COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
O sistema registral é complexo, tendo o Brasil adotado o modelo do Título-Modo, tornando a atividade do registrador extremamente técnica, na medida em que precisa coordenar três princípios fundamentais, a saber: disponibilidade, continuidade e especialização que, entre tantos outros, são de extremo rigor formal. Ao não adotar o modelo da abstração e da separação, tão importantes no Sistema Germânico, mas, ao migrar para o princípio da Tradição consagrado no Sistema Alemão, o Brasil acabou adotando o pior dos dois mundos, abdicando do princípio do consenso e do sistema do Título, adotando parcialmente o Modo Germânico. Diante desse quadro, a dúvida Registral que já estava consagrada no Brasil, mesmo antes da migração de Modelo, por força da lei 1.237 de 24 de setembro de 1864 ganhou importância ímpar, mesmo diante do artigo 204 da LRP que confirma a jurisdição sempre preponderar diante da tutela administrativa. Algumas vezes, o título apresentado para registro não se encontra formalmente perfeito, sendo possível que padeça de vício ou irregularidade registral, ou, ainda, se refira a situação insuscetível de registro. Dessa forma, após a protocolização do título e a verificação relativa a outros títulos contraditórios ou excludentes, o oficial, ou escrevente autorizado, procederá a sua devolução, com a chamada nota de exigência, na qual constarão, de forma clara e objetiva, os motivos da recusa da prática do ato e os documentos que precisam ser apresentados para viabilizar o registro ou a averbação. Se o apresentante discordar dos motivos da recusa do registro ou entender ser impossível cumprir as exigências formuladas, poderá valer-se da prerrogativa do art. 198 da lei 6.015/1973, se o ato a ser praticado for de registro, suscitando procedimento de dúvida registral. A dúvida é um procedimento administrativo vinculado por meio do qual o oficial de registro, a pedido do interessado, submete a exigência apresentada, mas não satisfeita, à decisão judicial1. A partir desta definição, percebe-se que o termo "dúvida", empregado pelo legislador, é, para boa parte da doutrina, impróprio, isso porque a situação descrita não exprime uma dúvida propriamente dita, mas uma discordância do apresentante quanto à recusa do registro ou, ainda, uma impossibilidade de cumprimento destas exigências.2 No Tratado, adotamos a tese de que a palavra dúvida está corretamente empregada, na medida em que o registrador "duvida da legalidade do título", dicção da própria Lei de 1.864, o que significa que, apesar de não ser ignorante quanto as exigências formuladas, põe em cheque o título sob o ângulo da legalidade. Tanto isso é verdade que, muitas vezes, o juízo administrativo de primeiro ou segundo grau entende pela legalidade do título, não obstante dissenso do registrador e determina a registrabilidade. Logo, realmente sobrepairava uma dúvida sobre a legalidade. Dessa forma, a premissa da dúvida é a irresignação do apresentante em relação às exigências feitas. O conceito de "dúvida" tem, assim, um sentido substantivo ou material de recusa ou negação do oficial à prática do registro, possibilitando a requalificação do título por autoridade administrativa, hierarquicamente superior. À essa autoridade administrativa caberá declarar, por sentença, o acerto (em caso de procedência), ou o erro (em caso de improcedência) do registrado ou, ainda, a impossibilidade de cumprimento de exigência, o que corresponde a um juízo de controle de legalidade e validade. Observe-se que o procedimento de dúvida, em São Paulo, se restringe às hipóteses que envolvem o registro em sentido estrito, não alcançando situações em que o ato visado é de averbação, na medida em que nesse caso, entende-se que o procedimento cabível é o pedido de providências, que, em grau de recurso, é decidida pelo Corregedor Geral da Justiça e não pelo Conselho Superior da Magistratura (Colegiado com 7 Desembargadores), com atribuição para decidir definitivamente as questões de dúvida. Quanto à natureza do procedimento de dúvida, essa é estritamente administrativa, já que o Judiciário, atuando monocraticamente ou em órgão colegiado, exerce uma atividade atípica, ou anômala, de controle da Administração Pública, pois não envolve uma prestação jurisdicional, que é sua competência típica ou ordinária e é também, sempre prevalente. Dessa forma, ainda que exercida por magistrado, a função de julgar processos de dúvida não se confunde com a função jurisdicional, já que o processamento e os efeitos da dúvida são diferentes daqueles próprios do processo contencioso. Na dúvida, o Judiciário não exerce a função primacial de julgar conflitos de interesse, na acepção jurídica do termo, nem atua em função jurisdicional ordinária. Neste sentido, embora a dúvida permita um controle judicial sobre a denegação registral, não se sujeita à coisa julgada material, podendo ser revista em processo contencioso. Assim, é também possível a reiteração do processo de dúvida, em vista da superação dos motivos anteriormente reconhecidos ou da alteração da jurisprudência que motivou a decisão3. Conclui-se que a dúvida é um procedimento essencialmente administrativo, processado de forma especial, não correspondendo a um processo propriamente dito, mas a mero procedimento, caracterizado por um conjunto de formas sucessivas e regradas voltadas à decisão acerca da manutenção, ou não, do juízo qualificador negativo que motivou a denegação pelo oficial registrador. Cumpre destacar que a jurisdicionalização da dúvida seria nefasta para o sistema, na medida em que o prejudicado deixaria de ter, à sua disposição, uma série de títulos judiciais, como mandado de segurança, ações ordinárias, ações declaratórias e constitutivas, todos com efeito saneador do registro. Não é concebível no Modelo Brasileiro a autopoiese do Registro Público, ou seja, a auto sustentabilidade, tendo em vista ter o registro o papel fundamental de conservar e publicizar fatos, atos, negócios e decisