo que a pessoa expressou sua vontade, adquiriu o imóvel e efetuou o pagamento. Dessa maneira, é correto afirmar que a ata de arrematação possui natureza de negócio jurídico indireto. Enquanto as atas notariais em geral não são registráveis por descreverem apenas fatos, esta ata, por descrever um negócio jurídico, ainda que indireto, é registrável, tendo por base os art. 221 e 167, inciso I, item 48, que dispõe: "Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. I - o registro:    48) de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da lei 10.406, de 10/1/02 (Código Civil)."   Conforme se extrai da disposição do art. 48, os "outros negócios jurídicos de transmissão", não se referem ao conteúdo, mas à forma, que é representada pela ata notarial de arrematação - um negócio jurídico indireto. Na realidade, a ata notarial deveria ter sido originalmente incluída no inciso I do art. 221 da LRP. No entanto, em vez disso, foi inserida no art. 7º-A, §2º, como parte de uma categoria mais ampla. Veja: Art. 7º-A, §2º, LRP. O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da lei 6.015, de 31/12/73 (lei de registros públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto. Embora o §2º trate da ata de constatação da verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais, dentro dessa categoria estão abrangidas ocorrências de negócios translativos, como a arrematação. É importante ressaltar que, do ponto de vista intrínseco, a ata de arrematação mantém sua natureza como meio de prova, mas adquire a força e a importância de um título registrado no registro imobiliário. A atribuição do tabelião de notas é similar àquela das atas notariais de usucapião e adjudicação compulsória, sendo responsabilidade do tabelião da circunscrição onde o imóvel está localizado. No entanto, se houver mais de um tabelionato de notas na área, a atribuição está sujeita à prévia distribuição. A cobrança de emolumentos ainda não está resolvida por lei estadual, mas é provável que siga um modelo semelhante ao das atas notariais de usucapião e adjudicação compulsória na via extrajudicial. A aquisição da propriedade pelo arrematante é originária, o que confere à ata notarial um caráter declaratório, embora a torne oponível erga omnes. A ata notarial formaliza a arrematação da propriedade do imóvel hipotecado ou consolidado no patrimônio do credor fiduciário.. A lei 14.711, de 31/10/23, estabelece, em seu art. 9º, § 11, que a data de consolidação da propriedade na execução da alienação fiduciária equivale à data de expedição da ata notarial de arrematação após o leilão público bem-sucedido, no contexto da execução da hipoteca pela via extrajudicial. Portanto, se o imóvel estiver alugado, o locador pode denunciar o contrato de locação com um prazo de trinta dias para desocupação, tendo o poder de solicitar a imissão na posse ao Poder Judiciário, mesmo antes do registro.14 Da mesma forma, os direitos reais de garantia ou constrições, inclusive penhoras, arrestos, bloqueios e indisponibilidades de qualquer natureza, incidentes sobre o direito real de aquisição do fiduciante não obstam a consolidação da propriedade no patrimônio do credor fiduciário e a venda do imóvel para realização da garantia na hipoteca. É importante observar que a ata notarial pode estar incorporando a propriedade inter partes do direito espanhol, uma vez que não é oponível perante terceiros até ser registrada no fólio real.15 O sistema espanhol é baseado no princípio do título, embora adote o princípio da separação, semelhante à Alemanha. Os efeitos inerentes aos direitos reais, segundo o princípio do consenso no sistema espanhol, são expressos em duas etapas. A primeira consiste no contrato em si, caracterizado como um negócio jurídico obrigacional, e um acordo de vontade voltado para a transferência do direito real (traditio), que surge como um negócio jurídico dispositivo. O sistema espanhol, assim como o alemão, concede proteção aos terceiros, principalmente em nome da fé pública registral. Esse sistema adota o princípio da causalidade entre o negócio jurídico obrigacional e o jurídico-real, e entre este e o registro. A causalidade visa proteger os terceiros, pois as hipóteses de invalidação do registro por inexatidão são limitadas pela regra protetiva do terceiro hipotecário, cuja inscrição não será afetada por causas relativas aos titulares anteriores na cadeia dominial que culminou na constituição do seu direito. A regra protetiva do terceiro hipotecário pelo sistema espanhol leva à conclusão de que a inscrição do título no registro não apenas gera sua oponibilidade erga omnes, mas também implica uma espécie de efeito resolutivo, extinguindo eventuais direitos reais inter partes incompatíveis ou contraditórios anteriormente constituídos sobre o imóvel. A presente ata de arrematação, ao ser prenotada no protocolo do registro de imóveis da circunscrição do imóvel, assim como a Carta de Arrematação Judicial, não é obstada pela indisponibilidade, pois representa uma espécie de alienação forçada capaz de promover o cancelamento indireto de penhoras, arrestos e outros gravames, assemelhando-se ao efeito resolutivo no sistema espanhol. A transmissão da propriedade ocorre por meio do título - ata de arrematação -, conforme previsto na legislação. O registro é declaratório e não constitui condição para a imissão na posse pelo arrematante nos leilões públicos extrajudiciais. A ata notarial de arrematação pode configurar-se como uma nova exceção ao título e modo no sistema, contribuindo para a publicidade do título complexa pela primeira vez no país, o que requer uma análise mais detalhada. _________ 1 Lei nº 14.711, 30 de outubro de 2023, art. 9º, §§ 9º, 10 e 11; e Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, arts. 27, §§ 7º e 8º, 30 e 37. 2 CC, art. 1.227 e 1.245; LRP, art. 172. 3 A autoria do ato notarial pode também ser de cônsules, os oficiais substitutos dos tabeliães de notas, os interinos ou os interventores. 4 Cf. V. Kümpel e C. M. Ferrari, Tratado de direito notarial e registral, vol. 3, 2ª ed., São Paulo, YK, 2022. 5 Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7º, caput e incisos. 6 Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7º-A, caput e §§. 7 Cf. F.K. Mady; S. L. F. Rocha, Usucapião extrajudicial, Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, Porto Alegre, v. 16, n. 91, p. 5-29, ago./set. 2020, e a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7ª, III, e o CPC, art. 384. 8 CC, art. 215; e Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7ª, I. 9 Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 216-A, I, e 216-B, § 1º. 10 Código Nacional de Normas, arts. 402, §  3º e 440-G, § 2º. 11 Código Nacional de Normas, arts. 423, I, e 440-M. 12 Lei nº 14.711, de 31 de outubro de 2023, art. 9ª. 13 LOPES, Leandro Lima. In KÜMPEL, Vitor Frederico, MIRANDA, Caleb Matheus Ribeiro de, FERRO Jr., Izaías Gomes (coords.), CARVALHO, Thaíssa Hentz de (org.), Comentários à Lei das Garantias (Lei nº 14.711/2023): implicações Extrajudiciais, São Paulo, YK Editora, 2024. 14 Lei 9.154, de 20 de novembro de 1997, art. 27, § 5º e 11 c.c. Lei 14.711, de 31 de outubro de 2023, art. 9º, § 11. 15 Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 167, I, "26".
terça-feira, 28 de maio de 2024

Lei das cultivares - lei 9.456/97

Os avanços tecnológicos, além de provocarem mudanças sociais e comportamentais, acabam por suscitar a tutela jurídica, em razão de sua inegável repercussão nas modernas e complexas relações jurídicas. Assim, aproveitando o ensejo do artigo publicado há alguns dias sobre a patente de material genético, parece conveniente analisar a segunda grande frente da tutela biotecnológica: A proteção das cultivares1 e sua possível relação com o direito registral. Em brevíssimo histórico, o fundamento da proteção de espécies vegetais pode ser encontrado no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS)2, da OMC - Organização Mundial de Comércio, do qual o Brasil é signatário. A seção 5 desse acordo, destinada às patentes de modo geral, possui uma previsão específica que faculta aos países membros a possibilidade de considerar plantas e animais como seres não patenteáveis, devendo, porém, conceder proteção às variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por um sistema sui generis eficaz, ou a combinação de ambos.3 Pois bem, nesta toada, a lei 9.279, de 14/5/96, LPI - lei de propriedade industrial expressamente definiu que não são considerados como invenção ou modelo de utilidade "o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais" (art. 8º, IX) além de afastar a patenteabilidade do todo ou parte de seres vivos (art. 18). Seguindo de forma coerente a prescrição do Acordo TRIPS indicado acima, o legislador brasileiro optou por conceder um tratamento específico às variedades de plantas4 por meio da lei das cultivares, criando um mecanismo sui generis de proteção a essa espécie de ser vivo, no mesmo sentido do que ficou definido no âmbito da OMC. A lei 9.456, de 25/4/97 é a norma que institui a única forma de proteção de cultivares no Brasil, que se dá por meio de concessão do certificado de proteção de cultivar.5 A rigor de seu art. 2º, a LPC - lei de proteção de cultivares tutela os direitos de propriedade intelectual das variedades vegetais; sendo o único mecanismo apto a obstar a sua livre utilização por terceiros. A grosso modo, a cultivar pode ser compreendida como a variedade superior de qualquer gênero ou espécie vegetal, que seja claramente distinguível de outras variedades conhecidas, e cujas características sejam estáveis e homogêneas através das gerações.6 Em outras palavras, trata-se de um melhoramento que torna a variedade da planta diferente das demais, seja pela coloração, resistência à pragas, doenças, quantidade de frutos, entre outros.7 Para atingir um melhoramento que seja estável e homogêneo em todos os ciclos de reprodução de um vegetal ou planta, isto é, para que exista uma cultivar, é preciso um grande investimento financeiro, tecnológico e temporal; pois é preciso acompanhar o ciclo de reprodução do ser vivo e eventualmente corrigir as imperfeições que forem encontradas durante este processo. Assim sendo, apenas haverá interesse da indústria e outras instituições no patrocínio desses estudos se for possível um retorno e um lucro, a longo prazo, compatíveis com os investimentos despendidos no processo. É aqui que se encontra a razão de ser da proteção da cultivar. O certificado de proteção de cultivar, bem móvel para fins legais, assegura ao titular - com exceção das hipóteses do art. 10 da LPC - a exclusividade na reprodução comercial daquele material durante o prazo de proteção, que será de 18 anos para as videiras e árvores; e 15 anos para as demais variedades. Nesse meio tempo, fica vedada a produção, comercialização ou oferecimento à venda da cultivar por parte de terceiros sem autorização do titular do direito.8 Essa proteção, além de contemplar os direitos de propriedade intelectual, serve de fomento para que instituições privadas invistam seus recursos na pesquisa e no melhoramento de espécies vegetais, já que têm assegurado um prazo de exploração comercial exclusiva do resultado desses estudos. Para que seja concedido o certificado de proteção de cultivar, o interessado obtentor deve requerer formalmente o pedido no órgão competente, indicando todas as suas características, os melhoramentos obtidos com as pesquisas, o extrato do objeto do pedido e outros documentos elencados no art. 14 da LPC. Na sequência o requerimento é publicado para apresentação de eventuais impugnações e emite-se o certificado provisório de proteção, um título precário que assegura ao titular o direito de exploração da cultivar (art. 19, LPC). Durante a análise do pedido, o órgão responsável pode formular exigências e solicitar mais documentos necessários ao julgamento do requerimento de proteção. O procedimento detalhado de solicitação do certificado de proteção de cultivar é regulamentado pelo decreto 2.366, de 5/11/97, que também regula a atuação do SNPC - Serviço Nacional de Proteção de Cultivares, órgão criado pela LPI e competente para conceder ou não a tutela jurídica às espécies vegetativas. Uma vez concedido o certificado de proteção, o obtentor fica obrigado a enviar ao órgão competente duas amostras vivas da cultivar protegida, que serão destinadas à manipulação e exame; e à coleção de germoplasma; essas amostras devem ser mantidas pelo titular enquanto durar a proteção, sob pena de cancelamento do certificado (art. 22, LPC). Um ponto importante do assunto é a questão da publicidade. O art. 21 da LPC determina a publicação oficial da proteção concedida a cultivar em até 15 dias, contados da concessão do certificado. Essa publicação no Diário Oficial da União consiste numa atribuição específica do SNPC, que deve divulgar os extratos de concessão dos pedidos de proteção, eventuais transferências de titularidade do certificado, declaração de licenciamento compulsório e outros eventos atinentes à proteção das cultivares.9 A publicidade do certificado de proteção de cultivar, assim como os demais documentos relacionados às patentes, é uma das formas de assegurar o direito do titular em explorar aquela espécie melhorada pelo obtentor. Ocorre, no entanto, que o conteúdo divulgado no Diário Oficial pode não produzir os efeitos esperados em relação à publicidade, pois há uma presunção de conhecimento de terceiros a respeito de seu conteúdo, mas que depende de uma conduta exclusiva (e ativa) dos interessados: Consulta a respeito da existência ou não da referida proteção. Nesse sentido, considerando a importância dos registros públicos e a segurança jurídica gerada pelos atos de seus oficiais, seria conveniente se cogitar na possibilidade de registro do certificado de proteção de cultivar no RTD - Registro de Títulos e Documentos, onde se dá o registro de bens móveis, já que os direitos intelectuais precisam, de fato, de uma publicidade para serem conhecidos e oponíveis em face de terceiros. O registro de títulos e documentos é a serventia com atribuições amplas e subsidiárias, cujo registro tem por finalidade atestar a existência de documentos, conservar seu conteúdo e garantir a publicidade, evitando que terceiros aleguem ignorância a respeito dele.10 Interessa-nos, no caso das cultivares, a questão da atribuição subsidiária (ou residual) dessa serventia, prevista no art. 127, parágrafo único da lei 6.015/73: "caberá ao registro de títulos e documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressamente a outro ofício". Essa atribuição residual é de natureza atípica, e acaba por tornar o rol dos títulos registráveis (art. 127, lei 6.015/73) meramente exemplificativo, admitindo o assentamento de outros títulos ou documentos que atendam a dois requisitos: que não sejam de competência de outra serventia por determinação expressa; e cujo ingresso não seja "obstado por descumprimento de preceito legal".11 Considerando, então, que o legislador não exigiu o registro do certificado de proteção de cultivar em nenhuma serventia a não ser o próprio órgão competente (SNPC), há possibilidade de se requerer o seu registro no RTD baseado nessa atribuição residual. Quanto aos efeitos desse registro, por certo, a conservação e a publicidade restrita estariam presentes, bem como seu caráter probatório. Entretanto, considerando a atual redação do art. 129, da lei 6.015/73 - que parece ser taxativa -, não seria possível exigir a oponibilidade em relação a terceiros, uma vez que as hipóteses indicadas nesse dispositivo estão especificamente delimitadas, sem contemplar situações abertas, nas quais poderiam ser inseridas o certificado de proteção de cultivar. Portanto, a possibilidade de registro do certificado de proteção de cultivares no RTD é expressamente permita com fundamento na atribuição residual dessa serventia; o que seria discutível seria apenas a falta de produção de efeitos em relação a terceiros pela falta de disposição expressa da lei, mas que pode facilmente ser suprida pelo legislador. De qualquer forma, fica aqui consignado o entendimento de que esse assentamento, podendo produzir efeitos em relação a terceiros, seria valioso para a garantia dos direitos intelectuais da cultivares, dada a segurança jurídica e a publicidade decorrente dos registros públicos. Sejam felizes! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Kümpel - SÓLLER, Natália. Patente de Material Genético. In Migalhas, 30-04-2024, disponível aqui. 2 Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights, disponível aqui. 3 "3. Members may also exclude from patentability: [.] (b) plants and animals other than micro-organisms, and essentially biological processes for the production of plants or animals other than non-biological and microbiological processes. However, Members shall provide for the protection of plant varieties either by patents or by an effective sui generis system or by any combination thereof. The provisions of this subparagraph shall be reviewed four years after the date of entry into force of the WTO Agreement." 4 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Segunda Edição Revista e Atualizada. Lumen Juris, 2010, p. 369. 5 Art. 2º da lei 9.456/1997. 6 Art. 3º da lei 9.456/1997. 7 Definição apresentada no site do Ministério da Agricultura e Pecuária; disponível aqui. 8 Arts. 2º, 9º e 11 da lei 9.456/1997. 9 Art. 3º, VII, Decreto nº 2.366/1967 (regulamento da Lei de Proteção de Cultivares). 10 KÜMPEL, Vitor - FERRARI, Carla Modina. Sinopses Notariais e Registrais: registro civil das pessoas jurídicas e registro de títulos e documentos. Vol. 3. 2ª ed. São Paulo: YK Editora, 2023, p. 99 e 100. 11 KÜMPEL, Vitor - FERRARI, Carla Modina. Sinopses cit. p. 106.
Em 11/3/24 o CNJ fez publicar o provimento 161, alterando dispositivos do CNN - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial, instituído pelo provimento 149/23 do mesmo órgão. Os dois principais pontos das alterações se referem: Revogação do §1º do art. 72, que permitia a cumulação do exercício da delegação com a do cargo eletivo de vereador, novidade que se observava na redação do CNN quando confrontando com o antigo provimento 78/18 do mesmo CNJ; Mudança quase integral do capítulo que trata da prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo (representados agora pela sigla PLD/FTP), sendo também agora previsto o combate à proliferação de armas de destruição em massa (arts. 137 a 181 do CNN). A princípio cabe pontuar que a mudança relativa à possibilidade ou não de cumulação da vereança com o exercício da atividade notarial e registral parece ter havido para corrigir erro cometido na redação original do CNN, que acabou por reproduzir a redação original do provimento 78/18 do CNJ (que permitia a cumulação), e não a redação final (que não a permitia), que estava até então em vigor.  O citado provimento 78/18 teve sua redação alterada pelo Pleno do CNJ ao ser levado ao seu referendo, em dois pontos, primeiro para se proibir a cumulação de qualquer cargo eletivo com o exercício da atividade notarial e registral, determinando o afastamento do titular durante todo o seu mandato, afastando a possibilidade, inicialmente prevista, de exercício cumulativo da vereança, desde que houvesse compatibilidade de horários. Depois, deixou-se claro, aqui acertadamente, pelo que pensamos, que mesmo afastado, ao titular são devidos os emolumentos integrais da atividade notarial e registral, ficando o substituto legal responsável pela delegação, que não estará vaga, mas apenas com seu titular licenciado legalmente. O que parecia ser uma novidade do CNN, voltar a permitir a cumulação da vereança com a atividade notarial e registral, mostrou-se, em verdade, um mero equívoco, agora corrigido. Volta a valer, portando, a redação ao final prevaleceu do antigo provimento acima citado. A segunda e principal mudança havida no CNN em razão da entrada em vigor do provimento 161/24, trata das disposições relativas aos deveres de tabeliães e registradores na prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento ao terrorismo e, agora, também à proliferação de armas de destruição em massa, regras essas originárias do provimento 88/19 do CNJ. Houve sensível diminuição das hipóteses de comunicação obrigatória ou objetiva (agora há apenas uma por especialidade), a regulamentação precisa do procedimento interno de análise de risco dos atos praticados (para os casos de comunicação não obrigatória ou subjetiva), e a especificação, para tabeliães de notas, da necessidade de descrever, em minúcias, como todos os pagamentos havidos em escrituras públicas realmente se deu. O inciso VII do art. 140 do CNN, introduzido pelo provimento 161/24, resolveu antiga celeuma, definindo o que realmente equivale a "pagamento em espécie", previsão genérica que gerava inúmeras comunicações por parte de tabeliães e registradores, que em verdade seriam desnecessárias. Nesse sentido, pagamento em espécie é apenas o pagamento consistente em moeda manual, ou seja, em cédulas de papel-moeda ou moedas metálicas fracionárias, também designado por expressões como "dinheiro vivo", numerário ou meio circulante, e NÃO SE CONFUNDE com expressões como "moeda corrente" ou "moeda de curso legal",  referentes apenas à unidade do sistema monetário nacional, que é o Real, conforme art. 1º da lei 9.069/95, ou à unidade do sistema monetário de outros países, independentemente do meio de pagamento pelo qual seja essa unidade veiculada (a exemplo de transferências bancárias, transferências eletrônicas entre contas de pagamento, pix, cheque ou dinheiro em espécie). Portanto, e agora indubitavelmente, a expressão "pagamento em moeda corrente", usual nas escrituras imobiliárias mais antigas, nunca significou efetivo pagamento em dinheiro vivo. Por outro lado, o art. 165-A do CNN, também novo, determina que toda escritura pública de constituição, alienação ou oneração de direitos reais sobre imóveis deve indicar, de forma precisa, meios e formas de pagamento que tenham sido utilizados no contexto de sua realização, bem como a eventual condição de pessoa politicamente exposta de cliente ou usuário ou de outros envolvidos no contexto. Trata-se de novidade importante, já que até então era comum citar a o meio e a forma de pagamento genericamente, mas sem a precisão agora determinada. Vejamos: No caso de pagamentos em espécie (dinheiro vivo) devem ser expressamente mencionados local e data correspondentes de pagamento; No caso de transferências bancárias, devem ser especificados dados bancários que permitam identificação inequívoca da conta envolvida, tanto da origem como de destino dos recursos transferidos, bem como os dados dos seus titulares e datas e valores das transferências; Nos pagamentos com cheques, devem ser especificados os elementos de identificação, informações da conta bancária e origem e da eventual conta de destino dos recursos, seus titulares, bem como data e valores envolvidos; No caso de utilização de outros meios, devem ser expressamente mencionados, com local e data correspondentes, com identificação da origem e do destino dos valores pagos (ex.: dação em pagamento, cessões de direitos, ativos virtuais, permutas ou prestações de serviços). A grande novidade é mencionar não só detalhadamente cada pagamento havido, mas as contas de origem e de destino de cada valor. Nesse sentido, se forem mencionados, contas ou recursos de terceiros, estes devem ser qualificados na escritura pública (§2º do art. 165-A, CNN). No entanto, é possível que a parte se recuse a dar tais informações detalhadas de cada pagamento, e isso não pode levar o notário a se recusar a praticar o ato (art. 179, CNN), mas o obriga a mencionar no corpo da escritura que houve tal recusa (§3º do art. 165-A, CNN). Vale lembrar que um dos fatos que pode ser levado em consideração pelo notário (dentro do procedimento de análise de risco) para comunicar ao COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras da Receita Federal um possível ato de lavagem de dinheiro é justamente a parte oferecer resistência ao fornecimento de informações que lhe foram solicitadas para a prática de um ato notarial (art. 155, VIII, do CNN).  A principal razão, no entanto, da edição do provimento 161/24 pelo CNJ, foi a necessidade de reduzir o número de comunicações feitas ao COAF pelos notários e registradores desde o ano de 2019. Foram, ao todo, conforme a 5ª edição, de 2023, do informativo CARTÓRIO EM NÚMEROS, da ANOREG BR, ao todo 5.263.739 comunicações feitas pelos cartórios ao COAF, de janeiro de 2020 a novembro de 2023, estando os cartórios entre os que mais comunicam atos suspeitos ao COAF, perdendo apenas para as instituições financeiras. No ofício-circular 5/CONR, expedido em 21/3/24 pelo corregedor nacional de justiça, min. Luis Felipe Salomão, se afirma que, em levantamento feito pelo COAF, menos de 1% das informações recebidas dos cartórios extrajudiciais efetivamente fizeram parte de análises de RIF's - Relatórios de Inteligência Financeira, percentual bastante inferior aos demais segmentos obrigados. Foram apontadas deficiências na ausência de detalhamento da suspeição e, principalmente, incompreensão do comando regulamentar até então vigente. Assim, para reduzir o excessivo número de comunicados e melhorar a qualidade das informações prestadas pelos cartórios extrajudiciais, o provimento 161/24 trouxe duas significativas mudanças: Todas as hipóteses de comunicação obrigatória foram resumidas a uma, operações que envolvam pagamento ou recebimento em espécie (dinheiro vivo) em valor igual ou superior a R$ 100.000,00; Deve ser estabelecido procedimento interno de análise de riscos, paras as demais comunicações, compatível com o porte da serventia extrajudicial e com o volume das operações praticadas, no qual os notários e registradores deverão considerar, entre outras fontes, avaliações nacionais ou setoriais de risco conduzidas pelo Poder Público, assim como avaliações setoriais ou subsetoriais realizadas por suas entidades de representação (art. 139 e 139-A, CNN). Os procedimentos de análise das operações devem reunir os elementos objetivos com base nos quais se conclua pela configuração, ou não, de possível indício de prática de LD/FTP (sigla que representa os crimes prevenidos com tais comunicações), e devem ser documentados para efeito de demonstração à Corregedoria Nacional de Justiça ou às Corregedorias-Gerais de Justiça estaduais ou do DF, independentemente de terem como resultado, ou não, o encaminhamento de comunicação à UIF (§§ 2º e 3º do art. 141, CNN). A nosso sentir, deverão os notários e registradores lavrar atas periódicas de análise dos atos praticados (o procedimento deve agora se concluído no prazo de até 60 dias e as comunicações feitas em até 24 horas), bem como arquivar, em classificador obrigatório, todos os documentos e dados que serviram de base para a comunicação ou não dos atos como suspeitos ao COAF. Além disso, no caso de serem efetivadas comunicações, será obrigatória sua fundamentação, incluindo manifestação circunstanciada dos motivos que levaram a conclusão pela configuração de indício de prática de LD/FTP, os dados relevantes da operação (descrição das formas de pagamento e identificação das pessoas envolvidas), as indicações das fontes de informações consideradas na comunicação (tais como documentos, declarações prestadas, observação direta, mensagens de e-mail ou telefonemas, matérias jornalísticas, resultados de pesquisas na internet, redes sociais ou informações compartilhadas informalmente em âmbito local, regional, familiar ou comunitário), nos termos do art. 154-A, CNN. Em suma, se de um lado o provimento 161/24 prova que notários e registradores vêm cumprindo a obrigação que lhes foi imposta de comunicar ao COAF atividades que supunham suspeitas, por outro lado vem em boa hora para corrigir imprecisões, regras por demais abertas como as anteriormente previstas, que levavam ao excesso de comunicações. Espera-se que o procedimento de análise, agora objetivado na normativa, resolva os excessos e, ao mesmo tempo, direcione os notários e registradores a efetivamente contribuírem para o combate aos crimes de lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa, em evidente demonstração da importância da atividade para a segurança jurídica e também do país. Sejam felizes!
terça-feira, 30 de abril de 2024

Patente de material genético

Hoje trouxemos um tema um pouco diferente para nossos leitores, adentrando a seara da Propriedade Industrial. Regulamentada pela lei 9.279/1996 (LPI), trata-se, em termos menos técnicos, da concessão de patentes às invenções que atendam aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial (art. 8º). Nesta coluna, abordaremos brevemente as especificidades sobre a concessão de patentes sobre material genético. Inicialmente, a LPI, em seu art. 18 aduz a impossibilidade de patentear, no todo ou em parte, os seres vivos; contudo, o art. 225, II da Constituição Federal, ao tratar do direito ao meio ambiente, permite a pesquisa e a manipulação de material genético no país1. A partir desse artigo, surge, portanto, a necessidade de tutela do patrimônio biotecnológico, que é desenvolvido e criado por essas pesquisas e manipulação. A tutela biotecnológica, ramifica-se em duas grandes frentes: a proteção às cultivares, regulamentada pela lei 9.456/1997, e a proteção aos organismos geneticamente modificados (material genético), regulamentada pela lei 11.105/2005. A Lei nº 11.105/2005, que visa regulamentar o art. 225, II da CF, é chamada de Lei da Biossegurança, e substitui a anterior lei 8.974/1995. Em complementação, alguns dispositivos da referida norma são regulamentados pelo decreto 5.591/2005. Em ambas as normativas, são conceituadas as terminologias técnicas relativas à atividade de pesquisa sobre material genético, tais como organismo, engenharia genética, clonagem, células-tronco, etc. Além disso, as normas também proíbem o desenvolvimento de pesquisas fora dos padrões estabelecidos na legislação e que atentem contra a moral e os bons costumem, ou intervenham em célula germinal, zigoto ou embrião humano. A Lei de Biossegurança brasileira é baseada na Diretiva nº 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de Julho de 19982, a qual define: Artigo 5º. 1. O corpo humano, nos vários estádios da sua constituição e do seu desenvolvimento, bem como a simples descoberta de um dos seus elementos, incluindo a sequência ou a sequência parcial de um gene, não podem constituir invenções patenteáveis. 2. Qualquer elemento isolado do corpo humano ou produzido de outra forma por um processo técnico, incluindo a sequência ou a sequência parcial de um gene, pode constituir uma invenção patenteável, mesmo que a estrutura desse elemento seja idêntica à de um elemento natural. 3. A aplicação industrial de uma sequência ou de uma sequência parcial de um gene deve ser concretamente exposta no pedido de patente. Assim, a legislação brasileira, tal como a Diretiva europeia, adota um posicionamento favorável à concessão "relativa" de patentes sobre material genético. A patente relativa, baseada no princípio geral da exclusão, significa que as descobertas, por si só, não tem uma finalidade prática e apenas revelam um recurso existente na natureza (nesse caso, no próprio corpo humano), sendo necessário que, para tornar o material genético patenteável, exista uma aplicação prática e/ou investigativa (pesquisa) sobre aquela descoberta3. Inclusive, o INPI, nas suas Diretrizes de Exame de Pedidos de Patente na Área de Biotecnologia4, define: 1.1 Quando a invenção envolve sequências biológicas, o requisito de aplicação industrial só é atendido quando é revelada uma utilidade para a referida sequência. Assim, a apresentação de amostra de material genético não será patenteada por si só, devendo preencher uma série de requisitos legais e ficar demonstrada a utilidade daquela pesquisa. Destaca-se, ainda, a discussão sobre a possibilidade de pesquisa de células-tronco. Nos termos do art. 5º da Lei de Biossegurança: Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - sejam embriões inviáveis; ou II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Permite-se, portanto, no Brasil, a utilização das células-tronco, desde que não haja qualquer interferência em embriões, zigotos ou células germinais que virão a desenvolver vida humana. A constitucionalidade do referido artigo foi analisado na ADI 3.510/DF/2008: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5a DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA) . PESQUISAS COM CÉLULASTRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSTITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. Recentemente, a questão foi ressuscitada no Projeto de Lei nº 5.153/2020 e aguarda análise pelo Congresso Nacional: Art. 1º O art. 5º da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 5º É vedada, para quaisquer fins, a utilização de célulastronco obtidas de embriões humanos." (NR) Art. 2º O art. 24 da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 24. Utilizar células-tronco obtidas de embriões humanos: .........................................................." (NR) Art. 3º Esta Lei entra em vigor após decorridos cento e oitenta dias de sua publicação oficial  Não obstante todo o controle bem exercido pelo INPI, propõe-se o estudo da possibilidade de registro de patentes dos materiais genéticos também no RCPN, a fim de ampliar a publicidade e a segurança. O Registro Civil já é órgão competente para o registro de matéria correlata, das relações de filiação decorrentes da inseminação artificial. Embora a Lei de Biossegurança não abarque a fertilização in vitro nos termos da lei civil como objeto patenteável, faz-se interessante a criação de uma ponte entre a área de pesquisa e a prática da inseminação. Logicamente, a análise para a concessão da patente deve permanecer com o INPI, que tem estrutura e peritos competentes para o estudo específico desenvolvido, mas nada impediria a remessa da informação para arquivamento no RCPN, para fins de facilitação ao acesso e fomentação da publicidade proporcionada pela serventia extrajudicial. Além da publicidade, o registro ainda daria uma dupla segurança ao titular da patente, na medida em que facilitaria a difusão do conhecimento dessa medida pela população. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;         (Regulamento)   (Regulamento)  (Regulamento)   (Regulamento) III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus [...] 2 Acesso aqui. 3 PINHEIRO, Rafael de Figueiredo Silva. Da Patenteabilidade de Genes Humanos. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015. Orientador: Professor Doutor Newton Silveira. p. 130 e ss. 4 Disponível aqui.
Este artigo se propõe a analisar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no contexto do Direito Notarial e Registral, concentrando-se na compreensão de sua aplicação dentro do regime censório-disciplinar dos delegatários de serventias extrajudiciais. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) representa uma ferramenta da Justiça Restaurativa que, atualmente, recebe preferência na resolução de conflitos de interesses. Através da busca pela consensualidade, são estabelecidos acordos para restaurar a regularidade no funcionamento dos serviços notariais e de registro, diante de infrações de reduzida gravidade e lesividade. Recentemente, o Provimento 162, de 11 de março de 2024, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNN/CN/CNJ-Extra), introduziu o artigo 135-A no Livro I da Parte Geral, Título VII, Capítulo I, do Código Nacional de Normas. Esta normativa administrativa autoriza o uso do TAC no âmbito disciplinar das serventias notariais e de registro, visando fornecer soluções adequadas para a prevenção e resolução de infrações disciplinares, conforme estabelecido na lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, artigo 31, em conjunto com o Provimento 162/2024 da CN-CNJ, artigos 2º, § 1º e 18. Dessa forma, os Procedimentos Administrativos Disciplinares (PADs) podem ser evitados, a critério do órgão responsável pela fiscalização disciplinar das atividades notariais e de registro, nos casos em que as infrações resultem em repreensão ou multa. Vale ressaltar que o processamento do PAD é válido, mas não é iniciado. Ressalte-se que o processamento do PAD é válido, mas não é instaurado. O Conselho Nacional de Justiça introduziu uma nova disposição em seu regimento interno por meio da Resolução nº 536, de 7 de dezembro de 2023. Essa disposição permite a proposição de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) durante a condução de qualquer processo abrangido pelo capítulo. Quando uma infração disciplinar leve é identificada envolvendo um magistrado, servidor, funcionário judicial ou delegado de serventia extrajudicial, sujeita a uma advertência ou repreensão, o Corregedor Nacional de Justiça ou o sindicante tem a prerrogativa de sugerir ao investigado a assinatura do TAC. Se o investigado concordar, o TAC será homologado pelo Corregedor Nacional de Justiça.1 A concepção consensual e não punitiva de conflitos de interesse no âmbito da Corregedoria Permanente e da Corregedoria Geral da Justiça encontra fundamento legal na lei 9.099/1995, no Código de Processo Penal, no art. 28-A - incluído pelo Pacote Anticrime, lei 13.964/2019 -, na lei 8.429/1992, lei 13.140/2015, art. 32, e o Código de Processo Civil, art. 3º, § 2º, e 1742. O TAC, no contexto do direito notarial e de registro, é o acordo celebrado para solução de controvérsias surgidas da fiscalização do cumprimento dos deveres previstos na lei 8.935/1994, art. 30, bem como nas leis e nas normas das Corregedorias pelos delegatários de notas e de registro, a fim de evitar a produção de prova em procedimentos administrativos potencialmente litigiosos, morosos e custosos3. A solução consensual para regularizar situações contrárias a legislação e os regulamentos será instrumentalizada em documento firmado pela Corregedoria Permanente, a E. Corregedoria Geral da Justiça ou a Corregedoria Nacional do CNJ e o delegatário, estabelecendo as medidas necessárias para correção das irregularidades e garantir o serviço adequado prestados aos usuários pelos notários e registradores4. Infrações disciplinares graves, que possam resultar na perda da delegação, não devem ser objeto de TAC, tampouco aquelas passíveis de suspensão. Dessa forma, o TAC será utilizado apenas para multas ou repreensões5. O objeto do TAC estabelecerá obrigações e compromissos entre as partes envolvidas, com efeitos práticos e executáveis, sem a aplicação do regime disciplinar de notários e registradores, conforme estipulado na Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Ao aceitar o TAC, o notário ou o registrador confessa-se, reconhecendo a inadequação da conduta imputada e comprometendo-se a cumprir condições previstas nos artigos 4º, 5º e 18 do Provimento nº 162/2024, que podem ser adotadas isolada ou cumulativamente. Em relação às eventuais máculas em seu histórico, o artigo 13 do referido Provimento estabelece que a assinatura do TAC não é considerada uma punição disciplinar nem um direito garantido ao investigado. Sua inclusão nos registros funcionais é temporária, limitada a um período de três anos6 após a declaração de extinção da punibilidade devido ao cumprimento. Essa inclusão tem como único propósito evitar que o investigado receba novos benefícios durante esse período. Nos termos do artigo 3º do Provimento nº 162/2024, os delegatários acordam a reparação do dano, salvo absoluta impossibilidade de fazê- lo; a retratação; a correção de conduta; o incremento de produtividade, em até 50% mais; a frequência a cursos oficiais de capacitação e aperfeiçoamento. Poderão ser acordadas outras condições, desde que alinhadas ao propósito de prevenir novas infrações e de promover a cultura da moralidade e eficiência no serviço público. O Corregedor Nacional de Justiça poderá decidir pela utilização da Justiça Restaurativa, hipótese em que as condições serão apenas as estabelecidas no plano de ação eventualmente celebrado, a partir de procedimento restaurativo. Portanto, as condições deverão estar alinhadas ao propósito de prevenir novas infrações e de promover a cultura da moralidade e eficiência no serviço público, nos termos do Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 3º, § 1º, c.c. os incisos do caput7. Alinhado a estes princípios, objetiva-se eliminar irregularidades, a incerteza jurídica, situações potencialmente contenciosas ou atentatórias às instituições notariais e de registro, bem como de estabelecer a compensação por benefícios indevidos ou prejuízos, públicos ou privados, resultantes das condutas praticadas. Os requisitos para a celebração do TAC, conforme estipulado no Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, incluem a identificação das partes envolvidas, ou seja, dos notários e registradores, bem como das Corregedorias Permanentes, Corregedorias Gerais das Justiças ou Corregedoria Nacional do CNJ. Além disso, o notário ou o registrador não podem estar respondendo a um PAD já instaurado por outro motivo, ter sido penalizado disciplinarmente, ter celebrado TAC ou outro instrumento semelhante nos últimos três anos. A homologação pela Corregedoria Nacional do CNJ é necessária para sua validação. Ademais, o TAC deve conter a descrição detalhada das irregularidades e pendências a serem corrigidas; os fundamentos de fato e de direito para sua celebração, o estabelecimento de obrigações e compromissos específicos para cada parte, os prazos para o cumprimento das obrigações estabelecidas. os mecanismos de fiscalização e acompanhamento do cumprimento do termo e possíveis sanções em caso de descumprimento das obrigações.8 Portanto, o TAC incluirá a correção das irregularidades identificadas, por meio de obrigações objetivas e claras para as partes, evitando ou suspendendo o procedimento administrativo disciplinar - PAD - ou as penas, desde que cumpridos os prazos e compromissos estabelecidos. A fiscalização e o exercício do poder censório-disciplinar durante o período estipulado no TAC podem levar à conclusão pelo cumprimento, pelo notário ou registrador, das obrigações acordadas e à extinção da punibilidade (3 anos), ou à constatação da frustração dos objetivos, resultando na aplicação das punições disciplinares previstas nos artigos 33 e 34 da lei 8.935/1994. O TAC é o instrumento legal destinado a obter, do causador do dano, um título executivo extrajudicial, por meio do qual o comprometido se compromete a adequar suas condutas às exigências da lei, sob pena de sanções estabelecidas no próprio termo. Dessa forma, trata-se de um negócio jurídico unilateral e potestativo, conforme previsto no §2º do art. 8º do Provimento, que requer a concordância irrestrita do investigado para que o TAC seja homologado pelo Corregedor Nacional. Destaca-se que a homologação é um requisito essencial para a validade do negócio. Ressalte-se que referida homologação é elemento de existência e validade do negócio. Embora o artigo 13 do Provimento nº 162/2024 estipule que a celebração do TAC não constitui uma pena disciplinar e não confere um direito subjetivo ao investigado, equipara-se à pena, uma vez que é causa de extinção da punibilidade, conforme disposto no artigo 11. Quando todas as condições estabelecidas no TAC são cumpridas, a punibilidade do investigado pela infração administrativa é declarada extinta, com o arquivamento definitivo dos autos. É importante ressaltar que a extinção da punibilidade implica na perda da pretensão punitiva do Estado, ou seja, não há mais a possibilidade de impor uma pena ou sanção ao réu. A Justiça Restauradora e a busca de soluções extrajudiciais pelo ordenamento jurídico moderno trouxeram para fiscalização de notários e registradores o Termo de Ajustamento de Conduta. A moderna compreensão do serviços extrajudiciais continua a aprimorar o sistema que presta serviços voltados para segurança jurídica nos atos e negócios jurídicos civil e de outras naturezas atribuídas por lei. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) oferece diversos benefícios tanto para as partes envolvidas quanto para a sociedade em geral. Para as partes, representa uma maneira rápida e eficiente de resolver disputas legais, evitando os custos e incertezas do litígio judicial. Além disso, possibilita que as partes desempenhem um papel ativo na solução do problema, ao invés de dependerem exclusivamente de uma decisão judicial. A instauração de processos disciplinares é reservada para casos em que outros mecanismos não conseguem restaurar a ordem interna ou evitar a desordem administrativa, seguindo os princípios da eficiência e do interesse público. Dessa forma, busca-se racionalizar os procedimentos administrativos, simplificar processos e eliminar controles excessivos. Ao celebrar o acordo extrajudicial, o Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) é suspenso, evitando-se assim a investigação suplementar de infrações disciplinares mais graves. No entanto, apesar de suas vantagens, o TAC também enfrenta desafios e limitações. As desvantagens incluem a admissão da infração como parte do acordo, o que pode acarretar punições disciplinares em caso de descumprimento. As obrigações acordadas também se somam às responsabilidades ordinárias do profissional. Por fim, o TAC fica registrado no histórico do notário ou registrador, podendo afetar sua participação em futuros concursos devido à admissão de infrações disciplinares. Sua eficácia pode depender da boa-fé e cooperação das partes, assim como da capacidade de implementar e monitorar as medidas acordadas. Além disso, embora o TAC não seja considerado uma pena disciplinar, sua celebração resulta na extinção da punibilidade do investigado pela infração administrativa, o que impede a imposição de penalidades adicionais pelo Estado. __________ 1 "Art. 47-A. No curso de qualquer processo deste capítulo, uma vez evidenciada a prática de infração disciplinar por parte de magistrado, servidor, serventuário ou delegatário de serventia extrajudicial em que se verifique a hipótese de infração disciplinar leve, com possível aplicação de pena de advertência ou censura, o Corregedor Nacional de Justiça ou o sindicante poderá propor ao investigado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que uma vez aceito pelo investigado será homologado pelo Corregedor Nacional de Justiça." 2 O regime jurídico do termo de ajustamento de conduta não se resume a estas leis. Outras Leis incidentes na temática são bem como na lei 8.069/1990, art. 211, a lei 7.347/1985, art. 5º § 6º; o Código de Defesa do Consumidor, no at. 113; e na lei 9.605/1998, art. 79-A, §§ 5º e 6º.  3 Cf. O. J. DE PLÁCIDO E SILVA (in Vocabulário Jurídico, atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Priscila Pereira Vasques Gomes - 31. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 2;086) é um mecanismo de solução extrajudicial de conflitos pautado pela negociação entre as partes e tem por finalidade fazer cessar ou buscar danos ou penas contra aquele que pratica a ação ou omissão ilícita ou que cause danos.  . 4 Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 3º.   5 Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 2º, § 1º, in fine   6 Nos termos do art. 131 da Lei nº 8.112/90: As penalidades de advertência e de suspensão terão seus registros cancelados, após o decurso de 3 (três) e 5 (cinco) anos de efetivo exercício, respectivamente, se o servidor não houver, nesse período, praticado nova infração disciplinar. Parágrafo único.  O cancelamento da penalidade não surtirá efeitos retroativos. 7 Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 3º, in verbis: "Com a aceitação do TAC, o investigado se compromete a reconhecer a inadequação da conduta a ele imputada e a cumprir as seguintes condições,  que poderão ser adotadas isolada ou cumulativamente: I - reparação do dano, salvo absoluta impossibilidade de fazê-lo; II - retratação; III - correção de conduta; IV - incremento de produtividade; V - frequência a cursos oficiais de capacitação e aperfeiçoamento; VI - suspensão do exercício cumulativo e remunerado de funções judiciais; VII - suspensão do exercício remunerado de funções administrativas ou de caráter singular ou especial.   8 Provimento nº 162/2024, da CN-CNJ, art. 8º, § 1º, incisos. 
Neste artigo, serão analisados os impactos da Emenda Constitucional 131, de 3 de outubro de 2023, que alterou questões relacionadas ao direito de nacionalidade, especialmente no contexto das atividades realizadas nos tabelionatos e registros públicos. O Estado da Pessoa Natural é uma representação de sua posição jurídica em diferentes contextos: político, familiar e individual. Ele reflete a soma de suas características na sociedade e é essencial para sua identificação no sistema jurídico, juntamente com seu nome e domicílio. A definição do estado da pessoa natural é crucial para a realização de atos civis, e é por isso que toda entrada nos registros públicos começa com essa informação1. No Registro Civil das Pessoas Naturais, o estado civil faz parte da descrição do titular do direito registrado, como visto nos procedimentos de habilitação para o casamento e nos registros matrimoniais, além de ser relevante na identificação das testemunhas. No que diz respeito aos registros de nascimento, embora incluam informações sobre a nacionalidade dos pais do registrado, não é apropriado registrar o estado civil, pois é proibido inserir no registro dados que indiquem qualquer diferenciação em relação à natureza da filiação. O estado político aborda as questões relacionadas à política e à nacionalidade de uma pessoa, especialmente aquelas relacionadas à sua condição como nacional, estrangeiro, apátrida ou com múltiplas nacionalidades. O registro civil de nascimento atua como uma prova direta e imediata da nacionalidade de uma pessoa, o que é fundamental para o exercício dos direitos políticos. A nacionalidade, de acordo com a Constituição de 1988, é considerada um direito fundamental e pode ser definida como o vínculo legal e político interno que faz com que uma pessoa seja parte integrante da população de um Estado. Essa ligação, portanto, conecta o indivíduo a um Estado específico, tornando-o sujeito às leis desse Estado. Tal direito é reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, art. XV, que também veda o estado de apatridia (vínculo local ou ascendência)2. Segundo José Afonso da Silva, nacionalidade e cidadania são conceitos distintos, sendo o primeiro atribuído aos brasileiros natos ou naturalizados, enquanto a cidadania qualifica o indivíduo para desfrutar de direitos políticos e participar ativamente na vida do Estado3. A nacionalidade originária é aquela considerada como primária e concedida desde o nascimento, sendo atribuída de forma involuntária. Pode resultar tanto do local de nascimento (princípio do jus soli)4 quanto da nacionalidade dos pais (princípio do jus sanguinis)5. Por outro lado, a nacionalidade derivada é adquirida de forma voluntária, geralmente através do processo de naturalização. Geralmente, implica em uma mudança da nacionalidade anterior, pois requer uma expressão de vontade por parte do indivíduo6. A importância da nacionalidade como componente do estado civil de uma pessoa foi mais relevante no passado do que é atualmente, especialmente em um mundo globalizado com um constante intercâmbio de pessoas. Nesse contexto, D. A. DALLARI adverte que a análise natural dos elementos do Estado sugere que o plurinacionalismo é a regra, ou seja, em cada povo há indivíduos de inúmeras nacionalidades7. Desde os tempos do sistema jurídico romano, essa questão tem sido uma preocupação, com o status civitatis representando a dependência de um indivíduo em relação a uma comunidade juridicamente organizada. Inicialmente, esse vínculo estava entre os homens livres e a cidade de Roma. Apesar da posterior expansão, os romanos não abandonaram a concepção de cidade-Estado, criando uma categoria para representar, ao lado dos cives (cidadãos), os súditos livres (peregrini = peregrinos) que não o eram8. O Brasil, como um país formado por imigrantes e com uma rica diversidade cultural, reflete essa complexidade. A nacionalidade é um elemento crucial na qualificação por notários e registradores, além de ser um requisito para vários atos praticados nos Registros Públicos, como na aquisição de imóveis rurais por estrangeiros (Lei nº 5.709/1971), participação em empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 222 da CF), bem como na opção de nacionalidade e sua eventual perda. A alteração proposta pela Emenda Constitucional nº 131/2023 no artigo 12, § 4º, da Constituição Federal, referente à perda da nacionalidade brasileira, destaca-se pela sua significativa relevância. Agora, o cidadão somente perderá sua nacionalidade brasileira mediante um pedido expresso por escrito, e ainda assim, terá a possibilidade de readquiri-la posteriormente. Anteriormente, a nacionalidade derivada era declarada perdida mediante o cancelamento da naturalização por sentença judicial, em casos de atividade nociva ao interesse nacional, ainda baseada na antiga lei de segurança nacional (Lei nº 7.170/1983) declarada inconstitucional pelo STF. Houve considerável debate doutrinário e jurisprudencial sobre o significado dessa atividade "nociva"9. A Constituição Federal de 1988 não especificava o que seria considerado "atividade nociva ao interesse nacional" para justificar a perda da nacionalidade por punição. A Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), ao tratar desse assunto, não esclareceu esse conceito vago, apenas mencionando o risco de tornar alguém apátrida. Em um caso incomum de definição judicial do termo "atividade nociva", o TRF da 3ª Região confirmou a perda da nacionalidade de uma brasileira naturalizada que cometeu crimes de falsificação de documentos e introdução clandestina de estrangeiros, conforme previsto no Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/80)10. Com a nova redação introduzida pela emenda, o cancelamento da naturalização passa a ser uma das causas de perda da nacionalidade em duas situações: em primeiro lugar, na ocorrência de fraude no procedimento de naturalização, o que resulta em sua nulidade e eventual trasladação no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais;11 em segundo lugar, de forma mais ampla e superveniente à aquisição da nacionalidade brasileira, nos casos de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.  Esse conceito amplo de "atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático" pode ser aplicado conforme previsto no Código Penal, especialmente nos crimes contra o Estado Democrático de Direito, incluídos no Título XII da Parte Especial do Código pela lei 14.197/2021, arts. 359-I a 359-T (dos crimes contra a soberania nacional, dos crimes contra a instituição democrática, dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral, dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais). A nacionalidade originária e derivada brasileira podem ser perdidas mediante  renúncia expressa do titular, desde que isso não resulte em estado de apatridia. Portanto, os brasileiros natos que adquirirem outra nacionalidade estrangeira não estão mais sujeitos à perda de sua nacionalidade brasileira, desde que a nova nacionalidade seja devidamente averbada no assento de nascimento, conforme previsto no art. 102, 5º, da LRP, por meio de comunicado emitido pelo Ministério da Justiça, cuja competência foi atribuída pelo decreto 3.453/2020. Ressalte-se que o objetivo do sistema é evitar a situação dos heimatlos (indivíduo que se encontra desprovido de nacionalidade). Nesse sentido, é necessário que o renunciante possua a nacionalidade de outro país como requisito para o ato, a fim de evitar o estado de apatridia. Vale ressaltar que a reaquisição futura da nacionalidade brasileira também é permitida, conforme estabelecido pela inclusão do § 5º ao art. 12 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 131/2023, com a devida averbação no assento de nascimento. Conforme analisado, os efeitos decorrentes da nova ou dupla nacionalidade refletem no Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante averbação no assento de nascimento, conforme previsto no art. 102, 5º, da LRP, por meio de comunicado emitido pelo Ministério da Justiça. Isso significa que os registradores terão a responsabilidade de analisar uma quantidade maior de atos que impactam a relação legal entre o cidadão e o Estado Brasileiro, o que pode resultar na perda de mandatos eletivos, cargos, empregos ou funções públicas, já que a nacionalidade brasileira é um requisito essencial para o exercício dessas atribuições.  Ainda, esses efeitos podem incluir a submissão ou não aos requisitos estabelecidos pela lei 5.709/1971, regulamentada pelo decreto 74.965/1974, para aquisição de imóveis rurais no Brasil, tais como a exigência de escritura pública e os limites de área em determinado município para estrangeiros ou nacionais do mesmo país. Ainda há incerteza quanto à questão de se a renúncia da nacionalidade brasileira resulta ou não na perda da propriedade para o ex-nacional. De um lado, a renúncia é um negócio abdicativo, que altera o estado da pessoa, porém, o sistema brasileiro tem com regra a irretroatividade dos efeitos de modificações de estado político, o qual pode ser considerado um direito adquirido, no caso, a propriedade. No Registro Civil de Pessoas Jurídicas, a questão da nacionalidade também se mostra relevante, especialmente no que diz respeito à obrigatoriedade de matrícula no RCPJ para empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora, de sons e imagens, conforme previsto no artigo 222 da Constituição, que limita a participação de estrangeiros nessas empresas a até 25% do capital total e votante. Outros efeitos decorrentes da renúncia e reaquisição da nacionalidade brasileira podem ser objeto de estudo adicional. No entanto, é evidente que a nacionalidade desempenha um papel crucial nos tabelionatos e registros públicos. A mudança introduzida pela Emenda Constitucional 131/2023, no artigo 12 da Constituição Federal de 199812, é vista como positiva, pois se adapta à nova realidade de cidadãos plurinacionais em diversos países do mundo, bem como atende às necessidades das pessoas e à sua plurinacionalidade. A distinção entre nacionalidade e cidadania, a necessidade de evitar a apatridia e a possibilidade de renúncia seguida de reaquisição da nacionalidade são aspectos fundamentais abordados nesse contexto. Essas mudanças impactam diretamente os registros públicos e tabelionatos, exigindo uma análise mais criteriosa dos atos que envolvem a nacionalidade dos cidadãos. A voluntariedade na perda da nacionalidade brasileira e os efeitos decorrentes desse processo ganham destaque, ressaltando a importância de garantir a segurança jurídica e a proteção dos direitos dos indivíduos em um cenário cada vez mais plural e diversificado. Diante desse cenário de transformações e adaptações legais, é essencial que os profissionais do direito estejam atualizados e preparados para lidar com as questões relacionadas à nacionalidade, garantindo o pleno exercício dos direitos e deveres dos cidadãos em um contexto nacional e internacional em constante evolução. A Emenda Constitucional trouxe alterações significativas tanto na perda da nacionalidade por punição, alterando profundamente seus fundamentos, quanto na perda por aquisição, que foi eliminada. Isso resultou em uma restrição significativa à possibilidade de perda da nacionalidade brasileira. Portanto, pode ser considerada uma Emenda Constitucional que tem como objetivo a preservação da nacionalidade, na medida em que eliminou a figura tradicionalmente conhecida como "polipatria proibida" e também restringiu o cancelamento da naturalização de um indivíduo por meio de sentença judicial, ressaltando a relevância da nacionalidade como aspecto do estado da pessoa natural, especialmente em um mundo globalizado caracterizado por um constante intercâmbio de pessoas. __________ 1 Cf. V. F. KÜMPEL - C. M. FERRARI, Tratado de direito notarial e registral, 2ª ed., São Paulo, YK, 2022, p. 168.    2 Cf. F. K. COMPARATO (in A afirmação histórica dos direito humanos, 7ª ed. rev. e atual., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 245-246. 3 Cf. Curso de direito constitucional positivo, 26ª ed. rev. e atual, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 319.   4 CF, art. 12, I, "a"; LRP, art. 50, caput 5 CF, art. 12, I, "c"; LRP, art. 32 6 Lei 13.445/2017, art. 64 e seguintes 7 Cf. DALMO DE ABREU DALLARI, Elementos de teoria geral do Estado, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 135 8 Cf. J.C. MOREIRA ALVES, Direito Romano, 18ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 2018, p 140-141. 9 Como bem ressaltou o ex-MIN. MARCO AURÉLIO DE MELLO, obtiter dictum, no Recurso Ordinário em Mandado De Segurança 27.840, do Distrito Federal, julgado em 07/02/2013, o Constituinte deixou aberta a redação para os casos de perda, porque "n" são as hipóteses que justificava a perda da nacionalidade. Cf. o ex-Min. Marco Aurélio de Mello, a que se transcreve "Penso que a cláusula do inciso I do § 4º do artigo 12 da Constituição Federal é abrangente, no que revela que o cancelamento - é a situação jurídica - da naturalização deve decorrer de sentença judicial. É certo que na parte final do preceito se tem "em virtude", apontando-se causa, mas, a meu ver, essa referência: "em virtude de atividade nociva ao interesse nacional", é simplesmente exemplificativa, porque "n" situações podem surgir a desaguarem na cassação, no cancelamento da naturalização".  10 AC 00163489720064036100, Rel. Des. Fed. Marli Ferreira, e-DJF3 26/09/2013. 11 Cf. Enunciado 1 da I Jornada de Direito Notarial e Registral: É possível trasladar os registros civis estrangeiros de nascimento, casamento e óbito de brasileiros naturalizados no Livro E do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais competente mediante a apresentação do certificado de naturalização e dos demais documentos exigidos na Resolução CNJ n. 155/2012. Somado a este, o enunciado 8 da mesma Jornada, cujo teor, in verbis: "Para inscrição dos demais atos relativos ao estado civil, é possível o registro da naturalização no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, após sua concessão pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública". 12 § 4º - Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que: I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de fraude relacionada ao processo de naturalização ou de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; II - fizer pedido expresso de perda da nacionalidade brasileira perante autoridade brasileira competente, ressalvadas situações que acarretem apatridia. § 5º A renúncia da nacionalidade, nos termos do inciso II do § 4º deste artigo, não impede o interessado de readquirir sua nacionalidade brasileira originária, nos termos da lei.
terça-feira, 5 de março de 2024

Nascimento no dia 29 de fevereiro e o RCPN

O acréscimo do dia 29 ao mês de fevereiro a cada 4 anos (chamados anos bissextos) resultou de um ajuste de calendário ao longo dos séculos para se estabelecer uma compensação de horas no ciclo solar, que tem duração de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos. O acréscimo foi inicialmente introduzido no calendário Juliano, organizado em 46 a. C. Esse calendário teve como objetivo fixar a duração de um ano comum de 365 dias, dividido em 12 meses, e intercalar o dia extra, a princípio, a cada 3 anos.  Antes da modificação proposta, o ano iniciava-se no mês de março e terminava apenas em fevereiro. Porém, não havia a padronização de 30 a 31 dias dentro de cada mês, tal qual a atual; os meses, na verdade, eram contados em ciclos lunares, considerando-se também os equinócios, solstícios e outros fatores naturais. Assim, o calendário Juliano visou padronizar a duração e quantidade de meses do ano, bem como realizar essa compensação do ciclo solar a cada 3 anos, criando-se o dia extra em fevereiro (que era, anteriormente, o último mês). Em 1582 A. D., ocorreu uma nova reforma promovida pelo Papa Gregório XIII, introduzindo-se o conhecido calendário Gregoriano, utilizado até os dias de hoje. O novo calendário visou sanar a compensação de dias de divergências que surgiram ao longo da utilização do calendário Juliano, bem como determinou a data do dia extra do ano bissexto para o dia 29 de fevereiro, reajustando-o para ocorrer a cada 4 anos pares. Nossa controvérsia surge, então, sobre o registro dos nascimentos ocorridos no dia 29 de fevereiro, que acontece somente a cada 4 anos. Há quem defenda que o registro deverá constar o próprio dia 29 de fevereiro, a fim de se manter a veracidade do registro. Concorda-se com esse pensamento para a emissão da DNV e a lavratura do assento de nascimento, visto que é necessária a correspondência dos dados do Registro Civil com a realidade. Contudo, faz-se uma ressalva para a certidão de nascimento extraída desse assento. A fim de proteger o cidadão, aponta-se que o correto seria que as certidões gerais constassem o nascimento no dia 1º de março, imediatamente subsequente1, reservando-se à certidão de inteiro teor com a data do dia 29 de fevereiro apenas aos legitimamente interessados. Publicizar o nascimento da pessoa no dia existente apenas a cada 4 anos (principalmente enquanto crianças) pode expô-la ao ridículo e causar prejuízos em sua vida comum, complicando fatos cotidianos simples como a comemoração de seu aniversário na comunidade, o cadastro de sua data de nascimento em sistemas gerais (que, muitas vezes, beneficiam os usuários no dia ou mês de seu aniversário), além de desloca-la da sociedade.  A atividade notarial e registral e, principalmente, o Registro Civil das Pessoas Naturais tem como um de seus objetivos e princípios a eficácia dos atos jurídicos (art. 1º da LRP e da lei 8.935/94). Assim, devem primar pela proteção do usuário e para que seus atos efetivamente auxiliem a vida cotidiana das pessoas, e não a atrapalhem. Adotar a regra de constar na certidão de nascimento o dia 29 de fevereiro apenas prejudica a pessoa, não lhe trazendo qualquer benefício. Em contrapartida, mantendo-se o assento originário com a informação real e apenas a certidão para o dia 1º de março, preserva-se a intimidade da pessoa, bem como a veracidade registral. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! ------------------------------- 1 Em interpretação analógica do art. 132, §2º do Código Civil: Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. § 1 o Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Concursos de cartório previstos para 2024

A atividade notarial e registral está em grande projeção nacional, em vista da forte tendência à extrajudicialização de atos antes privativos da jurisdição e da qualidade do serviço prestado pelas serventias extrajudiciais. Em razão disso, os Tribunais de Justiça estaduais seguem organizando constantemente os concursos públicos para a outorga das delegações, evitando-se a vacância das serventias, em observação aos comandos constitucionais. Como se sabe, nos termos do art. 236, §3º da Constituição Federal, o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Os concursos para o ingresso na atividade, comumente conhecidos como "Concursos de Cartório", são divididos nas seguintes fases: Prova objetiva (em regra, eliminatória); Prova escrita e prática (eliminatória e classificatória); Prova oral (eliminatória e classificatória); Entrevista e Avaliação de Títulos (classificatória). A prova objetiva, primeira fase, consiste em questões de múltipla escolha sobre as disciplinas dispostas no edital. Essa etapa é, em regra, eliminatória e não é permitido consultar nenhum tipo de material. Na prova escrita e prática, que tem caráter eliminatório e classificatório, normalmente, é composta por dissertação e elaboração de peça prática, além de questões discursivas. Nesta fase, o candidato possui direito a consulta à legislação não comentada ou anotada. A terceira fase consiste em uma prova oral, cujo caráter é eliminatório e classificatório. Os candidatos são convocados e devem comparecer presencialmente para responder a perguntas feitas pelos examinadores, tudo de forma oral, sem possibilidade de anotações.  A ordem dessa arguição é definida por sorteio e ocorre, na maior parte dos casos, de forma individual, com um candidato interagindo apenas com um examinador. Entretanto, em estados como São Paulo e outros, há uma espécie de rodízio e os candidatos são arguidos por todos os examinadores presentes. Por fim, há a avaliação de títulos que consiste na apresentação dos comprovantes de atividades desenvolvidas pelo candidato. A cada título, é atribuída uma pontuação, que irá compor a nota final do candidato no concurso, conforme os critérios da resolução nº 81/2009 do CNJ1. Para o ano de 2024, temos inúmeros concursos previstos e em andamento. A saber: Acre Status: Há concurso em andamento. A prova escrita e prática que ocorreu no dia 18 de fevereiro de 2024. Perspectivas: Aguardando o resultado da prova escrita e prática e o agendamento da prova oral. Alagoas Status: Há concurso em andamento. A prova escrita e prática ocorreu em 22 de outubro de 2023. Previsão: Aguardando o resultado da prova escrita e prática e o agendamento da prova oral. Amazonas Status: Há concurso em andamento. A prova escrita e prática ocorreu em 17 de dezembro de 2023. Previsão: Aguardando o resultado da prova escrita e prática e o agendamento da prova oral. Bahia Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Maranhão Status: Há concurso em andamento. No dia 29 de outubro de 2023 ocorreu a prova escrita e prática. Perspectivas: aguardando-se o resultado e as definições para a prova oral. Mato Grosso Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. No dia 14 de novembro de 2023 foi divulgado a lista de serventias vagas. Banca Organizadora: Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção (Cebraspe) Minas Gerais Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Pará Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Lista de serventias vagas publicada Paraíba Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Banca Organizadora: Consulplan Pernambuco Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Rio Grande do Norte Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Rondônia Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Roraima Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Banca Organizadora: Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe). Santa Catarina Status: Há concurso em andamento. Perspectiva: No dia 30/01/24 houve a reabertura do prazo para envio dos documentos para outorga e dos títulos. A fase oral foi agendada para o dia 03 de abril de 2024. São Paulo Status: Há previsão de Edital para o concurso no primeiro trimestre de 2024. O 13º concurso de cartório de São Paulo teve sua abertura aprovada e no dia 10 de novembro de 2023 foi publicada a lista de serventias vagas. Comissão Examinadora: Já está formada. Sergipe Status: Há concurso em andamento. Perspectiva: A prova escrita e prática foi agendada para o dia 10 de março de 2024. Aos que almejam se tornarem titulares de uma serventia extrajudicial, deixamos nosso convite para fazer parte da VFK Educação. Em 2024, a VFK está completando 25 anos de atuação na preparação de candidatos para esse certame. A VFK é líder de aprovação em Concursos de Cartório desde 1999 e foi idealizada para a preparação dos candidatos em alta performance e especialização de seus alunos em Direito Notarial e Registral. Será uma alegria receber os próximos futuros titulares. Siga-nos no instagram @cursovfk Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 "7.1. O exame de títulos valerá, no máximo, 10 (dez) pontos, com peso 1 (um), observado o seguinte: I - exercício da advocacia ou de delegação, cargo, emprego ou função pública privativa de bacharel em Direito, por um mínimo de três anos até a data da primeira publicação do edital do concurso (2,0); II - exercício de serviço notarial ou de registro, por não bacharel em direito, por um mínimo de dez anos até a data da publicação do primeiro edital do concurso (art. 15, § 2º, da Lei n. 8.935/1994) (2,0); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) III - exercício do Magistério Superior na área jurídica pelo período mínimo de 5 (cinco) anos: a) mediante admissão no corpo docente por concurso ou processo seletivo público de provas e/ou títulos (1,5); b) mediante admissão no corpo docente sem concurso ou processo seletivo público de provas e/ou títulos (1,0); IV - diplomas em Cursos de Pós-Graduação: a) Doutorado reconhecido ou revalidado: em Direito ou em Ciências Sociais ou Humanas (2,0); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) b) Mestrado reconhecido ou revalidado: em Direito ou em Ciências Sociais ou Humanas (1,0); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) c) Especialização em Direito, na forma da legislação educacional em vigor, com carga horária mínima de trezentos e sessenta (360) horas-aula, cuja avaliação haja considerado monografia de final de curso (0,5); V - exercício, no mínimo durante 1 (um) ano, por ao menos 16 horas mensais, das atribuições de conciliador voluntário em unidades judiciárias, ou na prestação de assistência jurídica voluntária (0,5); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) VI - período igual a 3 (três) eleições, contado uma só vez, de serviço prestado, em qualquer condição, à Justiça Eleitoral (0,5). Nas eleições com dois turnos, considerar-se-á um único período, ainda que haja prestação de serviços em ambos."
terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Retrospectiva 2023 - Direito Notarial e Registral

O ano de 2023 foi a prova viva de que a atividade notarial e registral, principalmente pela extrema qualidade de seus agentes, está no epicentro de atuação legislativa, cabendo mencionar: lei 14.620/23 e lei 14.711/23, ambas buscando o desenvolvimento econômico do Brasil no cenário mundial. Em julho, foi publicada a lei 14.620/2023, sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e que promoveu outras alterações diversas, como na Lei de Desapropriação, instituindo-se o direito real de imissão provisória na posse, e na Lei nº 6.766/1979, possibilitando o regime de afetação nos loteamentos. Na ocasião, discutimos algumas questões levantadas pela referida normativa. A respeito do Programa Minha Casa Minha Vida, verificamos inovações na aquisição de propriedade fundada no Direito de Família, nos casos de dissolução de união estável, separação ou divórcio de casal que tenha adquirido um imóvel no âmbito do programa, efetivando-se a transferência da totalidade dos direitos sobre o bem para a mulher, preferencialmente, ou para o homem que tiver a guarda dos filhos menores. Além disso, verificamos a criação do direito real de imissão provisória na posse, que foi elencado no rol do art. 1.225 do Código Civil. Retomamos, então, a discussão acerca do momento da transferência da propriedade na desapropriação, defendendo-se a tese de que a mesma ocorre no momento do pagamento do valor pelo ente público, em vista, justamente, da possibilidade de ser gerado um direito real à Administração muito antes da sentença do processo de desapropriação. Houve ainda importante alteração no art. 176-A da Lei dos Registros Públicos, sobre as hipóteses de abertura de matrícula nova nas situações de aquisição originária da propriedade imóvel; além da possibilidade de inserção do regime de patrimônio de afetação nos loteamentos da lei 6.766/1979. No final do ano, em 30 de outubro, foi publicada também a lei 14.711/2023, conversão do Projeto de lei 4.188/2021, sobre o aprimoramento das garantias. Ainda estamos discutindo os muitos impactos trazidos pela nova normativa, dentre eles, principalmente as alterações no procedimento da alienação fiduciária em garantia e a criação da execução extrajudicial da hipoteca. Foi criada, ainda, a figura do agente de garantias, inserida no art. 853-A do Código Civil, além da solução negocial prévia ao protesto e outras medidas de renegociação de dívida colocadas na lei 9.492/1997. As alterações para o Tabelionato de Protesto e novas possibilidades para os títulos de crédito foram inúmeras e com certeza ainda traremos mais exposições práticas para o início do ano. Em âmbito normativo, não podemos deixar de lado também a criação do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial do CNJ. Já há muito esperado, o Código organizou e atualizou os Provimentos da atividade, dividindo-o por matérias. Umas das alterações, já nele inseridas, que repercutiu no início do ano foi a regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial (Prov. nº 150), que havia sido prevista na lei 14.382/2022. Agora, aguardamos o ano de 2024 com mais novidades positivas na atividade notarial e registral e a expectativa de implementação do SERP. Deixamos, por fim, um agradecimento especial aos colaboradores da nossa Coluna Registralhas, que foram essenciais para os nossos artigos do ano: Fernando K. Mady; Marcos Claro; Natália Sóller e Victor V. Fogolin!!! Desejamos a todos um excelente fim de ano com muito estudo, foco e dedicação plena a aqueles que trabalham no extrajudicial e/ouse preparam para os concursos de outorga de delegação e que vem tornando a atividade notarial e registral um destaque na vida da sociedade brasileira. Sejam felizes!
A hipoteca experimentou um processo de declínio desde o surgimento da alienação fiduciária no ordenamento brasileiro, com o advento da Lei do Mercado de Capitais (Lei n° 6385/1976). Como elucidamos em artigo anterior1, diante da tendência legislativa de criação de meios mais céleres para a recuperação do crédito, a execução de garantia hipotecária tornou-se menos utilizada, por gerar um processo judicial demorado e oneroso, que inviabilizava a própria concessão do crédito imobiliário, fortalecendo, de outro lado, a alienação fiduciária em garantia. Como tentativa de solucionar a morosidade da excussão da garantia hipotecária, incentivando o retorno de sua importância, o legislador criou a execução extrajudicial da hipoteca, prevista no art. 9° da lei 14.711/2023, em regime similar ao da alienação fiduciária. Constitucionalidade e histórico da execução extrajudicial Como gênero, a execução extrajudicial já era contemplada em leis especiais, que autorizavam a alienação do bem empenhado independentemente de ação judicial, desde que houvesse autorização expressa no contrato de penhor2. A execução extrajudicial da hipoteca também não se mostra inteiramente uma novidade no ordenamento, pois já era prevista no decreto-lei 70/66, embora com escopo restrito ao Sistema Financeiro de Habitação e promovida pelo agente fiduciário da garantia (particular imparcial, incumbido de verificar a regularidade e dar cumprimento ao acordo). A constitucionalidade do procedimento foi questionada perante o STF no Recurso Extraordinário n° 627.106, sob a alegação de ofensa desproporcional ao devido processo legal e ao direito de propriedade (art. 5°, LIV da CF: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"). Como relatado pelo Ministro Marco Aurélio, esse argumento baseava-se na "automaticidade de providências, que acaba por alcançar o direito de propriedade, fazendo perder o devedor, sem possibilidade de defender-se, o bem que até então integrava seu patrimônio", em uma posição abusiva do credor. Porém, prevaleceu o entendimento de que não há qualquer ofensa a esses direitos, já que o procedimento não afasta o controle judicial, mas inverte a fase de intervenção, que passa, como regra, a ser posterior ao procedimento. O devedor é intimado a acompanhar o procedimento, podendo impugnar, inclusive no âmbito judicial, o desenrolar do procedimento, se irregularidades vierem a ocorrer durante o seu trâmite3. Assim, a tese de repercussão geral fixada no RE 627.106 foi: "É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no Decreto-lei nº 70/66". Ressalva-se que o rito do Decreto-Lei 70/66 foi expressamente revogado pela Nova Lei de Garantias, não mais subsistindo. As mesmas razões foram utilizadas pelo STF para declarar a constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária (Lei 9.514/1997), no RE 860631, "haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". Diferenças entre a hipoteca e a alienação fiduciária Como principais diferenças, a hipoteca não implica em transferência da propriedade do imóvel ao credor, permanecendo sob o domínio do devedor, sendo o bem livremente alienável (art. 1475 do Código Civil), enquanto a alienação fiduciária transfere a propriedade resolúvel ao credor com escopo de garantia4, revestindo o bem de inalienabilidade, salvo em caso de anuência do credor. Quanto à forma de constituição, a hipoteca observa a regra do art. 108 do Código Civil, exigindo escritura pública em caso de imóveis com valor superior a trinta salários-mínimos, conforme expresso no art. 9°, §15° da lei 14.711/2023. De outro lado, a alienação fiduciária dispensa instrumento público independentemente do valor (art. 38 da lei 9.514/97). Também, a hipoteca pode ter por objeto bens imóveis e direitos reais sobre estes, elencados no art. 1473 do Código Civil, além de navios e aeronaves. A alienação fiduciária pode ter por objeto bens imóveis (lei 9.514/97) e móveis, regulada pelo Código Civil ou pelo decreto-lei 911/69 (caso se trate de instituição financeira). Por fim, como grande diferença que motivou a alteração legislativa, a hipoteca imobiliária, em regra, exigia a excussão pela forma judicial, com mutação real no momento da assinatura do auto de arrematação, exceto na situação do Decreto-Lei 70, enquanto a alienação fiduciária sobre imóveis, por força da lei 9.514/97, poderia ser concretizada no registro de imóveis, com a averbação da consolidação da propriedade.  Procedimento de execução extrajudicial da hipoteca Por expressa previsão5, o procedimento de execução extrajudicial da hipoteca rege-se, no que for omisso, pelas disposições do rito da alienação fiduciária de bens imóveis. Destaca-se que é requisito de validade do título constitutivo da hipoteca (em regra, a escritura pública) que conste menção expressa ao teor do procedimento de excussão extrajudicial, previsto no art. 9° da Nova Lei de Garantias, ao que recomendamos a cópia desses parágrafos na escritura e uma análise atenta do registrador sobre essa cláusula. Diante do descumprimento do negócio, a garantia hipotecária pode ser executada judicialmente ou perante o registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, em procedimento com a participação do tabelião de notas da circunscrição do local do bem. Como exceção, não se submete ao procedimento de execução extrajudicial o crédito hipotecário oriundo de atividade agropecuária, por força do §13 do art. 9º da Lei das Garantias, em razão de não ser conveniente uma célere execução nesse setor. A motivo dessa previsão é que, no agronegócio, surgem situações em que há conveniência em um atraso do pagamento da dívida (como perspectivas de renegociação com auxílio do governo), bem como intercorrências naturais, que são frequentes nesse ramo, levando ao atraso da prestação. Portanto, o Registrador de Imóveis deverá negar execuções hipotecárias oriundas de crédito do agronegócio. No rito, vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, possuem legitimidade para iniciá-lo o credor ou seu cessionário. Serão intimados pessoalmente pelo Registro de Imóveis, para purgação da mora em 15 dias úteis: o devedor; se for o caso, o terceiro hipotecante; ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos. Ressalva-se que não foi expresso número de parcelas ou valor mínimo para que o credor se utilize desse procedimento. Entendemos, porém, que se aplicam as vedações ao abuso de direito e a teoria do adimplemento substancial, coibindo-se execuções de valores ínfimos, à semelhança do princípio processual da utilidade da execução judicial. O marco inicial do procedimento de excussão extrajudicial da hipoteca é a não purgação da mora nesse prazo, que implica em averbação na matrícula do imóvel, noticiando o início do procedimento. Em importante inovação, fortalecendo o princípio da concentração, essa averbação é obrigatória e deve ser pedida pelo credor nos 15 dias úteis seguintes ao fim do prazo para purgação da mora, sob pena de necessidade de nova intimação. Em até 60 dias após essa averbação, o credor promoverá leilão público do imóvel, que pode eletrônico. O devedor e o terceiro hipotecante devem ser comunicados da data, horário e local deste, por correspondência ao endereço constante do contrato ou outro fornecido, que pode até mesmo ser eletrônico (por e-mail). Destaca-se que o Registrador de Imóveis deve fiscalizar essa comunicação e a regular publicação dos editais de leilão, de modo a permitir ampla divulgação aos licitantes, conforme precedentes do Conselho Superior da Magistratura - SP sobre a mesma questão na execução da alienação fiduciária6. No primeiro leilão, o valor mínimo do lance é aquele estabelecido no contrato para excussão ou o valor de avaliação realizada pelo município para fins do ITBI, o que for maior. No segundo leilão, realizado nos 15 dias úteis seguintes à frustração do primeiro, o valor mínimo, de aceitação obrigatória, é o valor integral da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. Como novidade, é facultado ao credor, se não houver lance nesse valor, que aceite lance que corresponda, no mínimo, a metade do valor de avaliação do bem. Em importante inovação, frustrado o segundo leilão, surgem duas opções ao credor: A primeira opção é, abatendo o valor do referencial mínimo (valor de avaliação ou do ITBI), apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, situação em que, por meio de ato de registro em sentido estrito na matrícula, constará a transmissão de domínio e os leilões negativos em ato único, mediante a apresentação de requerimento de adjudicação ao Registro de Imóveis, acompanhado de auto negativo dos leilões. A segunda opção é a venda direta do bem, em até 180 dias do último leilão, por valor não inferior ao referencial mínimo, dispensando as formalidades do leilão. Nesse caso, como forma de viabilizar a alienação, o credor hipotecário fica investido de mandato legal e irrevogável para representar o devedor, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse. Aplicando-se o mesmo entendimento da alienação fiduciária, conforme precedentes do CSM7, não cabe ao Registrador de Imóveis fiscalizar a observância dos valores mínimos ou do repasse do excedente ao devedor ou dos prazos do leilão da excussão da hipoteca, pois essas etapas possuem caráter obrigacional, reguladas contratualmente (art. 30 da lei 9.514, aplicável subsidiariamente), resolvendo-se em perdas e danos em favor do devedor. Assim, "todas as ações judiciais que digam respeito a litígios decorrentes de cláusulas contratuais e a requisitos procedimentais de cobrança e leilão deverão ser resolvidos em perdas e danos, exceto se relativos à exigência de notificação do devedor"8. Até a alienação em leilão, o devedor ou prestador da garantia têm assegurado o direito de remição da hipoteca, mediante o pagamento da totalidade da dívida acrescida das despesas de cobrança e leilões. Por "totalidade da dívida", devem ser entendidas todas as parcelas do crédito, mesmo aquelas com data futura, seguindo-se a interpretação do STJ9 para previsão semelhante no DL 911 ("totalidade da dívida"), orientando-se pelo escopo da lei de evitar o inadimplemento. Ademais, o Registrador de Imóveis é autorizado a receber esse valor da remição da hipoteca na excussão extrajudicial, repassando as quantias em até 3 dias úteis e averbando a quitação da dívida. Como desvantagem da opção pela excussão extrajudicial, nos financiamentos para aquisição ou construção de imóvel residencial, caso não seja suficiente o produto da excussão, o devedor não responderá pelo saldo remanescente da dívida. Nos demais casos e no sistema de consórcios, o devedor responderá pelo saldo remanescente, por força do art. 1430 do Código Civil. Ata notarial de arrematação Sendo frutífero o leilão, o legislador optou por inovação que une a celeridade com a segurança jurídica. Trata-se da ata notarial de arrematação. Após a conclusão do leilão, os autos deste e do procedimento de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel, para a lavratura dessa ata. Nesse caso, não há livre escolha do tabelião, com a finalidade legislativa de evitar a concorrência predatória. A ata notarial de arrematação conterá os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos do leilão, constituindo título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante, ingressando no fólio real. Entendemos que a atividade do tabelião não se restringe à mera descrição dos documentos, mas também abrange a qualificação de vício formais e materiais que impeçam a arrematação, bem como do pagamento do ITBI e, caso se trate de imóvel enfitêutico, do laudêmio, requisitos para o ingresso no fólio real (art. 9°, §14). Em primeira vista, causaria perplexidade o ingresso de uma ata notarial como título hábil para a transferência de domínio no Registro de Imóveis. Contudo, recorda-se que as cartas de sentença extrajudiciais, hábeis para esse ingresso, também possuem natureza jurídica de ata notarial10. Como importante efeito, iniciando a obrigação do devedor em arcar com a taxa de ocupação e com as despesas de desocupação do imóvel, a data da expedição da ata notarial de arrematação é equiparada à data de consolidação da propriedade na execução da alienação fiduciária. Por fim, destaca-se que a ata notarial de arrematação, em regra obrigatória ao final do rito de excussão extrajudicial da hipoteca, é dispensada no caso de opção do credor pela adjudicação do imóvel em pagamento da dívida, após frustrado o segundo leilão, mediante requerimento de adjudicação ao Registro de Imóveis acompanhado de auto negativo de leilões. Este é um primeiro mergulho de um tema tão intrigante e que merece novos capítulos em outras oportunidades. Sejam felizes! Referêbcia bibliográfica OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada. Migalhas Notariais e Registrais, quarta-feira, 1 de novembro de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 de novembro de 2023. __________ 1 Disponível aqui. 2 Artigos 774, inciso III, do Código Civil de 1916; artigo 279, do Código Comercial; além do artigo 120 da Antiga Lei de Falências. 3 Disponível aqui. 4 Item 224, Cap. XX, NSCGJSP. 5 Art. 9°, §12° da Nova Lei de Garantias. 6 CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 1011556-33.2020.8.26.0114. Campinas, 29 de junho de 2023. Diário da Justiça de 12 de setembro de 2023. Relator: Fernando Antônio Torres Garcia. 7 TJSP; Apelação Cível 1000490-18.2018.8.26.0505; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Ribeirão Pires - 1ª Vara; Data do Julgamento: 26/02/2019; Data de Registro: 01/03/2019. 8 CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 1011556-33.2020.8.26.0114. Campinas, 29 de junho de 2023. Diário da Justiça de 12 de setembro de 2023. Relator: Fernando Antônio Torres Garcia. 9 STJ. 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) (Info 540). 10 CGJSP - RECURSO ADMINISTRATIVO: 39.867/2013. São Paulo, 24 de julho de 2019. Diário da Justiça de 30 de julho de 2019. Relator: Geraldo Francisco Pinheiro Franco.
A lei 14.711/23, Lei de Garantias, promoveu diversas alterações no instituto da alienação fiduciária em garantia, modificando diretamente a lei 9.514/97, o Código Civil e outras leis que regulamentam a matéria. O objetivo desta coluna é analisar como tais alterações reforçam a tese de que a AFG tem natureza jurídica de patrimônio de afetação. Não obstante a nova redação dada ao art. 22 da lei 9.514/97 tenha mantido a definição da AFG como uma forma de propriedade resolúvel1, entende-se que sua natureza mais adequada é a de patrimônio de afetação, não existindo de fato uma resolubilidade com a constituição dessa garantia2. Em rápida análise, destaca-se que a propriedade resolúvel é uma cláusula aquela que está sujeita à extinção por uma condição resolutiva consignada no próprio título de sua constituição ou em determinação legal; nesse cenário, o titular do bem perde sua propriedade plena em favor de seu titular anterior ou de um terceiro, em razão do implemento de uma condição que fora estabelecida pelas partes no momento da transferência da propriedade (no título) ou que estiver prevista na lei. A alienação fiduciária em garantia, por sua vez, é um contrato com o objetivo de garantia, que gera um direito real de desafetação sobre o bem em favor do fiduciante e que não transfere a propriedade plena ao fiduciário para que, após a garantia, ela se resolva. O bem adquirido em alienação fiduciária em garantia, embora esteja em nome inicialmente do fiduciário - para, após, ser transmitido ao fiduciante com a quitação -, fica segregado de seu patrimônio, não pertencendo a ele de forma plena desvinculada de outras obrigações, visto que, mesmo com a consolidação da propriedade diante do inadimplemento, o fiduciário ainda está obrigado a realizar sua aquisição plena e transmissão. Assim, o bem tem a finalidade precípua de servir como garantia daquela relação contratada e apenas se desvincula do gravame quando o crédito é quitado pelo fiduciante ou quando ele é levado a leilão pelo fiduciário em caso de inadimplemento. Ademais, parece que as modificações promovidas pela Lei de Garantias reforçam tal posicionamento. A saber. A inserção do §4º ao art. 22 da lei 9.514/97, passou a admitir as "alienações fiduciárias sucessivas", permitindo-se, portanto, a constituição de mais de uma garantia por alienação fiduciária sobre o mesmo bem3. Num primeiro momento, poder-se-ia ter o entendimento oposto, no sentido de que, justamente por se permitir apor mais de uma garantia sobre o mesmo bem, ele não estaria afetado à primeira alienação fiduciária. Contudo, o que deve ficar muito claro é que, para os credores de segundo grau para frente, a sua garantia ocorre sobre o direito real de aquisição que o fiduciante tem sobre o bem objeto da garantia (art. 1.368-B, CC)4. Quando constituída uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante adquire (até o momento da quitação plena) somente o direito real de aquisição sobre o bem, permanecendo a propriedade - afetada - sob titularidade do credor fiduciário. Dessa forma, o único direito que o fiduciante poderia efetivamente alienar em garantia é o seu direito real à reaquisição, leia-se desafetação, não tendo ainda outros direitos de propriedade sobre o bem passíveis de oneração. Tanto que, pela própria redação do §4º, caso o primeiro credor fiduciário execute o bem, os demais apenas sub-rogar-se-ão no preço obtido, cancelando-se as AFGs posteriores, na medida em que o devedor fiduciante não conseguiu adquirir efetivamente seu direito de propriedade (desconstituindo-se também seu direito real à aquisição). Veja-se que a plena eficácia da alienação fiduciária se dá apenas para a primeira garantia5, tendo esse credor a obrigação apenas de disponibilizar eventual crédito remanescente aos demais. Outra alteração legislativa que reforma o entendimento pela afetação é o "recarregamento" da garantia, inserido nos arts. 9-A a 9-D da lei 13.476/17, sobre constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários, art. 1.487-A do Código Civil e art. 167, II, 37 da Lei dos Registros Públicos. Em resumo, passou-se a permitir a extensão da garantia nas situações de alienação fiduciária e hipoteca, de forma que tais garantias reais poderão servir para mais de uma obrigação ao mesmo tempo. Veja-se que a extensão se difere da sucessividade - nesta última, embora exista mais de uma obrigação, as garantias são, justamente, sucessivas, autônomas entre si. Em âmbito da AFG, exige-se, para tanto, que o credor das obrigações garantidas seja o mesmo e que inexistam outras obrigações garantidas pelo bem a outros credores. Logicamente, não se poderia integrar a garantia para mais de uma obrigação se as partes fossem diversas e se o bem já estivesse onerado a terceiros6. A possibilidade do recarregamento na AFG vai ao encontro do entendimento de que tal garantia gera um patrimônio separado, de forma que a afetação do bem pode ser estendida entre as partes da relação de garantia originária. Em outras palavras, as partes podem "otimizar" a destinação dada ao bem - qual seja a de garantia de alienação fiduciária - funcionando o direito para garantir mais de uma relação obrigacional de crédito entre as partes. Na hipótese de se classificar o instituto como uma propriedade resolúvel, o recarregamento, na verdade, teria que alterar constantemente a "condição suspensiva", de forma a adaptar os termos que permitiriam a resolução da propriedade em favor do devedor. Nesse cenário, a obrigação originária, portanto, seria necessariamente alterada, na medida em que sua conclusão não mais necessariamente geraria a resolução, estando pendentes outras obrigações garantidas pelo bem. Não parece, contudo, que o recarregamento admita alterações no vínculo originário ou das outras obrigações constituídas pelas mesmas partes, entendendo-se que ocorre apenas a extensão da afetação do bem em razão de outros vínculos criados pelas partes, concluindo-se os termos das obrigações de maneira autônoma e permanecendo a afetação até a quitação de todos os créditos. Assim, a adoção do entendimento da natureza da alienação fiduciária em garantia como patrimônio de afetação está em consonância com as novas medidas propostas pela lei 14.711/23. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! _____________ [1] Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023) [2] V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, vol. 5, t. 2, São Paulo, YK, 2020, p. 1775; N. Sóller, Alienação fiduciária em garantia: análise da propriedade fiduciária, do negócio fiduciário, da propriedade resolúvel, do patrimônio de afetação, do elemento de fidúcia e de seus antecedentes no direito romano, Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2023. [3] § 4º Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias. (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023). [4] Nesse mesmo sentido, C. E. E. Oliveira, Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada, in Migalhas, s.l., 01.12.2023, pp. 16 e ss., disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23--uma-analise-detalhada [12.11.2023]. O autor defende de forma muito adequada que o melhor entendimento é o de que o direito gerado ao devedor fiduciante é o direito real à aquisição, que é atual, em vez da "propriedade superveniente" (termo utilizado pela própria lei), que seria um direito futuro, sob condição suspensiva. [5] C. E. E. Oliveira, Lei cit. p. 12. [6] Neste ponto, vale destacar que, para a alienação fiduciária em garantia, previu-se a possibilidade de recarregamento ainda quando houve garantias a instituição financeira diversa sobre o mesmo bem, desde que tal instituição seja integrante do mesmo sistema de crédito cooperativo da instituição financeira credora da operação original ou garantidora fidejussória da operação de crédito original - art. 9-A, §3º, Lei nº 13.476/1997.
O PL 6.204/2019, que atualmente tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial, visando alterar as leis 9.430/1996; 9.492/1997; 10.169/2000; e o Código de Processo Civil. Essencialmente, seu maior objetivo é permitir que a execução de títulos seja conduzida pelo tabelião de protesto - que se tornaria o agente de execução -, tirando uma sobrecarga do Poder Judiciário, na medida em que extrajudicializa o processo de execução em determinadas situações. Trata-se de uma desburocratização da execução e títulos condenatórios de pagamento de quantia certa, a fim de reduzir os custos estatais e dar maior celeridade ao processo. Com a leitura do texto do projeto de lei1, contudo, algumas questões são levantadas sobre os limites da atuação do agente de execução e da formalização dos títulos nesse procedimento. A saber. Questiona-se, primeiramente, sobre a possibilidade de ingresso da certidão de protesto na matrícula dos imóveis, para fins de penhora ou outros gravames. Dispõe o art. 12 do referido Projeto: Art. 12. O agente de execução, de ofício, lavrará certidões referentes ao início da execução, ao arresto e à penhora para fins de averbação nos registros competentes, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros. O Registro de Imóveis está adstrito ao princípio da legalidade, de forma que apenas têm ingresso para registro na matrícula os títulos determinados por lei. O atual rol do art. 221 da lei 6.015/1973, inciso IV, admite, em termos de títulos oriundos de processo judicial, o registro de cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo; parece, portanto, necessária uma adequação para que se permita o ingresso de títulos lavrados pelo agente de execução. Além disso, é razoável que as ordens de gravames de bens emitidas pelo agente de execução cumpram com todos os requisitos necessários à qualificação pelo registrador de imóveis, contendo, por exemplo, a especialidade objetiva e subjetiva, as determinações de benefício da gratuidade da justiça concedido à parte, entre outros. Outro ponto de debate é se, no caso de se promover adjudicação ou arrematação de imóvel no procedimento de execução extrajudicial, a certidão expedida pelo agente de execução seria um título hábil para a transmissão da propriedade ou se haveria a necessidade de uma segunda atuação do tabelião de notas a fim de lavrar uma ata notarial, ou mesmo materializar o negócio jurídico em escritura pública, para o registro da transferência. Necessário pontuar que, na adjudicação ou arrematação, compete ao juiz a lavratura de dois documentos: o auto de adjudicação ou arrematação, o qual consiste no documento de materializa a transmissão da propriedade - configurando-se a transferência do direito real com a sua assinatura -; e a carta de adjudicação ou arrematação, que é o título hábil para ingresso no Registro de Imóveis, nos termos do referido art. 221, IV da LRP2. Assim, a carta de adjudicação ou arrematação deve conter o auto de adjudicação arrematação devidamente assinados pelo juiz, arrematante, serventuário da justiça ou leiloeiro, a descrição completa do imóvel, o controle do recolhimento ITBI e a indicação da existência de ônus real ou gravames sobre o bem3. Parece plenamente viável que o agente de execução lavre o auto de adjudicação ou arrematação no âmbito extrajudicial, fazendo o controle de recolhimento de imposto (o que já é próprio da atividade notarial e registral) e da completa descrição do imóvel. Há que se verificar, contudo, se o legislador optará por manter a competência para a lavratura da carta subsequente com o agente de execução ou se isso será designado ao tabelião de notas por meio de ata notarial ou escritura pública. Num primeiro momento, tendo em vista que a transmissão da propriedade ocorre com a assinatura do auto, parece viável que o agente de execução também formalize o título da carta para ingresso no Registro de Imóveis, visto que ele está diretamente ligado ao procedimento de execução conduzido pelo agente. Compete analisar, ainda, os limites do poder do agente de execução quanto aos requerimentos das partes. Da leitura do Projeto de Lei, infere-se que o agente de execução tem por objetivo administrar e conduzir o procedimento de execução, de forma que, atos de expropriação ou de demandem força devem ser praticados apenas com a intervenção do Judiciário, cabendo ao agente dar andamento a o que se mantiver dentro da regularidade do procedimento geral previsto em lei. No mais, o agente de execução pode e deve encaminhar requerimentos mais sensíveis das partes para o juiz competente, estando seu papel mais voltado à realização da execução e satisfação do crédito, e não ao poder decisório de questões que envolvam mérito ou fujam do procedimento legalmente previsto. Por fim, um ponto de extrema relevância é a exigência do protesto prévio do título para o início do procedimento de execução extrajudicial, nos termos do art. 6º, caput, do PL: Art. 6º. Os títulos executivos judiciais e extrajudiciais representativos de obrigação de pagar quantia líquida, certa, exigível e previamente protestados, serão apresentados ao agente de execução por iniciativa do credor. Recentemente, foi feita uma proposta de emendas aprovadas no Senado Federal ao PL 4.188/20214, sobre o serviço de gestão especializada de garantias. Dentre elas, o art. 11-A da lei 9.492/1997 (que regulamenta o protesto de títulos), o qual permitiria que o tabelião de protesto realizasse conciliação entre credor e devedor, buscando uma composição entre as partes em fase prévia negocial, antes da efetivação do protesto5. O referido projeto foi aprovado em Plenário no dia 3/10/2023 e aguarda somente a sanção presidencial para sua promulgação. Assim, a o que tudo indica, a inclusão do art. 11-A da lei 9.492/1997 será efetivada a fim de se estabelecer a fase preliminar de tentativa negocial anterior ao protesto do título. Dessa forma, não parece razoável que o texto legal sobre o agente de execução mantenha a disposição do art. 6º do PL 6.204/2019, que estaria em desconformidade com a nova redação que incentiva a conciliação anterior ao protesto da dívida e, consequentemente, anterior à execução do título na via extrajudicial. Apesar das questões práticas aqui discutidas, a instituição do agente de execução é medida necessária e importante para desonerar o Poder Judiciário, otimizando-se a atuação das serventias extrajudiciais, cujo serviço garante segurança e celeridade dos procedimentos. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 Disponível aqui. [Acesso em 22.10.2023]. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. 1. ed. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 2. p. 2025. 3 Idem. 4 Disponível aqui. [Acesso em 22.10.2023] 5 Nos termos do relatório de emenda: "Emenda nº 3 - Art. 1º; inciso II (alteração) e Art. 11-A (inclusão): o inciso II do art. 1º é reescrito para substituir a expressão "o aprimoramento das regras de garantias" por "o aprimoramento das regras de garantias e das medidas extrajudiciais para recuperação de crédito"; um novo art. 11-A é acrescentado para facultar ao credor apresentar ao tabelionato de protesto documento de dívida com proposta de solução negocial e para dar aos tabelionatos de protestos poderes para incentivarem a conciliação entre credor e devedor; e para receberem pagamento pelo credor. Emenda nº 3: Trata-se de uma mera faculdade concedida aos tabeliães de protesto para que façam a intermediação da negociação entre credor e devedor. Não é um serviço obrigatório; ele só será prestado se os cidadãos entenderem que ele gera valor".
A lei 14.620/2023 introduziu a imissão provisória na posse decorrente do procedimento judicial de desapropriação por utilidade pública (art. 15 do decreto-lei 3.365/1941) no rol dos direitos reais do Código Civil, elencando-a no inciso XIV do art. 1.225. Além disso, permitiu que o mesmo direito se torne objeto tanto de hipoteca, pelo art. 1.473, XI, do Código Civil, quanto de alienação fiduciária em garantia, nos termos do art. 22, §1º, V da lei 9.514/1997, gerando um ativo econômico. Assim, a imissão provisória na posse passou a figurar entre os direitos reais e estar apto a ser hipotecada ou alienada fiduciariamente em garantia pelo ente público. Em coluna anterior, discorreu-se acerca da natureza jurídica desse direito de imissão provisória na posse decorrente de desapropriação; adotou-se o posicionamento de que a transmissão da propriedade na desapropriação ocorre no instante do pagamento inicial pelo ente público, de sorte a considerar que a imissão provisória na posse, na verdade, não goza da provisoriedade atribuída pelo legislador de 19411. Ocorrendo a transferência com o pagamento, autoriza-se a imissão do ente público na posse do bem, já de forma definitiva, visto que não haverá a possibilidade, por regra, de desistência da desapropriação, correndo em juízo apenas discussões posteriores sobre a complementação do pagamento ou outras questões, e não mais sobre a efetivação da desapropriação em si. Parece que o termo "imissão provisória" foi mantido nas inserções realizadas pela lei 14.620/2023 por se alinhar ao texto do decreto-lei 3.365/1941, porém, os direitos dela oriundos já advêm da transmissão da propriedade efetivada com o pagamento. Nesse sentido, o título de imissão na posse (que é definitivo) serve para permitir a regularização dos direitos para o ente público, inclusive com abertura de matrícula, antes de se aguardar a sentença final e a carta de adjudicação do bem. Assim, o ente público não aguardará o término do processo para ter um título hábil para ingresso no Registro de Imóveis e potenciais direitos de garantia decorrentes. Neste artigo, analisar-se-á com mais detalhes o funcionamento da alienação fiduciária em garantia e hipoteca na imissão provisória. Na hipoteca ou na AFG ocorre a concessão de um crédito pelo titular de direitos, recebendo em garantia pelo devedor um direito real sobre um bem. Parece, nesse sentido, que o maior objetivo da inserção do direito real de imissão provisória na posse no rol de direitos hipotecáveis ou alienáveis fiduciariamente é a obtenção de crédito ao Poder Público para a realização de obras ou serviços de interesse social e um incentivo à circulação econômica dos bens. O Poder Público pode se utilizar do próprio bem desapropriado para conseguir um crédito para o empreendimento a ser ali desenvolvido, dando-o em garantia às instituições financeiras sem comprometer outro ativo público. Isso facilita, inclusive, a consecução de obras e investimentos necessários para dar cumprimento à finalidade para qual o bem foi desapropriado. Além disso, o bem desapropriado pode ter melhor circulação no mercado, na medida em que o registro do direito real em nome do Poder Público possibilita que ele seja manejado nas relações jurídicas antes da regularização ou abertura da matrícula (que ocorre antes do término do processo expropriatório). Contudo, como já dito, o grande sentido da concessão do crédito é que a instituição financeira tenha uma garantia para a hipótese de inadimplemento por parte do devedor, a qual será executada para fins de quitação do crédito. Assim, a possibilidade de dar em garantia o direito real de imissão na posse apenas reforça a tese de que a propriedade já se transmitiu ao Poder Público. Se considerar-se a possibilidade de desistência da desapropriação pelo ente público entre o período da concessão de imissão provisória na posse e a sentença do processo judicial, esses direitos hipotecados ou alienados fiduciariamente poderiam ser perdidos e, consequentemente, inexistira a garantia dada na hipoteca ou na alienação fiduciária. Em outras palavras, se a propriedade do bem expropriado se transmitisse apenas ao fim do processo judicial e se permite ao ente público a possibilidade de desistência da desapropriação após a imissão provisória na posse, a alienação desses direitos decorrentes da imissão poderia ser desconstituída com a desistência. Eventual desistência e desconstituição dos direitos da imissão na posse faria com que, consequentemente, se desconstituísse também a garantia da hipoteca ou da alienação fiduciária; assim, novamente ocorreria uma incongruência no sistema, fugindo-se do objetivo do instituto de concessão de crédito com garantia para a instituição financeira. Por outro lado, é ainda necessário considerar os impactos da hipótese de não pagamento do crédito pelo Poder Público. Caso os valores concedidos pelas instituições financeiras não sejam adimplidos, justamente, o direito real dado em garantia será executado em favor do credor. A partir disso, questiona-se: pode esse bem, que é patrimônio público já com uma destinação específica para fins de desapropriação, ser normalmente executado? Em caso de hipoteca, o bem iria à hasta pública, podendo ser adquirido por particulares em leilão; em AFG, o bem seria consolidado em favor do credor e também seguiria para o procedimento de leilão a particulares. É necessário avaliar como seria compatibilizada essa garantia com a necessidade de cumprimento da finalidade da desapropriação. Logicamente, a probabilidade de inadimplemento por parte do Poder Público é baixa, por isso, não se deve ter considerado essa hipótese quando da elaboração da Lei nº 14.620/2023; contudo, ainda que remota, essa possibilidade pode gerar uma incongruência no sistema. Se houver a necessidade de execução da garantia, o texto legal protege o credor - dentro da lógica das garantias -, mas acaba gerando a possibilidade de descumprimento da finalidade pública da desapropriação. Uma primeira saída seria vincular o adquirente do bem executado ao cumprimento da mesma finalidade pública para a qual o bem foi desapropriado, forçando-o a desempenhar a atividade a que seria destinado. Essa situação, contudo, parece realmente inviável, na medida em que burla o sistema de prestação de serviços públicos, tornando possível que um particular desenvolva o serviço apenas em razão da aquisição do bem - pulando procedimentos obrigatórios, como a licitação, por exemplo -, além de, ao mesmo tempo, desestimular a aquisição do bem em leilão por particulares diversos que têm interesse tão somente na propriedade do imóvel. Poder-se-ia viabilizar, contudo, que à instituição financeira, ao executar o imóvel, fosse permitida a realização de um procedimento licitatório ou de contratação de parceria público-privada, para que aquele serviço continuasse a ser prestado, só que não diretamente pelo Poder Público. Seria o caso, por exemplo, de uma rodovia que foi construída e executada para que se instalasse o sistema de pedágio, e os valores arrecadados seriam pagos à instituição financeira até a quitação do débito. Outra solução, aplicável às situações em que essa execução seja inviável, como o caso de imóvel utilizado para uma escola ou posto de saúde, seria determinar que o Poder Público apresentasse outros ativos para a execução, em substituição àquele bem desapropriado, de mesmo valor e interesse econômico. Assim, o credor não seria prejudicado pela impossibilidade de executar sua garantia e o Poder Público tampouco seria prejudicado pela perda do bem que havia sido desapropriado para cumprir com um interesse social que não pode ser prestado pela iniciativa privada ou por parcerias. Contudo, entende-se que, nesse caso, deveria haver uma cláusula contratual, na hipoteca ou alienação fiduciária em garantia, que permita a sub-rogação posterior, para que não se siga o procedimento legal da execução. O mesmo seria necessário a uma outra solução, para que o direito ao crédito seja sub-rogado em precatórios. Parece possível inserir no contrato que o bem dado em garantia não seja executado, a fim de preservar o interesse público, e que o crédito se desse em precatórios, como nas situações gerais de dívidas da Administração. Contudo, esse cenário não é muito positivo para a instituição financeira, que teria que aguardar anos para obter o pagamento do crédito concedido. Faz-se necessário aguardar as aplicações práticas e o funcionamento do direito real de imissão provisória na posse dado em garantia para se verificar quais serão os efeitos gerados e as eventuais novas soluções adotadas pelo legislador. Sejam felizes! __________ 1 Disponível aqui.
O artigo 251-A da Lei de Registros Públicos trouxe previsão geral para o cancelamento pela via administrativa/extrajudicial do compromisso de compra e venda de imóvel não adimplido. Destaca-se que esse procedimento já encontrava previsão específica no DL 58/37 e na lei 6.766/79, alterada pela Lei do Distrato, aplicáveis aos loteamentos. O objetivo desse artigo é analisar a compatibilidade do art. 251-A da LRP com as peculiaridades das previsões especiais da Lei do Distrato. Mais especificamente, segundo o art. 32-A da lei 6.766/79, ocorrendo a resolução contratual por fato imputado ao adquirente, é exigida a devolução das parcelas pagas pelo compromissário comprador ao promitente vendedor que requereu o cancelamento, sob pena de indisponibilidade, ressalvada a retenção daquelas listadas no rol desse artigo. Assim, em uma indisponibilidade inominada, "somente será efetuado registro do contrato de nova venda se for comprovado o início da restituição do valor pago pelo vendedor ao titular do registro cancelado na forma e condições pactuadas no distrato, dispensada essa comprovação nos casos em que o adquirente não for localizado ou não tiver se manifestado". De outro lado, o art. 251-A da lei 6.015/73 não exige a devolução de qualquer parcela paga pelo comprador ao vendedor para que ocorra o cancelamento do compromisso de compra e venda e não prevê a pena de indisponibilidade. Indaga-se como deveria o registrador de imóveis se comportar diante dessa aparente antinomia e se a devolução das parcelas pagas é condição para o cancelamento administrativo do compromisso. As previsões legais e o histórico do cancelamento administrativo O Código Civil de 1916 adotou o sistema de título e modo, tornando o registro constitutivo para a transmissão da propriedade. Em uma consequência negativa dessa sistemática, como bem aponta Vicente Amadei, o proliferaram-se instrumentos particulares de promessa de compra e venda, em detrimento do negócio jurídico de compra e venda definitiva, em uma tentativa de evitar a incidência de emolumentos e impostos1. Todavia, a promessa não possuía eficácia real, não ingressando no Registro Imobiliário. Consequentemente, diante da falta de publicidade, era comum que ocorressem vendas simultâneas do mesmo bem para pessoas diversas. Também, a promessa era retratável até a conclusão do contrato (art. 1088 do CC de 1916), faculdade muito exercida pelo promitente vendedor em caso de valorização imobiliária, na qual, após a retratação, ocorria a venda a preço maior, prejudicando o promitente vendedor e aumentando seus lucros. Visando combater essa insegurança jurídica e a falta de confiança do mercado, o DL 58/37, restringindo-se aos imóveis loteados, promoveu importantes alterações: i) a promessa de compra e venda presumia-se irretratável no silêncio das partes (Súmula 166 do STF); ii) criação da ação de adjudicação compulsória, com a quitação; iii) possibilidade de averbação destes negócios no RI, reforçando a publicidade e coibindo a multiplicidade de vendas, passando esta a ter eficácia real. Em seus próprios fundamentos, esse diploma trouxe que: "Considerando que êsse dispositivo  [art. 1088 do Código Civil de 1916] deixa pràticamente sem amparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa fé e a solvabilidade das emprêsas vendedoras". Como contrapartida, em uma proteção à celeridade e aos interesses de liquidez dos compromissários vendedores e incentivando o registro, o DL 58/37 trouxe a primeira possibilidade de cancelamento administrativo para imóveis loteados, considerando o contrato rescindido 30 dias depois de constituído em mora o devedor (art. 14), após intimado pelo registrador de imóveis. Caso purgada a mora, o compromisso se convalesceria. Não ocorrido o pagamento, esse fato seria certificado e o promitente vendedor, cientificado, poderia solicitar diretamente no Registro Imobiliário seu cancelamento, se operacionalizando por ato de averbação. A mesma previsão foi repetida pelo art. 32 da lei 6.766/79, aplicável aos imóveis em loteamentos urbanos, enquanto o diploma anterior foi restrito aos imóveis rurais loteados. Em relação aos compromissos de compra e venda de imóveis não loteados, não havia essa previsão legal de cancelamento administrativo, embora fosse exigida sua notificação para constituição em mora, ex persona (art. 1º, decreto-lei 745/69). Essa previsão genérica somente foi incluída pela lei 14.382/22, no referido art. 251-A da LRP, que manteve o prazo para purgação da mora (30 dias), após o qual a lei entende haver inadimplemento absoluto. A intimação segue as regras do Código de Processo Civil e pode ser feita pelo próprio registro imobiliário ou delegada por este ao oficial do registro de títulos e documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la.  A mudança surge na esteira de desjudicialização, evitando a propositura de demandas no Judiciário para a rescisão do compromisso e acompanha a própria mudança de entendimento do STJ, que reconheceu a operabilidade automática da cláusula resolutiva expressa, independentemente de ação judicial. Como bem apontado nessa Corte, "não se pode impor à parte já prejudicada pelo inadimplemento ter o ônus de ajuizar demanda judicial para obter a resolução do contrato quando já existe uma cláusula resolutória expressa em seu favor. Exigir isso seria impor ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refoge à verdadeira intenção legislativa."2. O art. 251-A e as previsões especiais da Lei do Distrato A Lei do Distrato (13.786/2018) surge com o objetivo de incrementar a segurança jurídica e financeira das empresas do mercado imobiliário, gerando previsibilidade ao fluxo de caixa, quanto aos valores a serem devolvidos. Nesse sentido, o art. 32-A da lei 6.766/79, incluído pela Lei do Distrato, estabeleceu que, havendo culpa do adquirente, serão restituídos os valores pagos por ele em caso de rescisão contratual, permitida a retenção de: a) taxa de fruição (0,75% do valor do contrato); b) cláusula penal, inclusive arras ou sinal, limitada a 10%; c) encargos moratórios; d) tributos referentes ao imóvel, inclusive emolumentos; e) comissão de corretagem. O descumprimento dessa obrigação de devolução gera, como consequência, uma indisponibilidade inominada, impedindo o registro de nova venda do bem até comprovado o início da restituição na forma e prazo legal ou acordados em instrumento específico (art. 32-A, §2° da lei 6.766/79). Porém, o art. 251-A da LRP não exige a devolução de qualquer parcela paga pelo comprador ao vendedor para que ocorra o cancelamento administrativo do compromisso, sem qualquer ressalva quanto ao fato do imóvel ser loteado ou não. A primeira problemática que surge trata do escopo de aplicabilidade do art. 251-A e se há revogação de leis especiais. Por ser previsão geral, parece correto que possa ser aplicado naquilo que não for contrário à disposição especial, suprindo lacunas, já que, nos termos da LINDB, "a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior"3. Em segundo lugar, havendo incidência da Lei do Distrato, questiona-se se o registrador de imóveis deve exigir a devolução das parcelas para o cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda. A resposta é negativa, pois não há previsão legal para essa exigência em momento anterior ao cancelamento. O efeito civil de obrigar a devolução dos valores pagos pelo comprador somente ganha exigibilidade em momento posterior ao cancelamento do compromisso, em 12 parcelas mensais, após o prazo de carência de 180 dias do prazo contratual de conclusão das obras ou 12 meses da rescisão contratual, conforme dispõe o art. 32-A, §1° da lei 6.766/79. A melhor solução para essa questão perpassa pela averbação-notícia na matrícula do imóvel da indisponibilidade prevista no art. 32-A, §2° da lei 6.766/79, impedindo novo registro de venda até o início da restituição do valor pago. Essa situação pode ser noticiada em averbação autônoma ou no próprio ato de averbação do cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda. Desse modo, para o cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda (art. 251-A da LRP), havendo a incidência da Lei do Distrato - com o efeito civil de devolverem-se as parcelas paga pelos compromissário comprador - não deve o registrador exigir o prévio depósito desses valores para o cancelamento administrativo, mas deve fazer constar a indisponibilidade de novas compras e vendas até o início da restituição. Em outras palavras, ainda que as parcelas pagas pelo compromissário comprador inadimplente ao compromissário vendedor não sejam restituídas, pode-se operar o cancelamento administrativo do compromisso, mas com a pena da indisponibilidade, resolvendo-se essa questão da devolução em demanda judicial, em caso de negativa. Por fim, como incentivo para a desjudicialização, entendemos que o legislador poderia ter previsto essa situação, condicionando o cancelamento administrativo ao pagamento desses valores ou ao seu início, prevenindo lides sobre a devolução. Sejam Felizes! __________ 1 AMADEI, V. C.; AMADEI, V. D. A. Como lotear uma gleba: O parcelamento do solo urbano e seus aspectos essenciais (loteamento e desmembramento). (4ª ed). Campinas: Millennium, 2014. 2 STJ. 4ª Turma. REsp 1789863-MS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/08/2021 (Info 704). 3 Art. 2, §2° da LINDB.
A matrícula materializa o sistema do fólio real, modelo observado pela Lei dos Registros Públicos, a partir de 1976,1 que substituiu o sistema do fólio pessoal, no qual a organização das serventias era feita com base nos títulos apresentados e nos titulares dos imóveis, inexistindo o sistema de matrícula. Com a introdução do fólio real, a função registral foi reorientada para se concentrar no próprio imóvel. O art. 176, §1º, inciso I, da lei 6.015/1973, estabeleceu as bases para a estruturação do Registro de Imóveis. De acordo com o princípio da unitariedade, cada matrícula corresponde a um imóvel, resultando em uma correspondência direta entre cada imóvel e sua respectiva matrícula componente do Livro nº 2 - Registro Geral. Os atos na matrícula devem ser escriturados de forma narrativa, segundo as mutações jurídico-reais, por meio de atos de registro e averbação que se sucedem de maneira contínua e coordenada, alinhados com o sistema causal brasileiro, baseado nos conceitos de título e modo, inaugurado pelo Código Civil de 1916. A matrícula é o primeiro ato de registro em sentido lato, uma vez que é estabelecida antes de qualquer outro ato de registro ou averbação no contexto do sistema do fólio real. Seu propósito é refletir a situação jurídica de um imóvel específico, conforme estipulado nos artigos 176, § 1º, 228 e 236 da Lei dos Registros Públicos. Embora seu substrato físico esteja em transição para um formato virtual, de acordo com a Lei nº 14.382/2022, artigo 11, a matrícula continua a ser o repositório de todas as informações cadastrais do imóvel.2 As recentes mudanças legislativas demonstram uma tendência em simplificar o processo de abertura de matrículas, reduzindo os requisitos anteriores, mas sem comprometer a segurança jurídica. Trata-se de um sistema depurativo, em razão de estar em vigor, desde 1976, dois sistemas, quais sejam: o fólio real e pessoal (LRP, art. 295). Uma vez aberta a matrícula, qualquer evento relevante é averbado na transcrição total ou parcial, com referências e indicações às averbações, junto aos registros (transcrições e inscrições) mencionados no mandado judicial. O art. 176-A da LRP apresenta situações em que a abertura de matrículas é permitida, resultantes de aquisições originárias ou equiparadas (LRP, art. 176, § 5º). Essas aberturas podem ocorrer independentemente da aplicação do princípio da continuidade ou do trato sucessivo, conforme estabelecido nos artigos 195 e 237 da LRP. A aquisição da propriedade imóvel é classificada pela doutrina como originária ou derivada. Sob o aspecto do encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, a aquisição originária é aquela em que inexiste uma causalidade volitiva entre o novo domínio e a situação anterior da coisa. Esta aquisição originária se dá em razão de um fato ou ato jurídico desvinculado do titular anterior, pouco importando as relações anteriores da coisa. Por outro lado, na aquisição derivada, mantém-se uma sucessão de fatos jurídicos volitivos interligados. Aqui, existe uma transmissão do bem de um sujeito para o outro, de forma que a propriedade se transfere com todos os ônus pendentes em seu domínio anterior, tais como os direitos reais e as condições resolutivas.3 Uma das formas de a aquisição ser denominada de originária é no caso da primeira propriedade, em que enseja a abertura de matrícula, já que inexiste transcrição anterior. No entanto, o sentido utilizado pelo legislador, no caso do art. 176-A, não é esse, mas sim o de aquisição originária relacionada à inexistência de uma vinculação volitiva entre o titular atual e o anterior. Nesse sentido, o legislador não determinou, por regra, a abertura de matrícula nas aquisições originárias na medida em que não é criada relação de causalidade entre o titular atual e o anterior. Atuando de forma mais ousada, poderia ter entendido que se a aquisição é originária e inaugura uma nova etapa do fólio real, a abertura de matrícula deveria ser regra, além de serem transportados dados anteriores quando forem imprescindíveis. Sob o aspecto do encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, a aquisição originária é aquela em que inexiste uma causalidade volitiva entre o novo domínio e a situação anterior da coisa. Esta aquisição originária se dá em razão de um fato ou ato jurídico desvinculado do titular anterior, pouco importando as relações anteriores da coisa. Por outro lado, na aquisição derivada, mantém-se uma sucessão de fatos jurídicos volitivos interligados. Aqui, existe uma transmissão do bem de um sujeito para o outro, de forma que a propriedade se transfere com todos os ônus pendentes em seu domínio anterior, tais como os direitos reais e as condições resolutivas.4 O §4º do artigo 176-A dispõe que eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro, na medida em que é quase impossível se observar a especialidade objetiva para área que foi adquirida, pois ela varia muito de acordo com cada caso concreto, de forma que o dispositivo facilitou para o registrador promover a regularização. Ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, deve-se abrir um novo fólio, caso exista segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, e desde que constem os dados do registro anterior (LRP, art. 176, § 8º). Cabe ressaltar que a matrícula é elaborada à vista dos elementos constantes do título apresentado e do registro anterior que contar do acervo do registrador (LRP, art. 196). Portanto, o título deverá conter os dados da matrícula evidentes e completos, para a sua abertura, mesmo que judicial ou administrativo (LRP, art. 225). Além disso, o princípio da territorialidade é fundamental na abertura de matrículas, exigindo que esta seja realizada na circunscrição onde o imóvel está localizado. Isso pode ocorrer mediante solicitação do interessado ou por iniciativa própria, por conveniência do serviço, conforme estipulado no caput do artigo 169 da LRP.5 Os imóveis públicos têm a opção de registro, podendo ser feito de ofício ou mediante solicitação, conforme estabelecido no artigo 195-A da Lei dos Registros Públicos (LRP). A abertura de matrícula para logradouros públicos ocorre principalmente em casos de parcelamentos do solo, sejam eles regulares ou irregulares. Além disso, essa regra se aplica a imóveis públicos que não possuíam matrícula prévia, incluindo terras devolutas destinadas a projetos urbanos, de acordo com o artigo 195-B da LRP. A fusão de matrículas contíguas de imóveis objeto de imissão provisória em favor do ente desapropriante ou de cessionários ou promitentes cessionários, deve ser requerida perante o registrador com atribuição territorial para tanto (Lei nº 8.935/1994, art. 12). É importante observar que esse requerimento deve se referir a imóveis localizados em áreas urbanas ou de expansão urbana, e que estejam relacionados a programas habitacionais ou de regularização fundiária, conforme delineado nos §§ 2º e 3º do artigo 235, bem como no item III do mesmo artigo da LRP.A abertura de matrícula única, de dois ou mais imóveis contíguos objeto de imissão provisória registrada em nome da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou de suas entidades delegadas ou contratadas e sua respectiva cessão e promessa de cessão, será utilizada com a finalidade de implementar programas habitacionais ou de regularização fundiária, o que deverá ser informado no requerimento de unificação (LRP, art. 235, §§ 2º e 3º). Cabe a averbação de encerramento ou desfalque nas matrículas anteriores. Todas as matrículas devem conter o número de ordem do Livro 2 - Registro Geral -, a data da abertura, a identificação do imóvel e do proprietário, o número do registro anterior, além do Código Nacional das Serventias e o Código Nacional de Matrícula (LRP, art. 235-A, regulamentado pelo Código Nacional de Normas da CN-CNJ, art. 330). Conforme analisado, o modo de aquisição originária, e as situações lhe equiparadas ex vi legis não são causas de abertura de matrícula, em regra, ressalvados os seguintes casos: a inexistência de matrícula anterior; a sobreposição parcial a registro anterior; ou atingir a mais de um imóvel, parcial ou totalmente (LRP, art. 176-A, caput e incisos). Neste caso, o registrador averbará o encerramento do registro ou da matrícula anterior, caso a sobreposição seja total; ou então, averbará o seu desfalque, independentemente de apuração da área remanescente. A apuração da disponibilidade da matrícula ou transcrição anterior, neste caso, será legada para momento futuro (LRP, arts. 171, parágrafo único, 176 § 18, 176-A, § 2º, e 195-A, § 6º).6 Trata-se da presunção de legitimidade dos atos administrativos, que se caracteriza como qualidade que os reveste, impondo a aceitação pelo destinatário da veracidade e conformidade com o Direito, até prova em contrário.7 A próxima inscrição na matrícula, em área remanescente não previamente especificada, estará condicionada à retificação dos dados registrais, em atenção aos princípios da disponibilidade ("Nemo plus iuris transfere ad alium potest quam ipse habet") e especialidade (LRP, art. 176, § 1º, II e 225). Ademais, pela Lei dos Registro Públicos se exige a análise qualitativa ou geodésica, observando-se todas as características do imóvel, tais como medidas lineares, área total, confrontações e distância da próxima esquina. Isto não era necessário no sistema do fólio pessoal, o qual, por extratos, escriturava o Livro 3 - Das Transcrições (decreto 4.857/1939, art. 213). Se o registro anterior existente for menor que a área adquirida originariamente, o oficial deverá averbar a diferença apurada na matrícula aberta por ocasião da execução do mandado judicial, da escritura pública, ou do termo ou contrato administrativo (LRP, arts. 176-A, § 4º c.c. 221, I, IV, V e VI), situação não impediente da qualificação e registro (LRP, art. 176-A, § 4º-A). No entanto, é importante ressaltar que a identificação e a localização do imóvel, quando precárias, devem ser obstadas pelo registrador, independentemente de a norma permissiva relativizar o princípio da especialidade objetiva.8 Os contratos e termos administrativos constam em duas hipóteses abstratas no rol do títulos formais, portanto, o substrato do direito material. Classificam-se segundo a destinação do imóvel. Em regra, o pagamento justo e prévio deve ser feito antes do registro da desapropriação ou situação de equiparação (LRP, art. 176-A, § 5º). Caso se esteja diante das hipóteses específicas do art. 3º do Decreto Lei nº 3.365/1941 - que dispõe sobre as desapropriações por utilidade ou necessidade pública -, incluído pela lei 14.620/2023, o registrador será obrigado a qualificar o título, independentemente de o expropriado receber o seu pagamento (LRP, art. 221, § 6º). Veja-se: "§ 6º  Os contratos e termos administrativos mencionados no inciso VI deverão ser submetidos à qualificação registral pelo oficial do registro de imóveis, previamente ao pagamento do valor devido ao expropriado." Nesse contexto, embora seja forma originária e não mude a natureza declaratória do registro, o §6º dispõe que os contratos e termos administrativos devem ser submetidos à análise qualificadora antes do pagamento do preço. Essa abordagem parece ser apropriada, pois reforça ainda mais a integridade do sistema do título e modo, representando um avanço do sistema, na medida em que não há mutação júri-real (com o pagamento) enquanto o registrador não confirme a registrabilidade do título. A qualificação destes títulos administrativos deve verificar a competência administrativa do autor do título prenotado (Ex: funcionário de fato, ou irregular, ou usurpador); as formalidades extrínsecas do documento (p. ex., integridade dos documentos exigidos em lei); a sua correlação ou congruência com o ato de registro ou averbação rogado (dos sujeitos e tipos predeterminados em lei).9 Igualmente, o registrador tem a responsabilidade de avaliar a adequação à situação jurídica do imóvel, verificar a inexistência de preclusão de direitos e assegurar a conformidade com o princípio da especialidade objetiva.10 No caso de um mandado judicial relacionado a um processo que confirma uma aquisição originária, o registrador deve realizar uma análise qualificada do título judicial. Após o título ser protocolado no Livro 1 - Protocolo, ele será minuciosamente examinado em relação ao cumprimento de suas formalidades e às suas características externas, como a ausência de nulidades absolutas, a competência jurisdicional adequada, a validade das citações e a conformidade com os princípios do sistema registral, especialmente os princípios da continuidade e da especialidade subjetiva e objetiva. No entanto, o registrador não pode se envolver no mérito da decisão, uma vez que essa é uma competência exclusiva da jurisdição, representada pelo Juiz.11 Os títulos materiais hábeis exigidos para a abertura de matrícula são: i. ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; ii. a carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação, ou iii. a sentença expropriatória de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). corporificados em mandado judicial (LRP, art. 221, IV). Cumpre ressaltar que a usucapião comporta duas vias facultativas ao requerente: a via judicial, na qual o título é representado pelo mandado judicial proveniente de uma sentença transitada em julgado; e, por outro lado, a via extrajudicial, que envolve a nota de deferimento do oficial de registro, a qual atesta a aquisição, conforme estipulado no artigo 216-A da Lei dos Registros Públicos (LRP). Entre essas opções, a escritura pública de desapropriação amigável é considerada título notarial, com outro regime jurídico incidente. A fé pública do Tabelião de Notas, investido na função, proporciona prova plena das informações contidas em seu Livro de Notas (CC, art. 215, caput). Por fim, a concessão de uso especial para fins de moradia é um direito real, encartado em termo ou contrato administrativo sobre imóvel público, ou mandado judicial, extraído de uma sentença declaratória (LRP, art.167, I, "19" c.c. CC, art. 1.225, XI, e a Medida Provisória nº 2.220/2001). Atualmente, se pode afirmar que as matrículas imobiliárias funcionam como um repositório de informações sobre a situação jurídica do imóvel, seja ele de propriedade privada ou pública, a depender do subsistema registral adotado.12 Em um futuro próximo, a matrícula representará a verdade formal e real do imóvel, suficiente para sua plena caracterização jurídica. Sejam felizes! __________ 1 Segundo Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, fólio é derivado do latim folium. Refere-se a folha, ou o substrato material em suas duas faces, isto é duas páginas (Tratado de direito notarial e registral - vol. 5 - tomo i. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 405-407); et. SANTANA DE MELO, Marcelo Augusto. Breves anotações sobre o Registro de Imóveis. Boletim IRIB em Revista, edição 237, 2006. Acesso em 27/09/2023, às 18:34 hrs, https://academia.irib.org.br/pdfjs/web/viewer.html?file=123456789/2953/2006-0327-0032_0049- BDI.pdf. 2 JACOMINO, Sérgio. Registro e cadastro - Uma Interconexão Necessária. Coleção IRIB em Debate. Porto Alegre: safE Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 17-40. Acesso em https://academia.irib.org.br/xmlui/handle/123456789/61, em 26/09/2023, às 13:13 hrs; et ÁVILA RIBEIRO, Moacyr Petrolecelli de. A matrícula: paradigmas para o sistema de registro eletrônico de imóveis. Revista de Direito Imobiliário, ano 42, vol. 86, jan.-jun., 2019, p. 215-264. 3 Vide KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 4 Vide KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 5 "Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3. [...] § 14. É facultada a abertura da matrícula na circunscrição onde estiver situado o imóvel, a requerimento do interessado ou de oficio, por conveniência do serviço. § 15. Ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, a critério do oficial, e que constem os dados do registro anterior, a matrícula poderá ser aberta nos termos do disposto no § 14". 6 O E. CSM na Apelação Cível n. 1014391-67.2015.8.26.0405, Relator Des. Pereira Calças, j. em 14/10/2016, entende da mesma maneira esboçada, in verbis: "Sem dúvida, o acesso da desapropriação ao fólio real, por implicar criação de nova unidade imobiliária, destacada de porção de terra mais extensa, descrita na mat. n.º 32.235 do 1.º RI de Osasco, demanda a observância do princípio da especialidade objetiva. No entanto, o registro da carta de adjudicação, por força do traço distintivo da originariedade da aquisição, não fica condicionado à prévia apuração da área remanescente resultante da desapropriação parcial. (...) De mais a mais, a compreensão a que se acede afina-se com o princípio da eficiência, a teleologia e a instrumentalidade registral. A exigência de prévia apuração do remanescente, nessas situações, obstaria, com tendência dissuasória, a regularização e a publicidade de uma situação fática e jurídica consolidada, que seriam obtidas, em benefício da segurança jurídica, por meio do registro, que, in concreto, é meramente declaratório" 7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 35ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 109, de 15.3.2021 e a lei 14.133, de 1.4.2021. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 340 e 341 8 O entendimento ora adotado é o mesmo do E.CSMSP, na apelação cível nº 0002933-39.2015.8.26.0383, julgada em 24/05/2017, e publicada no DJ em 23/08/2017, de Relatoria do então Corregedor Geral Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, cuja ementa se transcreve a seguir: "Registro de imóveis - Desapropriação - Descrição que obsta a localização da área destacada em relação ao imóvel desapropriado - Conferência do memorial descritivo por meio de software, tendo sido obtida localização diferente da esperada - Inobservância do princípio da especialidade - Dúvida procedente - Recurso improvido" 9 DIP, Ricardo. Registros sobre Registros # 60, 61 e 62. Fonte: iregistradores 10 Idem 11 Cuida-se aqui de mandados que refletem autênticos títulos judiciais, que se devem submeter à qualificação registral e, se for o caso, ser devolvidos pelo oficial do registro imobiliário. No entanto, não há como deixar de reconhecer que, de outro lado, há outros mandados dirigidos ao registrador imobiliário que não materializarão um título causal. Tais mandados, por seu conteúdo, não refletem qualquer título propriamente dito, por isso não podem ser reconhecidos como títulos, não se submetendo à qualificação registral tal como reservada para os títulos judiciais ou extrajudiciais. (BERTHE, Marcelo Martins. Lei de Registros Públicos Comentada. Coord. por José Manuel de Arruda Alvim Neto, Alexandre Laizo Clápis, et al. https://amz.onl/9sESWMD). 12 KÜMPEL, Vitor Frederico; et. FERRARI, Carla Modina. Tratado de Direito Notarial e Registral, vol. 5, tomo I. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 200 e seguintes.
A comprovação do período de início e término da união estável é de extrema importância tanto para os companheiros envolvidos quanto para aqueles que têm interesses nas implicações legais desse relacionamento. Isso engloba consequências tanto de natureza patrimonial, como os direitos sucessórios e o regime de bens, quanto de natureza não patrimonial, como as responsabilidades entre os parceiros. À medida que a equiparação do regime sucessório entre cônjuges e companheiros1 ganha destaque, a união estável, embora seja uma relação informal e reconhecida como um ato-fato jurídico, enfrenta uma preocupação crescente na sociedade em relação à sua comprovação. Nesse contexto, é comum que a data de início da união esteja registrada em uma escritura pública declaratória, muitas vezes anterior à data de emissão do documento. Os efeitos decorrentes dessa declaração geralmente são aplicados apenas entre os próprios companheiros, ou seja, eles têm relevância restrita às partes envolvidas. Para que esses efeitos tenham validade em relação a terceiros e tenham consequências legais para eles, é essencial registrar a união estável no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN), conforme estabelecido pelo artigo 1º, §1º, do Provimento 37 do CNJ. No entanto, ressalte-se que de acordo com a redação original do artigo 5º do Provimento 37, mesmo após o registro, os efeitos da escritura permaneceriam limitados aos companheiros, a menos que terceiros tivessem participado do processo. Antes da promulgação da lei 14.382/22 e da implementação do Provimento 141 do CNJ, o Provimento 37 do CNJ tinha uma abordagem restritiva, mencionando que o reconhecimento do período de vigência da união estável só poderia ser obtido por meio de uma decisão judicial2. De maneira similar, nas situações em que a união estável era convertida em casamento, de acordo com as normativas estaduais, não havia a inclusão da data de início ou da duração da união estável nos registros públicos, a menos que houvesse um reconhecimento por parte do sistema judicial3. Assim, na sistemática anterior, a única forma de aferição da data de início da união estável, de modo a levá-la ao registro e produzir efeitos perante terceiros, era por meio de ação judicial, em rito de jurisdição voluntária. A data de início declarada na escritura de união estável não era oponível a terceiros a menos que estes anuíssem. Isso tinha implicações significativas, como por exemplo, a ausência da data de início da união estável no registro implicaria que um bem comum pertencente a ambos os companheiros, mas registrado apenas em nome de um deles e adquirido antes do registro no Livro E, seria considerado como propriedade individual pelo credor, pois não produziria efeitos legais em relação a terceiros. Além disso, surgia uma complexidade na divisão dos bens no contexto do regime sucessório, uma vez que não se tinha certeza se a companheira deveria ser tratada como meeira, com direito a 50% do bem, ou como herdeira, com uma parcela igual à dos outros descendentes, conforme estabelecido pelo Código Civil.. Nesse contexto, na esteira da desjudicialização e do aumento das atribuições do Ofício da Cidadania, a lei 14.382/22 estabeleceu que "não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil."4. Regulando esse dispositivo, o Provimento 141 do CNJ, ao alterar o Provimento 37, estabeleceu que o registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável somente poderá indicar as datas de início ou de fim da união estável se estas constarem de um dos seguintes meios: a) decisão judicial; b) procedimento de certificação; c) escritura pública de reconhecimento ou dissolução, em que a data de início ou fim corresponda à data de lavratura do instrumento, desde que declarado pelos companheiros. No entanto, a última opção pode ser vista como contraditória, uma vez que implica que os companheiros devem formalizar a escritura pública de reconhecimento no mesmo dia em que decidem estabelecer a união estável, o que vai de encontro à ideia de que a união estável é um relacionamento contínuo e duradouro. Em virtude dessas mudanças, o procedimento de certificação eletrônica emergiu como a forma mais eficaz de estabelecer a data de início da união estável para fins de registro. Portanto, a certificação eletrônica é um procedimento opcional conduzido pelo oficial de registro civil que tem como objetivo comprovar a data de início e, se aplicável, a data de término da união estável, permitindo que essas informações sejam inseridas no registro no Livro E e tenham validade perante terceiros.  Procedimento de certificação O processo de certificação eletrônica se inicia mediante pedido expresso dos companheiros, que desejam que as datas de início ou término da união estável sejam registradas, seja por meio de comunicação eletrônica ou em formato escrito. No momento em que os companheiros fazem essa solicitação ao oficial de registro civil, ocorre a rogação e o início do procedimento, de forma que eles receberão orientações sobre como o processo de certificação ocorrerá5. Naturalmente, a competência pela condução do procedimento de certificação será atribuída ao 1º Registro Civil de Pessoas Naturais no local de residência dos companheiros ou, em caso de dissolução da união estável, ao último local de residência onde foi solicitado o registro da união no Livro E. Não existem restrições quanto à possibilidade de submeter o pedido por intermédio de um procurador, desde que esse representante esteja devidamente autorizado por meio de um instrumento legal, podendo ser público ou particular com firma reconhecida, com poderes específicos. Além disso, não há impedimento para que um único procurador atue em nome de ambos os conviventes. Importante mencionar que essa prática é aceita para situações de separação e divórcio consensuais extrajudiciais, do que não caberia maior rigidez quanto à união estável. Todavia, embora o requerimento possa ser apresentado por procurador, mostra-se necessária a entrevista pessoal dos companheiros pelo registrador, por expressa disposição legal, sendo esta reduzida a termo e assinado pelo registrador e entrevistados.6 Com base no princípio da liberdade de prova, o Provimento 141 estipula que todos os meios de prova reconhecidos pelo direito podem ser empregados no processo de certificação. Nesse contexto, é aplicável o artigo 369 do Código de Processo Civil, que confere às partes o direito de utilizar todos os meios legais e moralmente aceitáveis, mesmo que não sejam comuns, com o objetivo de influenciar a convicção do oficial de registro. No decorrer do procedimento, o oficial de registro civil deve verificar se os requisitos estabelecidos pelo artigo 1723 do Código Civil estão presentes, o que inclui a convivência pública, contínua e duradoura com o propósito de constituir uma família, sem impedimentos matrimoniais. Como importante referência de standart probatório, sugere-se os meios exemplificados para reconhecimento da paternidade socioafetiva do Prov. 63/CNJ7: inscrição em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; inscrição como dependente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida, além de outros, como conta corrente conjunta, contratos de aluguel e boletos em comum. Nesse contexto, o registrador civil se fundará no livre convencimento motivado, decidindo fundamentadamente ou, em caso de suspeita de fraude, podendo exigir provas adicionais ou negar o pedido. Caso indeferido o pedido de certificação, mostra-se cabível a suscitação de dúvida em 15 dias da ciência (arts. 198 e 296 da LRP). Destacando a sua natureza opcional, o processo de certificação eletrônica não será necessário quando outros documentos já comprovarem a data (seja através de uma decisão judicial ou uma escritura pública que ateste o início simultâneo da união estável)8. Com relação ao valor dos emolumentos, inexistindo lei estadual, será cobrado 50% do valor previsto para o rito de habilitação de casamento9. Efeitos da certificação  O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que a escolha do regime de bens para a união estável por meio de um contrato escrito produz efeitos a partir do momento da celebração (efetividade ex nunc), não sendo válidas as cláusulas que buscam retroagir os efeitos patrimoniais do acordo sem a devida autorização judicial, conforme estipulado no artigo 1.639, §2º, do Código Civil de 200210. Embora a certificação da união estável comprove a data de início e de fim, deve-se prestar especial atenção sobre seus efeitos: em proteção a terceiros de boa-fé, a certificação não afetará negócios já realizados, já que, por não haver registro anterior, não é oponível a terceiros; contudo, para os negócios futuros, realizados após a certificação, serão consideradas situações jurídicas anteriores, desde a data de início e fim fixadas. Por exemplo, considere uma certificação eletrônica que tenha fixado o início da união estável como ocorrido há seis meses. Uma venda de um bem realizada dois meses antes da certificação não poderá ser anulada devido à falta de consentimento de um dos companheiros, uma vez que, na época da transação, a data de início não era oponível a terceiros, garantindo a proteção de terceiros de boa-fé. No entanto, se a venda do bem ocorrer após a certificação e houver comunicabilidade entre os companheiros, o bem será considerado como propriedade comum, exigindo o consentimento do outro companheiro, mesmo que tenha sido adquirido anteriormente. No que diz respeito à possível necessidade de consentimento do companheiro, o STJ estabeleceu que "A alienação sem anuência de companheiro é válida se não há publicidade da união estável"11. Portanto, a certificação não afeta transações já concluídas, mas impõe a obrigação de considerar as datas de início e término para transações futuras, estabelecendo-as com uma presunção relativa de veracidade. Isso também implica, perante terceiros, que a comunicabilidade ou a exigência de consentimento do companheiro se aplique aos bens adquiridos antes do procedimento. Ademais, sobre os efeitos da certificação da união estável na conversão em casamento, destaca-se o Enunciado 74 da ARPEN-SP: "A prévia certificação eletrônica constante do art. 70-A, § 6º, lei 6.015/73 produzirá efeitos, quanto à conversão em casamento, a partir da data em que declarada perante o oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ainda que a união estável tenha sido iniciada, pelos companheiros, em data anterior".  Responsabilidade do registrador civil pela certificação de data incorreta O registrador civil atua com autonomia e independência técnica em sua qualificação, baseando-se nos meios de prova aceitos e em sua convicção motivada. A respeito, bem aponta Walter Ceneviva: "Para que se possa entender como autônoma a qualificação registral, é necessário compreender que ela não é simplesmente a aplicação de normas preestabelecidas para o preenchimento de fichas cadastrais, mas sim um juízo técnico que demanda do oficial de registro uma série de diligências e análises."12. Além disso, o processo de certificação estabelece as datas de início e término da união estável com uma presunção relativa de veracidade, graças à fé pública associada a ele, mas sem criar coisa julgada, permitindo, assim, a apresentação de evidências em sentido contrário perante o Judiciário. A fé pública não é absoluta, mas relativa, sujeitando-se a prova em contrário, em casos de dúvida ou impugnação dos atos emanados pela Administração13. Nesse contexto, em geral, o registrador civil não é responsabilizado pela certificação incorreta de datas de início ou término, desde que sua decisão seja fundamentada e baseada nas informações fornecidas pelas partes envolvidas. Qualquer responsabilização indevida seria prejudicial à sua independência técnica e poderia ser vista como um erro na interpretação das normas (crime de hermenêutica), sem fundamento jurídico. Em casos excepcionais, nos quais ocorram erros evidentes, como equívocos materiais, fraudes ou decisões que claramente contrariem as evidências apresentadas, o registrador civil poderá ser responsabilizado subjetivamente na esfera civil, desde que se prove a existência de dolo ou culpa (conforme previsto no artigo 22 da lei 8.935/94), sem prejuízo de sanções administrativas ou penais. Dentro do procedimento de certificação, em princípio, o registrador atua de maneira similar a um juiz, tomando decisões fundamentadas com base em meios de prova legalmente aceitos. Portanto, ele não deve ser responsabilizado por sua interpretação jurídica e probatória a respeito do termo inicial e final da união estável, visto que a fé pública possui uma força relativa, permitindo, ainda assim, uma revisão por meio de um processo judicial subsequente. Sejam Felizes! ___________ 1 REs n° 646721 e 878694 - STF. 2 Art. 7°, §2° do Provimento 37 do CNJ: "Contendo a sentença em que declarada a dissolução da união estável a menção ao período em que foi mantida, deverá ser promovido o registro da referida união estável e, na sequência, a averbação de sua dissolução". 3 É o caso das Normas de Serviço de SP, Cap. XVII, item 87.5. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou período de duração desta, salvo nas hipóteses em que houver reconhecimento judicial dessa data ou período. 4 Art. 70-A da Lei de Registros Públicos. 5 Art. 9-F, caput, Provimento n° 37 do CNJ. 6 Art. 9-F, §3°, Provimento n° 37 do CNJ. 7 Art. 10-A, §2°, Provimento n° 63 do CNJ. 8 Art. 9-F, §9°, Provimento n° 37 do CNJ. 9 Art. 1°-A, §6°, II, Provimento n° 37 do CNJ. 10 STJ. 4ª Turma. AREsp 1.631.112-MT, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 26/10/2021 (Info 715). 11 STJ. 3ª Turma. REsp 1424275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014 (Info 554). 12 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 21ª edição, 2012. 13 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32ª edição, 2018.
No procedimento judicial de desapropriação, a imissão provisória na posse tem por objetivo transferir a poderes dominiais do bem ao ente público, uma vez efetivado o pagamento em favor do antigo titular e quando alegada urgência, nos termos do art. 15 do decreto-lei 3.365/19411, sobre desapropriação para utilidade pública. Assim, realizado o pagamento pelo ente público e comprovada a urgência no pedido, ele poderá ser imitido provisoriamente na posse do bem durante o processo judicial de desapropriação e tal imissão será levada a registro, em sentido estrito, na matrícula do imóvel, conforme determinação da lei 11.977/2009. Recentemente, a lei 14.620/2023 introduziu essa imissão provisória na posse no rol dos direitos reais do Código Civil, elencando-a no inciso XIV do art. 1.2252. Além disso, permitiu que o mesmo direito se torne objeto tanto de hipoteca, pelo art. 1.473, XI, do Código Civil3, quanto de alienação fiduciária em garantia, nos termos do art. 22, §1º, V da lei 9.514/19974, gerando um ativo econômico. Assim, a imissão provisória na posse passou a poder configurar direito real e estar apto a ser hipotecado ou alienado fiduciariamente em garantia pelo ente público. Verifica-se, ainda, que a lei 14.620/2023 alterou igualmente a Lei dos Registro Públicos em seu art. 176-A, que dispõe sobre a abertura de matrícula decorrente de aquisição originária da propriedade, prevendo expressamente tal abertura para o registro da imissão provisória na posse em procedimento de desapropriação5. Com todas essas alterações, questiona-se, então: seria tal imissão na posse realmente provisória, como indicado na terminologia legal do decreto-lei 3.365/1941? A controvérsia surge pela necessidade de verificação do momento da transmissão da propriedade para o Poder Público. Parte da doutrina administrativista entende que, no processo judicial de desapropriação, o bem só se transmite após a condenação no valor a ser pago na sentença e com a integralização desse pagamento, podendo o ente público desistir da desapropriação até o término do processo6. Parece, nesse sentido, que o decreto-lei 3.365/1941 trata a imissão na posse concedida ao ente público como provisória sob a ótica de que a transferência da propriedade na desapropriação ocorreria apenas após o término do procedimento com a sentença judicial; uma vez efetivada a transferência do bem, a imissão tornar-se-ia definitiva. Outra corrente, em sentido oposto, afirma que a transmissão do bem ocorre, na verdade, já no momento do pagamento pelo ente expropriante, sendo a sentença do término do processo apenas título hábil para mais um registro da desapropriação no Registro de Imóveis (com efeito, portanto, declaratório)7. Com as alterações promovidas pela lei 14.620/2023, a última posição parece, de fato, mais adequada. A saber. O fundamento inicial para a transferência da propriedade ocorrer com o pagamento é o próprio art. 5º, XXIV da CF, que estabelece que a desapropriação se dará, em regra, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, assim, uma vez realizada essa indenização, o texto constitucional já autoriza a efetivação da desapropriação. Ademais, a lei 14.620/2023 possibilitou que a imissão provisória na posse se constitua como direito real e seja objeto de hipoteca e alienação fiduciária em garantia. O direito real é aquele exercido por seu titular diretamente sobre um bem determinado, que pode gozar e fruir da coisa. Esse direito é oponível erga omnes, de forma que os terceiros são obrigados a respeitar os poderes conferidos pela titularidade do direito real. Existe, portanto, a atribuição de titularidade de um bem a um sujeito, criando-se um vínculo entre a coisa e a pessoa e que poderá ser imposto a uma coletividade indeterminada8. Os direitos reais (elencados no art. 1.225 do CC), portanto, pressupõem a existência de domínio pelo titular de forma que só detém um direito real quem tiver a titularidade da propriedade ou tiver recebido um direito real por um titular que tenha poder para realizar a oneração do bem. Não se vislumbra, a princípio, no sistema, a constituição de um direito real em razão de mera "imissão provisória na posse": inicialmente porque a posse por si só não gera direitos reais, constituindo-se uma situação de fato; ademais, a instituição de um direito real em favor de terceiros (fruição, garantia ou aquisição) depende do titular da propriedade. Assim, tornando-se os direitos oriundos da imissão provisória na posse concedidos em favor de entes públicos direitos reais inseridos no rol taxativo do Código Civil, parece necessário - em alinhamento ao sistema dos direitos reais - que esses entes tenham adquirido, já no momento da imissão provisória na posse, também a propriedade (plena ou onerada)9. Outra questão que se coloca para a possibilidade de alienação desses direitos em garantia é a segurança do crédito. O objetivo da hipoteca ou da AFG é a concessão de um crédito pelo titular de direitos ou fiduciário, recebendo em garantia pelo devedor ou fiduciante uma propriedade. Em regra, a propriedade alienada fiduciariamente é a do próprio bem a ser adquirido com o crédito, mas, nos termos do art. 22, §1º, da lei 9.514/1997, outros direitos podem servir como garantia além da propriedade plena, tais como a superfície, o direito real de uso, pertenças e, agora, os direitos decorrentes da imissão provisória na posse em favor de entes públicos. Muito embora a lei permita que alguns direitos sejam alienados fiduciariamente (além da propriedade plena), esses direitos pressupõem uma segurança mínima ao fiduciário. O grande sentido da concessão do crédito é que a instituição financeira tenha uma garantia para a hipótese de inadimplemento por parte do devedor, a qual será executada para fins de quitação do crédito. Assim, se considerar-se a possibilidade de desistência da desapropriação pelo ente público entre o período da concessão de imissão provisória na posse e a sentença do processo judicial, esses direitos hipotecados ou alienados fiduciariamente poderiam ser perdidos e, consequentemente, inexistira a garantia dada na hipoteca ou na alienação fiduciária. Em outras palavras, se a propriedade do bem expropriado se transmite apenas ao fim do processo judicial e se permite ao ente público a possibilidade de desistência da desapropriação após a imissão provisória na posse, a alienação desses direitos decorrentes da imissão poderia ser desconstituída com a desistência. Eventual desistência e desconstituição dos direitos da imissão na posse faria com que, consequentemente, se desconstituísse também a garantia da hipoteca ou da alienação fiduciária; assim, novamente ocorreria uma incongruência no sistema, fugindo-se do objetivo do instituto de concessão de crédito com garantia para a instituição financeira. Por fim, questiona-se a alteração do art. 176-A da lei 6.015/1973, que possibilitou a abertura de matrícula nova para registrar a imissão provisória na posse decorrente do processo de desapropriação. Teria sentido a abertura de uma matrícula (que pressupõe o direito de propriedade - plena ou onerada) se ainda não tiver ocorrido a transferência do bem? É igualmente ilógico no sistema realizar a abertura de uma matrícula por aquisição originária de propriedade se essa propriedade ainda não houver sido efetivamente transmitida, correndo-se o risco, inclusive, da necessidade de cancelamento do novo assento, caso o ente público desista da desapropriação no curso do processo. Pela própria redação do art. 176-A, é o registro de aquisição originária que ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel expropriado, ou seja, o novo assento só será criado por ocorrência da aquisição originária da propriedade pela desapropriação. Analisando-se ainda mais a fundo o mesmo artigo, tem-se a seguinte redação: Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando § 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência II - carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência III - escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência IV - aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela lei 14.620, de 2023) V - sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Incluído pela lei 14.620, de 2023) O artigo não só prevê a abertura da matrícula originária pela imissão provisória na posse, como também pela carta de adjudicação ou pela sentença no processo expropriatório específico do art. 1.228 do CC, além da escritura pública no caso de procedimento extrajudicial. A abertura da matrícula por conta da desapropriação, portanto, pode ocorrer em razão de diversos títulos, podendo-se, por interpretação lógica, deduzir que não é nenhum deles especificamente que enseja a transmissão da propriedade. Se fossem, haveria contradição para a abertura da matrícula, na medida em que o caput prevê que a aquisição originária ensejará a criação do novo assento. Explica-se: se a aquisição originária fosse efetivamente determinada por algum desses títulos, haveria uma contradição para o momento da transmissão da propriedade, visto que a redação permitiria o registro da aquisição pelo título de imissão provisória na posse, pela carta de adjudicação, pela sentença ou pela escritura pública - ocorrendo cada uma delas em momento diverso. Assim, há mais sentido ainda no entendimento de que a propriedade (plena ou onerada) se transmite com o pagamento inicial, ocasião anterior a todos esses títulos, servindo os mesmos apenas para regularizar o ingresso da desapropriação no Registro Imobiliário (natureza declaratória). Outro ponto a ser verificado é a previsão da lei 6.766/1979, sobre o parcelamento do solo urbano. O art. 2ª-A, c, permite que o parcelamento seja realizado por ente da administração pública direta ou indireta habilitado a promover o ato expropriatório com a finalidade de implantação de parcelamento habitacional ou de realização de regularização fundiária de interesse social, desde que tenha ocorrido sua regular imissão na posse. Mais à frente, o art. 18 dispõe: Art. 18. Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação, acompanhado dos seguintes documentos: I - título de propriedade do imóvel ou certidão da matrícula, ressalvado o disposto nos §§ 4º e 5º; (Redação dada pela lei 9.785, de 1999) § 4o O título de propriedade será dispensado quando se tratar de parcelamento popular, destinado às classes de menor renda, em imóvel declarado de utilidade pública, com processo de desapropriação judicial em curso e imissão provisória na posse, desde que promovido pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, autorizadas por lei a implantar projetos de habitação. (Incluído pela lei 9.785, de 1999) § 5o No caso de que trata o § 4o, o pedido de registro do parcelamento, além dos documentos mencionados nos incisos V e VI deste artigo, será instruído com cópias autênticas da decisão que tenha concedido a imissão provisória na posse, do decreto de desapropriação, do comprovante de sua publicação na imprensa oficial e, quando formulado por entidades delegadas, da lei de criação e de seus atos constitutivos. (Incluído pela lei 9.785, de 1999) Ocorre, portanto, uma dispensa expressa da apresentação do título de propriedade para que se efetive o registro do loteamento ou desmembramento promovido por ente público, quando ele já tiver sido imitido provisoriamente na posse do bem objeto do parcelamento que estiver em processo de desapropriação. Novamente, parece pouco provável que o sistema permitiria a realização do parcelamento do solo de um bem ainda não adquirido efetivamente pela Administração Pública, cuja desapropriação fosse passível de desistência no curso do processo. O texto da lei 6.766/1979 se alinha com a ideia de que, efetivado o pagamento (motivo pelo qual foi imitido o ente público na posse do bem), a propriedade já se transfere na desapropriação. Assim, o título de propriedade é dispensado por ser meramente declaratório. Diante das considerações e entendendo pelo posicionamento de que a transmissão da propriedade na desapropriação ocorre com o pagamento inicial pelo ente público, pode-se considerar que a imissão provisória na posse, na verdade, não tem natureza provisória. Ocorrendo a transferência com o pagamento, autoriza-se a imissão do ente público na posse do bem, já de forma definitiva, visto que não haverá a possibilidade, por regra, de desistência da desapropriação, correndo em juízo apenas discussões posteriores sobre a complementação do pagamento ou outras questões, e não mais sobre a efetivação da desapropriação em si. Parece que o termo "imissão provisória" foi mantido nas inserções realizadas pela lei 14.620/2023 por se alinhar ao texto do decreto-lei 3.365/1941, porém, os direitos dela oriundos já advêm da transmissão da propriedade efetivada com o pagamento. Nesse sentido, o título de imissão na posse (que é definitivo) serve para permitir a regularização dos direitos para o ente público, antes de se aguardar a sentença final e a carta de adjudicação. Assim, o ente público não precisará aguardar o término do processo para ter um título hábil para ingresso no Registro de Imóveis, servindo já a imissão para possibilitar a constituição de direitos reais sobre o bem, sua hipoteca ou alienação em garantia, o parcelamento de solo, entre outros direitos decorrentes da propriedade constituída. Sejam felizes! __________ 1 Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens; § 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito:  (Incluído pela lei 2.786, de 1956) a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial; (Incluída pela lei 2.786, de 1956) b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido; (Incluída pela lei 2.786, de 1956) c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; (Incluída pela lei 2.786, de 1956) d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel.  (Incluída pela lei 2.786, de 1956) § 2º A alegação de urgência, que não poderá ser renovada, obrigará o expropriante a requerer a imissão provisória dentro do prazo improrrogável de 120 (cento e vinte) dias. (Incluído pela lei 2.786, de 1956) § 3º Excedido o prazo fixado no parágrafo anterior não será concedida a imissão provisória. (Incluído pela lei 2.786, de 1956) § 4o  A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente. (Incluído pela lei 11.977, de 2009)  2 Art. 1.225. São direitos reais: XIV - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão." (NR) 3 Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca: XI - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. (Incluído pela lei 14.620, de 2023) 4 Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1o  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:     V - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e a respectiva cessão e promessa de cessão; (Incluído pela lei 14.620, de 2023) 5 Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023) § 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021)    Vigência 6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 26º ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 881; MEIRELLES, Hely Lopes; e BURLE FILHO, Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 42ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 743-745; MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1132 e 1137; GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 775. 7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 243. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 1204-1205; KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 2. p. 2095. 8 Texto retirado de KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 162. 9 A discussão sobre o tipo de direito real será retomada em coluna posterior.
terça-feira, 5 de setembro de 2023

O patrimônio de afetação e os loteamentos

A lei 6.766/1979, também conhecida como Lei Lehman, representou uma mudança significativa no regime jurídico de parcelamento de solo para imóveis urbanos, enquanto o decreto-lei 58/1937 passou a regulamentar outras formas de parcelamento, incluindo loteamentos rurais e industriais, conforme disposto no art. 1º, I, "c". Esta legislação trouxe, à época, uma abordagem moderna, que visava conciliar interesses econômicos com preocupações urbanísticas, ambientais e de proteção ao consumidor. Isso resultou na necessidade de que os projetos de parcelamento fossem submetidos à análise tanto da Prefeitura Municipal quanto dos registros imobiliários, estabelecendo um equilíbrio entre os diferentes entes administrativos. O termo "parcela" refere-se a uma fração de um todo, portanto, o conceito de parcelamento do solo pode ser definido como a divisão completa ou parcial de uma propriedade em áreas específicas, cada uma com matrícula própria. Essa subdivisão é uma extensão direta do exercício do direito de propriedade e do poder de disposição, conforme estabelecido no Código Civil, artigo 1.228, caput. O parcelamento do solo é classificado em duas categorias: loteamento e desmembramento, ambos registrados por meio da abertura de matrículas individuais para os lotes, destinados à edificação (LRP, art. 167, inciso I, 19, em conjunto com a Lei de Parcelamento do Solo, art. 18). A distinção fundamental entre essas duas modalidades reside no fato de que o loteamento implica na subdivisão de uma gleba em lotes e geralmente envolve a criação de infraestrutura pública, como a construção de logradouros públicos ou a melhoria das vias existentes (LPS, art. 2º, § 1). Em contraste, o desmembramento aproveita a infraestrutura já existente no local, conforme estipulado no mesmo art. 2º, § 2º. O desdobro é uma modalidade de subdivisão de lotes, que embora não esteja prevista na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, apresenta-se regulamentado por leis municipais. Na matrícula do imóvel, o desdobro é inscrito por meio de um ato de averbação, conforme estabelecido no artigo 167, inciso II, 4, da Lei de Registros Públicos. Antes da vigência da lei 6.015/1973, o Livro 8 de Registro Especial era utilizado para registrar a propriedade loteada, especialmente para a venda de lotes a prazo, em prestações sucessivas e periódicas, conforme disposto no decreto  4.857/1939. Os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão eram averbados à margem desse registro, de acordo com o artigo 167, inciso II, 3, em conjunto com o decreto-lei 58/1937, artigo 4º, alíneas "a" e "b". No Livro 3 - de Transcrições, era efetuada a averbação da inscrição da propriedade loteada, conforme estipulado no decreto-lei, artigo 4º, parágrafo único. Ao longo dos anos, diversas modificações foram realizadas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano. A mais recente delas é a lei 14.260/2023, originada da Medida Provisória nº 1.162/2023, que incluiu os artigos 18-A ao 18-F. Esses dispositivos permitem que o loteador, em um loteamento, tenha a opção de submetê-lo ao regime de afetação. A criação do patrimônio de afetação, prevista na Lei nº 4.591/1964 e posteriormente modificada pela lei 10.931/2004, tinha como objetivo principal assegurar a restituição imediata dos adquirentes de fração ideal, vinculada à unidade autônoma, seja ela em construção ou a ser construída. Esse mecanismo garantiria a proteção dos interesses dos adquirentes no caso de insolvência ou quebra da incorporadora.1 A teoria da afetação, desenvolvida no século XIX, surgiu como resposta à teoria da unicidade patrimonial. Essencialmente, a teoria da afetação preconiza a criação de patrimônios especiais, separados do patrimônio geral, destinados ao cumprimento de uma finalidade específica.2 Assim, seu principal objetivo reside na prevenção da possibilidade de que credores comuns tenham acesso a ativos vinculados inequivocamente a uma finalidade específica. Em outras palavras, a teoria da afetação impede que os credores tenham acesso ao patrimônio de uma pessoa quando esse patrimônio está destinado a uma finalidade específica. A aplicação da teoria da afetação no contexto do mercado imobiliário proporciona segurança e confiança no desenvolvimento dos empreendimentos. Isso inclui a contabilização separada, controle e fiscalização dos recursos financeiros destinados à incorporação.3 Por meio da lei 14.620/2023, o legislador decidiu estender essa segurança também aos loteamentos, impondo obrigações de controle contábil, conforme previsto no artigo 18-E da Lei de Parcelamento do Solo (LPS), os quais são cientificados os adquirentes, o Poder Público e a financiadora.4 Portanto, a afetação se caracteriza pela segregação do empreendimento imobiliário, no caso, o loteamento, do patrimônio comum, criando um patrimônio "imputado" voltado especificamente para a realização dos lotes, destinados à edificação e infraestrutura pública. Quanto aos requisitos para essa averbação, a primeira questão que surge é se a afetação pode ser aplicada aos desmembramentos. Com base na diferenciação estabelecida na própria Lei de Parcelamento do Solo Urbano, parece que o legislador não teve a intenção de incluir os desmembramentos nos dispositivos inseridos, uma vez que não há menção específica a eles. Os loteamentos são empreendimentos de maior envergadura do que os desmembramentos, pois envolvem a alteração do espaço urbano com a construção de equipamentos e vias públicas, que são posteriormente transferidos para o Município, de acordo com o artigo 22 da LPS. Portanto, é compreensível a concessão legal dessa faculdade de afetação para os loteadores, mas não necessariamente para outros tipos de parcelamento do solo. Outro aspecto a ser considerado é a maneira de formalização da afetação. Conforme estabelecido no artigo 18-B, a afetação é formalizada por meio de um termo assinado pelo loteador, embora possa ser necessário envolver os titulares de direitos reais de aquisição dos lotes comercializados. Na fase de qualificação, o registrador não poderá recusar o ingresso do termo do patrimônio de afetação com base na existência de ônus reais registrados na matrícula que tenham sido estabelecidos para garantir o pagamento do preço de aquisição do imóvel ou o cumprimento de obrigações relacionadas à implantação do empreendimento, como previsto no artigo 18, parágrafo único, da Lei de Parcelamento do Solo (LPS). O patrimônio de afetação abrangerá tanto o terreno quanto a infraestrutura pública, bem como quaisquer bens e direitos vinculados a ele, conforme estipulado no artigo 18-A, caput, da mesma lei. É importante ressaltar que se trata de loteamento, que pode ser classificado como aberto ou fechado, conforme esclarecido pela lei 13.465/2017.5 É fundamental observar que o patrimônio de afetação não se mescla com outros bens, direitos ou obrigações do patrimônio geral do loteador ou de outros patrimônios de afetação que ele possa ter constituído. No entanto, o loteador será responsável pelas dívidas e obrigações relacionadas ao loteamento específico e pela entrega dos lotes urbanizados aos adquirentes, conforme disposto no artigo 18-A, § 1º, da LPS. A integração da infraestrutura pública, seja ela já construída ou ainda em desenvolvimento, envolve a inclusão de bens públicos na massa patrimonial afetada. Quando ocorre o registro do loteamento, esses bens são transferidos para o domínio do Município, a menos que haja uma afetação pública anteriormente estabelecida. Adicionalmente, é permitida a abertura de matrículas de bens públicos na forma do artigo 195-A da Lei de Registros Públicos, quando concluídas as obras antes do registro do loteamento. A eventual decretação da falência ou da insolvência civil do loteador, por consequência, não atingem o patrimônio afetado, uma vez que não faz parte da massa falida, do mesmo modo que as exceções do art. 49, §§ 3º e 4º da lei 11.101/2005, com as modificações da lei 14.112/2020 (LPS, art. 18-F). A instituição financiadora do empreendimento não se sujeita às obrigações ou responsabilidades do cedente loteador (LPS, art. 18-A, § 7º), tal qual a prevista para grupos econômicos ou financeiros, responsável solidariamente pelos prejuízos gerados aos adquirentes e ao Município (LPS, art. 47). É importante notar que a instituição financeira, bem como a Comissão de Representantes e a Prefeitura, possuem a prerrogativa de designar uma pessoa física ou jurídica para supervisionar a gestão do patrimônio de afetação, bem como o progresso da infraestrutura, de acordo com o disposto no artigo 18-C, tanto em seu caput quanto no § 2º. A lei 14.620/2023 trouxe a possibilidade de o empreendedor ceder seus direitos creditórios provenientes das unidades vendidas do empreendimento, com o objetivo de angariar fundos para a execução das obras e serviços de acordo com o cronograma previamente apresentado à Prefeitura. Os recursos obtidos por meio dessa cessão de crédito são incorporados ao patrimônio de afetação, porém, só podem ser acessados pelo loteador após a conclusão das obras. Cumpre ressaltar que, se o crédito da cessão exceder o valor necessário para o término da infraestrutura do empreendimento, com sua conclusão, o excedente poderá ser disponibilizado para o loteador. O patrimônio de afetação pode ser extinto por várias razões, conforme estipulado no artigo 18-E da LPS, de forma similar às causas de extinção aplicáveis a condomínios edilícios (lei 4.591/1964, artigos 31-A a 31-F). Uma das causas é a averbação do Termo de Verificação e Execução de Obras (TVEO) emitido pelo órgão público competente, seja o Município ou o Distrito Federal, que atesta a conclusão das obras conforme exigido pela legislação municipal, conforme o artigo 18, § 4º da LPS, com a redação dada pela lei 14.118/2021.6 Somente após a emissão do TVEO é que o Município procederá à individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal, em nome dos adquirentes ou compromissários compradores dos lotes comercializados e, nos casos dos lotes não comercializados, em nome do proprietário da gleba, conforme estipulado no artigo 22, § 3º da LPS. Outra causa de extinção é o registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes, o que representa a entrega do resultado do empreendimento aos compradores, juntamente com as obrigações legais, responsabilidades tributárias e outros encargos inerentes à propriedade dos lotes. Por fim, a extinção das obrigações do loteador perante a instituição financiadora da obra, por meio de quitação, também pode resultar na extinção do patrimônio de afetação. Até que essa quitação ocorra, a comercialização dos lotes deve contar com a concordância ou o conhecimento da instituição financeira, conforme previsto no contrato celebrado entre o loteador e a credora. Desde a promulgação da Lei do Distrato, tem havido um notável fortalecimento do patrimônio de afetação, o qual se solidificou ainda mais com a promulgação da lei 14.620/2023. Esta última lei foi criada com o propósito de fortalecer a confiança no mercado imobiliário, sobretudo no que concerne ao êxito na conclusão dos empreendimentos. Além disso, essa legislação oferece vantagens ao loteador, como acesso a crédito imobiliário com taxas de juros mais baixas, graças à redução do risco proporcionada pela segregação de seu patrimônio. É importante destacar que, por meio dessa iniciativa, o empreendedor tem a oportunidade de usufruir do regime tributário especial estabelecido na lei 10.931/2004, o que traz benefícios tanto para a sociedade quanto para o desenvolvimento econômico, representando uma medida positiva em vários aspectos. Sejam Felizes! __________ 1 O caso que deu ensejo à inclusão na Lei 4.591/1964 da teoria foi a quebra da Encol. Esta levou a publicação da lei 10.931/2004. 2 ROCHA, Mauro Antônio. O regime de afetação patrimonial na incorporação imobiliária: uma visão crítica da lei. In: IRIB. Acesso em 26/08/2023. 3 Idem  4 Para mais informações desta alteração, consultar KÜMPEL, Vitor F. e BORGARELLI, Bruno A. Loteamento de acesso controla. In Regularização Fundiária Urbana - Estudos sobre a Lei 13.465/2017, coord. Eduardo C. Silveira Marchi; Vitor Frederico Kümpel; e Bruno de Ávila Borgarelli. São Paulo: YK Editora, 2019, p. 241- 250, in verbis: Trata-se de loteamento, em que há "bloqueio de acesso a terceiros não titulares de lotes ou moradores das edificações feitas, tem-se o chamado loteamento fechado". 5 A lei 14.118/2019 instituiu o programa Casa Verde e Amarelo, o qual foi revogado pela lei 14.260/2023. Dentre as alterações, está a inclusão do art. 2º- A da LPS, que albergou no conceito de empreendedor para fins de parcelamento o responsável pela implantação do parcelamento.
O provimento 146 do CNJ, de 26 de junho de 2023, esclareceu, de forma acertada, os limites do termo de dissolução da união estável e partilha e do procedimento de alteração de regime de bens dos companheiros, realizados pelo Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, expressando a obrigatoriedade de escritura pública tanto na hipótese do art. 108 do CC/02 quanto em outras situações exigidas por lei. Nesse contexto, destaca-se que a lei 14.382/22 inseriu na lei dos registros públicos, como atribuição dos registradores civis, a lavratura de termo declaratório de união estável (art. 94-A), disposição que foi regulada pelo provimento 141/23 do CNJ (que alterou o provimento 37/14 do CNJ), permitindo também a lavratura de termos de dissolução de união estável e do procedimento de mudança no regime de bens, com ou sem partilha. Todavia, as disposições trazidas pelo provimento 141/23 não exigiam expressamente a necessidade de escritura pública para a dissolução de união estável e para a mudança no regime de bens, que envolvessem partilha. Além disso, a redação estabelecia que, no caso de partilha de bens, o valor dos emolumentos do termo declaratório de dissolução de união estável corresponderia ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do ato (escritura com valor declarado)1. Esse dispositivo recebeu diversas críticas por contrariar o art. 108 do Código Civil, que exige a escritura pública para a validade de negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País e por tratar-se de atribuição típica do Tabelião de Notas, declaratória da distribuição dos bens e de formalização da vontade das partes (art. 6°, I da lei 8.935/94), inclusive, com a fiscalização tributária em caso de excesso de meação. Esse entendimento ecoou em outro artigo dessa coluna2. Em positivo esclarecimento, o provimento 146/23 do CNJ alterou essas disposições, estabelecendo que, nas situações de partilha decorrente da dissolução da união estável, persiste a exigência da escritura pública nas hipóteses legais em que esta se mostra obrigatória, como no caso do art. 108 do Código Civil. Portanto, caso o valor do imóvel seja inferior a trinta salários-mínimos ou não existam bens imóveis, o registrador civil poderá realizar a partilha no próprio termo declaratório, que servirá como título hábil, salvo lei em contrário, a ingressar no registro civil. A discussão persiste se o referido título ingressaria no Registro de imóveis, destaca-se que essa situação é diversa da partilha realizada em divórcio ou inventário extrajudicial, que exige escritura pública independentemente do valor, nos termos do CPC. Sendo assim, no caso de partilha decorrente de dissolução de união estável em que o patrimônio imobiliário tenha valor declarado ou venal acima de trinta salários-mínimos, o título hábil para a operação é a escritura pública, lavrada por Tabelião de Notas. Ressalva-se que continua possível a lavratura do termo declaratório de dissolução de união estável pelo registrador civil nesses casos, com o intuito de declarar o fim desta, provando a cessação dos deveres entre os companheiros, desde que sem a partilha dos bens (que exigirá a escritura pública), para fins registrais. Do mesmo modo, no requerimento de alteração de regime de bens de união estável com proposta de partilha, caso o patrimônio imobiliário partilhável tenha valor acima de trinta salários-mínimos, faz-se necessária a apresentação de escritura pública ou declaração dos companheiros de que por ora não desejam realizá-la3. Por exemplo, na hipótese de os companheiros promoverem a mudança do regime da comunhão universal para a separação total convencional. A mudança do regime de bens da união estável não é regulada pelo CC, que diferentemente, no caso do casamento, exige autorização judicial, em rito de jurisdição voluntária, com pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros4. Consequentemente, para a alteração do regime de bens dos companheiros, vigora a liberdade de forma, salvo disposição legal em contrário, que é o caso do art. 108 do CC. Portanto, nas hipóteses da lei, a escritura pública é forma essencial à validade do ato de partilha decorrente de dissolução ou alteração do regime de bens na união estável. Ademais, nos "considerandos" do provimento 146 do CNJ, o Corregedor Nacional de Justiça, Exmo. ministro Luis Felipe Salomão, fundamenta a alteração na "importância de deixar clara a obrigatoriedade de escritura pública na hipótese do art. 108 do CC mesmo no caso de partilha decorrente de dissolução de união estável registrada no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais". A partir disso, infere-se que, em verdade, a exigência de escritura pública na hipótese do art. 108 do CC nunca foi dispensada para a partilha decorrente de dissolução e alteração do regime de união estável, diante de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, evidenciando tratar-se de alteração de caráter interpretativo. Em outra importante mudança, estabeleceu-se que, enquanto não for editada legislação específica estadual, o valor dos emolumentos devidos ao registrador civil pelo termos declaratórios de reconhecimento ou dissolução de união estável será de 50% do valor previsto para o procedimento de habilitação de casamento5. Foi suprimida a exceção da redação anterior, que estabelecia que, em caso de partilha de bens, o valor dos emolumentos corresponderia ao da escritura pública desse ato jurídico. No Estado de São Paulo, considerando as situações em que não há partilha ou que não se enquadrem no art. 108 do CC, a opção pelo termo declaratório é menos onerosa ao usuário do que a escritura pública. Também, em importante alteração6, evidenciou-se a necessidade de prévia homologação pelo STJ no caso de sentença estrangeira e reestabeleceu-se a obrigatoriedade do registro de título estrangeiro referente à união estável no Registro de Títulos e Documentos (que era dispensada pela redação anterior), como condição para a produção de efeitos legais no país, em harmonia com o art. 148 da lei dos registros públicos. Tal alteração também se compatibiliza com a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça nos autos da consulta 0009075-58.2021.2.00.0000, no sentido da obrigatoriedade do registro de documentos estrangeiros apostilados no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Desse modo, o provimento 146/23 do CNJ promoveu precisas alterações no provimento 37/14 relacionadas à união estável, harmonizando-o com a legislação, e expressando a necessidade de observância do art. 108 do CC para a partilha de bens e a obrigatoriedade de registro no RTD de títulos estrangeiros, coroando a interpretação sistemática do ordenamento jurídico. ----- 1 Redação anterior do art. 1°-A, § 6º, I do Provimento n° 37/2014 do CNJ. 2 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K., A busca pela natureza jurídica do termo declaratório de união estável. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/387810/a-busca-pela-natureza-juridica-do-termo-declaratorio-de-uniao-estaveldeclaratorio-de-uniao-estavel. Acesso em: 14 de agosto de 2023. 3 Art. 9°-B, V do Provimento n° 37/2014 do CNJ. 4 Art. 1639 do Código Civil. 5 Nova redação do art. 1°-A, § 6º, I do Provimento n° 37/2014 do CNJ. 6 Art. 2°, § 3º do Provimento n° 37/2014 do CNJ.
O art. 176-A da Lei dos Registros Públicos, que dispõe sobre a abertura de matrícula para situações de aquisição originária da propriedade imobiliária, teve nova redação pela recente lei 14.620/23. Contudo, esse dispositivo já sofreu uma série de alterações ao longo dos últimos anos; observa-se, então, seu histórico, para que se passe à análise dos efeitos da atual redação em vigor. A primeira inserção do dispositivo se deu pela Medida Provisória 700 de 2015, que perdeu a eficácia após o período de vigência da MP, que não foi convertida em lei1. Em 2021, uma nova redação foi efetivamente inserida na Lei dos Registros Públicos pela lei 14.2732 (que vigorava até recentemente). Com a lei 14.620/23, parte do texto da MP 700 de 2015 foi retomado, passando o dispositivo a vigorar com a seguinte redação: Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) I - atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) II - atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior.       (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) § 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição.      (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 2º As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para esse fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 3º (VETADO). (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência § 4º Se a área adquirida em caráter originário for maior do que a constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 4º-A. Eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) § 5º O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência II - carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência III - escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência IV - aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia;      (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) V - sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).       (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)            Pontua-se, inicialmente, o que é a aquisição originária da propriedade imobiliária. Para Caio Mário da Silva Pereira, propriedade originária seria aquela que nunca esteve sob o domínio de alguém, ou seja, nunca teve titular anterior, transmitindo-se, portanto, sem qualquer relação causal, já que nunca houve nenhuma sobre aquela coisa3. Contudo, crê-se que a melhor definição de aquisição originária se dá sob o critério de encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, e não sob o da existência de titulares prévios. Assim, pelo critério da relação causal entre titulares, na aquisição originária, não há uma causalidade entre a titularidade anterior e a nova situação da coisa, ou seja, não houve uma relação volitiva entre o titular antecedente e o titular posterior que ensejou a transferência. Nesse caso, por inexistir vontade das partes na relação, a transmissão da propriedade ocorre de forma desvinculada da situação anterior da coisa, sendo desconsideradas as relações jurídicas anteriores à titularidade atual. Diferentemente, na aquisição derivada, mantém-se a sucessão das relações jurídicas de transmissão da propriedade, existindo uma causalidade volitiva que gera a transferência do titular anterior para o posterior, como é o caso da compra e venda. Nesse caso, a propriedade é transmitida com todos os seus ônus, na medida em que a causalidade volitiva foi elemento essencial para essa mudança de titularidade4. Como visto, o art. 176-A trata da primeira hipótese, de aquisição originária, em que inexiste o encadeamento das relações jurídicas para a transmissão da propriedade imóvel. O rol previsto no §5º, inclusive, elenca as situações de desapropriação, expropriação, usucapião e concessão de uso especial para fins de moradia, nas quais não há a causalidade para a aquisição. É importante frisar, contudo, que esse rol é exemplificativo, na medida existem outras hipóteses de aquisição de propriedade originária, tais como a acessão e a carta de adjudicação ou arrematação em processo judicial de execução5, que não estão previstas nessa lei. Para a adjudicação e arrematação, parece não haver impactos práticos o fato de tal situação não ter sido elencada no art. 176-A, na medida em que inexiste, a princípio, modificação de área do bem executado por dívida. Além disso, a aquisição por esse meio é um pouco mais complexa, pois, embora não se aplique o princípio da continuidade registral (e, por isso, um dos fundamentos para se tratar de uma forma de aquisição originária), permanece o princípio da especialidade objetiva e, ainda, pode haver determinação judicial para o não cancelamento de eventuais ônus já pendentes sobre o bem6. A acessão, contudo, é uma forma de aquisição da propriedade por meio da aderência ou soma ao solo de um bem, ampliando o volume e o valor daquele7. Há, portanto, uma alteração de área do bem imóvel originário, podendo ser enquadrada na hipótese do inciso I do art. 176-A, pois, nesse caso, atinge parte de imóvel objeto de registro anterior (quando o imóvel que sofreu a acessão já tiver matrícula). Parece, então, que o legislador se preocupou essencialmente com as formas de aquisição originárias que geram impacto na especialização objetiva do bem, e se observa rol do art. 176-A é exemplificativo, na medida em que existem outras formas de aquisição não derivada no Ordenamento. Ainda, vale observar que, muito embora o artigo tenha elencado os títulos que adentrarão a serventia extrajudicial para a regularização da propriedade, não é o seu registro necessariamente que constitui a aquisição originária. O art. 1.245 do Código Civil prevê que a propriedade de bem imóvel se transmite por ato entre vivos mediante registro do título translativo no Registro de Imóveis. Frise-se, contudo, que esse título "translativo" bem se adequa às situações em que há a causalidade na transmissão do domínio, que dependem, em regra, desse registro na serventia, que terá efeito constitutivo. No entanto, as situações de aquisição originária tendem a se formar por outros meios, sem a existência de títulos translativos, e seu ingresso no Registros de Imóveis tem efeitos declaratórios. Observe-se a título de exemplo. A usucapião é um caso clássico, na medida em que a aquisição se dá quando cumpridos todos os requisitos para a espécie adotada. A acessão se dá de forma natural, quando ocorre a incorporação do volume ao bem. Na desapropriação, a transferência ocorre com o pagamento pelo Poder Público. Tanto é verdade, inclusive, que a mesma lei 14.620/23 transformou em direito real, previsto no rol do art. 1.225 do CC, os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. Assim, os direitos de imissão provisória na posse nos casos de desapropriação apenas poderiam se constituir como direito real, bem como servir de título para a abertura de matrícula, se a propriedade do bem já estivesse efetivamente transmitida ao Poder Público. A maior finalidade do art. 176-A, portanto, parece ser facilitar a regularização da propriedade adquirida por meio originário, que, muitas vezes não condiz com a área do bem inicialmente descrito na matrícula ou se dá sobre área ainda não constante no fólio registral8. Na aquisição originária, naturalmente, é quase impossível se observar a especialidade objetiva para a área que foi adquirida, pois ela varia muito de acordo com cada caso concreto. Assim, o dispositivo facilita que o registrador promova a regularização, prevendo que não será obstado o registro mesmo que existam eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente. Além disso, facilitou-se também a regularização de outros imóveis que tiverem sido afetados pela aquisição originária, permitindo-se que ele promova averbações com facilidade para adequar as áreas de outros bens que tenham sido desfalcados ou, até mesmo, tomados por completo pela nova aquisição. Por fim, após a análise, apresenta-se o seguinte questionamento: além das hipóteses já previstas de aquisição originária da propriedade no Ordenamento, a lei 14.620/23 inovou ao definir novas situações para os imóveis adquiridos no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, no art. 10, §§ 2º e 3º? Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). [...] § 2º  Na hipótese de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável. § 3º Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. [...] Explica-se: a Lei prevê transferência integral do imóvel adquirido por um casal, no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, para a mulher, no caso de dissolução de união estável, separação ou divórcio, ou para o homem, quando a ele for atribuída a guarda unilateral de eventuais filhos do casal (e, ainda, uma possibilidade de reversão para a troca da guarda). Assim, independentemente do regime de bens, quando ocorrer a dissolução da união estável, divórcio ou separação, não haverá a partilha do imóvel proporcional entre os ex-cônjuges (na forma prevista no Código Civil), mas sim a transferência integral pelo critério de gênero ou de atribuição de guarda. Aplica-se, portanto, uma determinação do Estado em detrimento das regras tradicionais da comunhão e do regime de bens. Parece, assim, inexistir a relação de causalidade volitiva para essa transferência da fração ideal do imóvel entre os cônjuges, na medida em que a transmissão ocorre por determinação legal. Não é possível, pelo critério adotado, aferir relação volitiva entre os cônjuges para essa transferência, visto que o próprio regime de bens - que seria uma escolha feita pelo casal - não é respeitado para a situação de aquisição no Programa Minha Casa Minha Vida; em outros termos, não se pode verificar uma vontade nem pela escolha do regime de bens, cujas regras não serão aplicadas. Trata-se de uma aquisição de propriedade por imposição legal sob o critério de gênero ou de guarda dos filhos. Sejam felizes! _____________ 1 Art. 2º A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido se não houver ou quando: I - atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou II - atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior. § 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição. § 2º As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para este fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente. Art. 176-B.  O disposto no art. 176-A aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro:     I - de ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação;           II - de carta de adjudicação em procedimento judicial de desapropriação;                  III - de escritura pública, termo ou contrato administrativo em procedimento extrajudicial de desapropriação;  IV - de aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; e  V - de sentença judicial de aquisição de imóvel em procedimento expropriatório de que tratam os § 4º e § 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.  Acesso disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/124368 [13-08-2023] 2 Art. 176-A. O registro de aquisição originária ou de desapropriação amigável ou judicial ocasionará a abertura de matrícula, se não houver, relativa ao imóvel adquirido ou quando atingir, total ou parcialmente, um ou mais imóveis objeto de registro anterior.    § 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição, os quais assegurarão a descrição e a caracterização objetiva do imóvel e as benfeitorias, nos termos do art. 176 desta Lei.    § 2º As matrículas atingidas serão encerradas ou receberão averbação dos desfalques, caso necessário, dispensada a retificação da planta e do memorial descritivo da área remanescente.   § 4º Na hipótese de a área adquirida em caráter originário ser maior do que a área constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta. 3 PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. IV. p. 115. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. 1. ed. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 1. p. 156-157. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 923; Tomo 2. p. 2038. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 2. p. 2038. 7 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 923. 8 Nesse sentido: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Novo Direito Real com a lei 14.620/23: uma atecnia utilitarista diante da imissão provisória na posse. In Migalhas, 17-07-2023, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/390037/novo-direito-real-com-a-lei-14-620-23 {13-008-2023]  
terça-feira, 15 de agosto de 2023

A caducidade incide sobre o pacto antenupcial?

A nomenclatura "pacto" é utilizada para referir-se ao acordo de vontades em que os interesses das partes são comuns, em oposição ao conceito de "contrato", em que os interesses dos contratantes são contrapostos, normalmente caracterizados por uma relação sinalagmática. O Código Civil de 2002, em uma única oportunidade, utiliza a palavra "pacto" exatamente com o objetivo de distinguir dos contratos em geral, na medida em que o pacto é o acordo de vontade em que os interesses são comuns ou paralelos. O contrato é a convergência de interesses contrapostos em que, na maioria dos casos, caracteriza-se pelo sinalagma. O pacto antenupcial é o instrumento jurídico que visa regular as diretivas basilares do futuro casamento e, consequentemente, fundamentais à estabilidade e proteção das relações econômicas da família, como um negócio jurídico sui generis do Direito de Família. Por diversos motivos, pode decorrer grande lapso de tempo entre a confecção do pacto antenupcial no Tabelionato de Notas e a celebração do casamento no Registro Civil das Pessoas Naturais. Com tal desiderato, este artigo busca investigar se há um prazo de caducidade para o pacto antenupcial, ou seja, um limite temporal após a sua confecção para que o casamento se realize, ou se o pacto tem vigência sine die. Ademais, questiona-se a possibilidade de confecção de vários pactos concomitantes para a adoção de um e a possibilidade de confecção de pacto pós-nupcial, para fins de homologação judicial. Dentre as poucas regras estabelecidas pelo CC, destaca-se que o pacto antenupcial é nulo se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento (art. 1653 do Código Civil). O pacto antenupcial não é essencial para o aperfeiçoamento da sociedade conjugal, podendo as partes optar pelo implícito regime da comunhão parcial de bens ou se sujeitar à separação obrigatória nas hipóteses taxativamente previstas pelo art. 1.641. Como exposto acima, após a celebração do casamento, é possível o pacto pós-nupcial, desde que homologado pelo juízo em sede de jurisdição voluntária, podendo o mandado ter força de escritura pública diante da mutabilidade mitigada do artigo 1.639 do Código Civil. Retornando a questão originária, existe ou não um prazo de vigência para o pacto antenupcial? Existem duas grandes teses sobre o assunto: Em uma primeira corrente, defendida por Carlos Roberto Gonçalves1 e Caio Mário2, entende que não há prazo de caducidade para o pacto antenupcial, pois a caducidade é norma de exceção e a lei nada estabelece. Também, vigora a autonomia da vontade, com os negócios por prazo indeterminado valendo até que sejam denunciados ou na ocorrência de situação convencionada ou prevista em lei, não sendo possível sua restrição sem previsão legal ou voluntária. Conforme a primeira tese, afora a hipótese em que as partes fixem um prazo no próprio pacto, ele vigorará caso admitido por ocasião da habilitação do casamento, independentemente de prazo ou condições. Porém, uma segunda corrente, adotando a técnica da analogia, defende a aplicação do prazo de noventa dias de eficácia da certidão de habilitação, ou seja, o mesmo que garante eficácia para a certidão de habilitação do casamento, constante do art. 1.532 do Código Civil, de modo antecedente ao casamento, valendo-se da dicção do artigo 1.640, parágrafo único, do Código Civil, que dispõe o seguinte: "poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas." Essa interpretação sistemática considera esse prazo de 90 dias uma presunção temporal de manutenção da vontade firme dos nubentes em contrair o matrimônio, entendendo que, por outro lado, caso ultrapassados os 90 dias, mostra-se necessária uma nova manifestação de vontade, a reafirmar a vontade de se casar. Com base no art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil, entendia-se que só valia se iniciasse a habilitação, no processo de habilitação, por 90 dias. Assim, para essa corrente, no Código Civil de 2002 e no de 1916, após decorridos esses 90 dias sem a celebração do casamento, será ineficaz o pacto, por presunção de alteração da vontade, sendo necessária nova escritura pública de confirmação do pacto, lavrada antes do casamento e observando-se esse prazo. Nessa linha, a respeito da redação do artigo 1.653 do Código Civil de 2002, expõe Maria Alice Zaratin Lotufo que "o pacto será ineficaz se não lhe seguir o casamento, o que nos leva a entender que esse prazo, o do tempo que os nubentes têm para se casar após a habilitação e que, conforme art. 1.532 é de 90 dias (...)"3. Filiando-se ao entendimento do limite temporal de 90 dias, a 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, no âmbito de Pedido de Providências em que foi apresentado para habilitação do casamento no Registro Civil de Pessoas Naturais um pacto antenupcial lavrado após esse prazo, entendeu necessária a celebração de nova escritura pública, aplicando em analogia o prazo de validade da habilitação de casamento, "após o qual os atos praticados perdem seu efeito, devendo ser repetidos, para conferir segurança jurídica aos nubentes, a terceiros e ao Estado"4. Por conseguinte, a validade da convenção não pode ser indeterminada, pois o que nele se fez constar pode perder a validade fática e vir a refletir efeitos jurídicos indesejados para os consortes ou para terceiros, daí a previsão de ineficácia, preservando a higidez do negócio jurídico. Como curiosidade, destaca-se que o projeto de Código das Obrigações, apresentado em 1963 por Caio Mário (e que nunca entrou em vigor), trazia, em seus arts. 163 a 167, um prazo de três meses para a realização do casamento após a lavratura do pacto, sob pena de ser o instrumento invalidado. A própria 2ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo reformulou o entendimento, e passou a decidir que não se aplica prazo para o pacto antenupcial5. O nosso entendimento é aquele que, por cautela, o registrador civil, em qualquer caso, deve verificar se a vontade do pacto é a mesma vontade das partes, isso é, em qualquer situação em que as pessoas apresentem o pacto em que já se tenha ultrapassado os noventa dias - fora do período de habilitação -, deve verificar se as cláusulas presentes são aquelas queridas pelas partes. Desse modo, há três entendimentos a respeito da caducidade do pacto antenupcial pela demora na celebração do casamento: a) a inexistência de prazo para a celebração do casamento; b) a aplicação analógica do prazo de 90 dias para sua celebração; c) a necessidade de verificação da higidez da manifestação de vontade e do escopo protetivo da família em cada caso concreto, sem limites temporais absolutos. Em nosso entendimento, em primeiro lugar, não há prazo determinado para o pacto antenupcial, ademais, as pessoas podem livremente celebrar quantos pactos quiserem, podendo apresentá-los na habilitação até o momento da celebração, caso se trate de restrição de regime de bens. Ainda, é possível revigorar o pacto antenupcial confeccionado antes de um casamento, desde que seja a vontade das partes, na medida em que a lei não estabeleceu nenhuma limitação, não existindo obrigação legal de confecção de um novo pacto não utilizado. Mostra-se inegável que o casamento celebrado após o decurso de grande lapso de tempo da celebração do pacto antenupcial tem a aptidão de desvirtuar os interesses apostos, em razão de mudanças fáticas e jurídicas. Porém, defendemos que a melhor análise deve ocorrer diante das mudanças em cada caso concreto, diante da interpretação teleológica de permanência da vontade e proteção da família. Assim, deve-se investigar se a vontade manifestada no pacto permanece hígida diante da situação fática e jurídica no momento da celebração do casamento, podendo ser presumida a alteração na vontade após decorrido longo período de tempo de sua lavratura, como em um casamento celebrado décadas depois. Observe-se que para haver caducidade, é necessário a existência de lei ou ato de vontade com expresso termo de incidência ao pacto. Seria perfeitamente cabível, na habilitação de casamento, a alteração de um pacto antenupcial para um conteúdo mais restritivo, no entanto, em caso de ampliação do conteúdo do pacto, tal mudança não seria possível, na medida em que alguém poderia apresentar uma causa suspensiva - muito embora no edital não conste -, com necessidade de uma nova habilitação express.  Sejam felizes! __________ 1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. (atual. Tânia da Silva Pereira). 17ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 5, p. 189. 3 LOTUFO, Maria Alice Zaratin. Curso avançado de direito civil. São Paulo: RT, 2000, p.100. 4 2ª VRP/SP. Processo nº 1020127-64.2022.8.26.0100. Juiz de Direito: Marcelo Benacchio. DJe de 16.03.2022 - SP. 5 Processo nº 1091877-29.2022.8.26.0100, juiz Marcelo Benacchio, j. 05.12.2022, Dj. 08.12.2022.
terça-feira, 8 de agosto de 2023

Avanço ou retrocesso: os escritos particulares

A Medida Provisória 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, aprovada com alterações pela lei 14.620, de 13 de julho de 2023, inaugurou mais uma rodada de modificações em diversos diplomas legais, dentre os quais: a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973). Analisar-se-á, neste espaço, as nuances do art. 221, inc. II da lei 6.015/1973 e a sua mutação redacional. O vocábulo "título", em uma primeira acepção, significa a causa de um direito, a sua razão de existir com o negócio jurídico base contido em seu substrato material. Em segunda acepção, porém, pode conter outro significado, como o próprio documento escrito, substrato do direito originado  de um negócio jurídico.1 Apesar de existirem outras acepções, estas duas são as que interessam ao artigo. Em âmbito registral imobiliário, é considerado título material a  causa para o registro de atos e negócios jurídicos constitutivos, modificativos, translativos e extintivos de direitos reais e outros com previsão expressa em lei. Isto é, consiste no instrumento no qual se exterioriza o direito real, ou o ato ou o negócio jurídico imobiliário. Em sentido formal, o título se confunde com documento, equiparando-se à segunda acepção. Logo, pode ser definido como o papel escrito ou o arquivo eletrônico que contém um ato com efeitos jurídicos. A sua função, então, é comprobatória da existência de atos   e negócios jurídicos com aptidão à produção de efeitos. Em relação a esta segunda categoria, os títulos aptos para ingresso no fólio  real estão elencados no rol do art. 221 da Lei dos Registros Públicos. Pelo objeto do presente artigo, examinar-se-á os instrumentos particulares (LRP, art. 221, II), cuja redação anterior à Medida Provisória 1.162/2023 era: "Somente são admitidos registro: (...) II - escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas". No sentido da redação do artigo, os instrumentos particulares eram hábeis para serem aceitos como válidos a ingressar no fólio real quando: i. autorizados por lei; ii. com o reconhecimento de firma na assinatura das partes e das testemunhas. Tratava-se, portanto, de exceção à regra da forma pública. Esta é a razão de ser  necessária a previsão em Lei. O Código Civil, de 2002, nada dispôs sobre a participação de testemunhas no ato ou negócio praticado, segundo o texto do art. 221 do novel  diploma.2 O Código de Processo Civil, de 2015, por sua vez, exige as testemunhas para a configuração de títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 784, III). A divergência legislativa quanto à obrigatoriedade da presença e assinatura de duas testemunhas no documento foi fonte de divergência jurisprudencial em São Paulo. Argumenta-se, de um lado, pela aplicação do princípio tempus regit actum para fins de dispensar as testemunhas do título, ante a regra do Código Civil de 2002. Assim, após a vigência do Código Civil, a participação de testemunhas era prescindível, considerando-se revogada tacitamente a redação da Lei dos Registros Públicos, conforme interpretação do disposto no art. 2º, § 2º, da LINDB.3  De outro lado, argumenta-se que o art. 221, inc. II e art. 169, inc. III, ambos da Lei 6.015/1973, são regras especiais e, por isso, em atenção ao critério da especialidade, não foram revogadas pelo codex civil no que tange à assinatura das duas testemunhas. Ressalte-se que o título emitido do Sistema de Financiamento Habitacional, e, em São Paulo, em caso das  cédulas de crédito rural, industrial, à exportação e comercial, inclusive a Cédula de Crédito Bancário, eram exceções ao reconhecimento de firma. Contudo, o cancelamento, por averbação da quitação do débito, exigia o reconhecimento da firma do credor ou seu representante, comprovando-se a autenticidade do  documento.4 Com a publicação da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, a redação do inciso II do art. 221 da Lei dos Registros Públicos foi alterada no seguinte sentido: "Somente são admitidos registro: (...) escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, dispensados as testemunhas e o reconhecimento de    firmas, quando se tratar de atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário, autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública". Em interpretação gramatical, manteve-se a sistemática anterior para o ingresso dos escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, porém, no caso de instituições financeiras que concedam crédito imobiliário, que tenham autorizada a celebração de instrumento com força de escritura  pública, o reconhecimento de firma e as testemunhas são dispensáveis. Deste modo, pelo critério cronológico e especial, prevalece o sentido da   Lei dos Registros Públicos sobre o Código Civil, ressalvadas às instituições autorizadas a emitir título com força pública. Por fim, com a conversão da Medida Provisória na lei 14.620 de 13 de julho de 2023, a redação do inciso II do art. 221 foi novamente alterado, estabelecendo o seguinte: "Somente são admitidos a registro: escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas". Deste modo, a regra é assinatura das partes e o reconhecimento de firma para que o instrumento particular seja admitido para registro, de forma que os registradores de imóveis deverão seguir estes requisitos para os títulos prenotados a partir de então. Como exceção ao reconhecimento de firma e assinatura das testemunhas, o §5º do art. 221, da LRP, incluído pela Lei nº 14.620/2023, prevê: "os escritos particulares a que se refere o inciso II do caput deste artigo, quando relativos    a atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, dispensam as testemunhas   e o reconhecimento de firma". Sendo assim, as instituições financeiras, contanto que atuem com crédito imobiliário,  e tenham autorização para firmar instrumentos particulares, dispensam as testemunhas e o reconhecimento de firma. O direito material é sufragado pela formalidade imposta para atos de registro em que as partes sejam desprovidas das qualidades supramencionadas. Porém, o ingresso de títulos formais deveria ser facilitado, na esteira da Lei de Liberdade Econômica e da Lei nº 14.382/2022, valorizando-se o direito material, que rege a necessidade de formalidades. Considera-se o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, que decidiu: "lei 13.726/2018 (Lei de Desburocratização) - Incidência aos Serviços de Registros de Imóveis - Os serviços de autenticação, reconhecimento de firma e outros praticados nas serventias brasileiras, por encerrar uma relação de natureza privada do cidadão com o cartório, não estão incluídos, para fins de dispensa, na lei 13.726/2018, muito menos com a possibilidade de serem praticados com isenção de emolumentos - Aplicação uniforme em todo o território nacional - Decisão em caráter normativo"5 Por todo o exposto, é possível observar que houve um retrocesso com relação ao que já havia sido, de alguma forma, solucionado pelas jurisprudências administrativas, persistindo a dissonância entre o Código Civil e a lei especial. Como lege ferenda, propõe-se a previsão redacional do art. 221, II da LRP, da seguinte maneira: "Somente são admitidos registro: II. escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes com as firmas reconhecidas", em prestígio ao Código Civil e aos direitos materiais. A forma está garantida pelo reconhecimento de firma ou assinatura eletrônica com certificado digital, atualmente, a depender se o título for físico ou eletrônico.  Sejam Felizes. __________ 1 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico. 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e  Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 2.116. 2 "Art. 221 do Código Civil de 2002: "O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público. Parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de caráter especial". 3 CSMSP, Apelação Cível nº 0022843-24.2015.8.26.0554, rel. Des. Manoel Pereira. Cf. Apel. nº 0022843-24.2015.8.26.0554, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 4-8-2016. Em outro julgado constou: "embora altamente recomendável, não há exigência - legal ou normativa - de que o instrumento particular esteja rubricado por aqueles que participaram do negócio jurídico." (CSMSP, Apel. Cív. nº 0026786-24.2013.8.26.0100, rel. Hamilton Elliot Akel, j. 18-3-2004). 4 A lei 13.986/2020 revogou o item 13 do inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos, portanto, atualmente, as cédulas de crédito rural não são hábeis a registro.  5 CNJ - Pedido de Providências n. 0002986-87.2019.2.00.0000 - Ministro Humberto Martins.
A Corregedoria Nacional de Justiça publicou, no dia 16 de março de 2023, o Provimento nº 141/2023, que facilitou a alteração de regime de bens na União Estável. A norma altera o Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ, para se adequar às determinações da lei 14.382, de 2022. Sucessivamente, foi publicado o Provimento nº 146/2023 do CN-CNJ, de 26 de junho de 2023, com o fim de aclarar os limites do instrumento do termo de dissolução da união estável e partilha ou alteração de regime de bens, emitido pelo oficial de registro civil das pessoas naturais, em relação à escritura pública declaratória de dissolução da união estável com partilha de bens, conforme o art. 108 do CC/2002. O referido provimento também evidenciou a necessidade do registro do título estrangeiro de união estável ou a sua dissolução no Registro de Títulos e Documentos, para produzirem efeitos perante terceiros, dentro do território nacional (art. 129, "6º", da LRP). O Código Civil de 2002, em seu art. 1.725, estabeleceu que na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. Logo, é possível afirmar que a entidade familiar na união estável, configurada pela convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, regulamenta as relações patrimoniais entre os companheiros de modo informal. Na ausência de convenção escrita, serão aplicadas as regras do regime de comunhão parcial de bens   do casamento. Portanto, para que se estabeleça um regramento diverso, o acordo entre os companheiros deve ser realizado pela forma escrita, bem como a sua alteração no curso da relação de fato, daí que o art. 9º-A do Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ permite a alteração do regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante o registrador ou por meio de procuração por instrumento público. Segundo o autor DE PLACIDO E SILVA, o regime de bens - ou matrimonial -, é o "conjunto de regras e princípios reguladores da situação jurídica dos bens dos consortes, durante a vigência da sociedade conjugal, e das relações de ordem econômica havidas entre eles e os terceiros, que, com eles, contratarem".1 Conforme analisado, o art. 1.725 do Código Civil esclarece que o regime da comunhão parcial de bens é aplicado para as relações patrimoniais entre os companheiros no que for cabível. Ressalva-se a existência de contrato escrito, o qual permite outras formas de regulamentação do aspecto econômico entre    os companheiros, ou entre eles e terceiros com quem contratarem. Cumpre ressaltar que, segundo a doutrina de GUSTAVO TEPEDINO, o uso do termo "regime de bens" na união estável é aplicado por "empréstimo", ou "analogia".2 O regime de bens está vinculado ao ato-condição solene, pressuposto para sua validade e eficácia: o casamento; que se justifica pela ampla publicidade perante terceiros, dada pelo registro no Livro Auxiliar do Registro de Imóveis, bem como a averbação, no Livro 2, de bens imóveis dos consortes (CC, arts. 1.653 e 1.657). Daí, o legislador ter aplicado o regime da comunhão parcial de bens às uniões estáveis, no que couber. Exemplo disso é a outorga conjugal, que gera a anulabilidade do negócio, nas hipóteses  de alienação ou oneração de bens imóveis, bem como, pleitear, como autor ou réu acerca destes bens e todas as situações que possam colocar em risco a estabilidade econômica da entidade familiar, salvo o regime da separação total de bens convencional (CC, arts. 1.647 c.c. 1.649). De outro lado, a necessidade de outorga convivencial não é oponível a terceiros, porque na união estável há preponderantemente uma informalidade no vínculo entre os conviventes, que não exige qualquer documento, caracterizando-se apenas pela convivência pública, contínua e duradoura, segundo entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça.3 Esta é a razão do art. 9º-A, §1º, do Provimento 37/2014 do CN-CNJ ter incluído a ressalva de que na averbação da alteração se consigne a advertência de "a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime." Para tanto, exige que ambos os companheiros requeiram a alteração das relações patrimoniais entre si diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, seja aquele em que está no assento ou qualquer outro. Mais uma vez, a Central de Informações do Registro Civil - CRC - é o mecanismo base para encaminhar o requerimento processado em oficio de pessoas naturais diverso daquele   em que assentada a união estável. Recebido o procedimento, caberá ao oficial de registro civil confrontar com o assento da união estável no Livro E, bem como qualificar o título, com fulcro na lei (LRP, art. 198, caput).4 A averbação da alteração patrimonial exige, além do requerimento conjunto, a existência do registro da união estável no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, em que os companheiros têm residência. Ademais, a apresentação de certidão do distribuidor cível e execução fiscal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; constituem requsitos para instrução do procedimento para a prática do ato registral.5 A certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos também é um dos documentos que instruem o pedido, de forma que se a certidão for positiva, a alteração do regime patrimonial dos conviventes deverá se processar pela via judicial.6 Sob ecos do recente artigo escrito nesta coluna7, o Provimento 37/2014 do CN-CNJ - com as alterações dada pelo Prov. 146/2023-, em seu art. 9º, § 3º, dispõe que se no requerimento de alteração de regime de bens houver proposta de partilha de bens - respeitada a obrigatoriedade de escritura pública nas hipóteses legais, como na do art. 108 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) -  e/ou quando as certidões do distribuidor cível e execução fiscal, dos tabelionatos de protestos, certidão da Justiça do Trabalho forem positivas, os companheiros deverão estar assistidos por advogado ou defensor público, assinando com este o pedido. Para instrução do procedimento de alteração de regime patrimonial, o oficial exigirá a apresentação de proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar, a fim de respeitar os limites do termo declaratório de dissolução da união estável.8 Não se tem clareza se o termo declaratório de alteração de regime patrimonial, com partilha, é hábil para ingresso no fólio real. Caso se entenda que sim, o oficial de registro de imóveis deverá verificar, antes de qualificar a partilha, se a forma ad solemnitatem foi respeitada, visto que está na essência de certos atos a escritura pública, o que ocorre com as hipóteses contidas no art. 108 do CC. Não cabe ao oficial de registro civil das pessoas naturais, no momento da qualificação do requerimento, com os documentos e dados contidos no procedimento registral, verificar incompatibilidades com art. 1.641, inc. II do CC. A Súmula 655 do Superior Tribunal de  Justiça, exige o exame no início do relacionamento entre os companheiros. Igualmente, não é permitido que se altere para outro regime, no caso de já seguirem o regime da separação obrigatória de bens, em decorrência de um deles ser pessoa idosa (maior de 70 anos). A averbação de alteração do regime de bens no registro da união estável informará o regime anterior, a data de averbação, o número do procedimento administrativo, o registro civil processante e, se houver, a realização da partilha.9 Os efeitos decorrentes do novo regime patrimonial serão gerados a partir da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese, em virtude dessa alteração. Contudo, observa-se que, se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros, ou outra hipótese agasalhada pela jurisdição.10 Assim, bens anteriormente alienados ou onerados não serão atingidos retroativamente pela alteração, tampouco às relações jurídicas, pois limita-se a reger o regime patrimonial, com base nos bens existentes, segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.11 Contudo, nada impede que os consortes efetivem a averbação de alteração do regime patrimonial, e, no dia seguinte alterem o regime novamente por instrumento particular. Não se pode falar em estabilidade dos efeitos contra terceiros do estado de fato entre duas pessoas que mantém uma relação contínua, pública e duradoura, para fins de constituírem uma entidade familiar (CC, art. 1.723, caput, c.c. 1.725). Inexistindo lei estadual específica sobre a cobrança de emolumentos do processamento do requerimento de alteração de regime patrimonial, o registrador civil deverá usar valor do procedimento de habilitação de casamento.12 O direito material é que concede o tom para o direito formal dos registros públicos, e não o  inverso, tal qual ocorre pelo princípio da instrumentalidade das formas dentro do direito processual civil (CPC, art. 198). A relação entre os companheiros não está vinculada a forma específica, pois, a finalidade das regras da união estável, previstas na Constituição Federal (art. 226, 3º) e no Código Civil (arts. 1.723 a 1.727), é a de proteger aqueles que optem por uma relação sem as formalidades e o regramento do casamento.  Sejam felizes. __________ 1 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1.792 2 TEPEDINO, Gustavo. Controvérsias sobre regime de bens no Código Civil. In: Revista dos Advogados da Associação dos Advogados de São Paulo, no 98, ano XVIII, julho de 2008, p 111. 3 Por exemplo, o REsp. nº .1.592.072/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe. 18/12/2017. 4 §§6º e 8º do art. 9-A do Provimento nº 37/2014, incluído pelo Provimento nº 141/2023. 5 Art. 9-B do Provimento nº 37/2014, incluído pelo Provimento nº 141/2023. 6 Art. 9º-A, §2º, do Provimento nº 37/2014, incluído pelo Provimento nº 141/2023 7 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K., A busca pela natureza jurídica do termo declaratório de união estável.  8 CPC, art. 733 c.c. art. 108, e Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art. 9º-A, § 7º 9 Prov. 37/2014 do CN-CNJ, com as alterações do Prov. 141/2023 do CN-CNJ, art. 9º-A, § 5º. 10 Prov. 37/2014 do CN-CNJ, com as alterações do Prov. 141/2023 do CN-CNJ, art. 9º-B, inc. V 11 STJ, REsp. nº 1.845.416/MS, rel. Min. Nancy Andrigh, j. 17.08.2021. 12 Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art. 9º-A, § 7º.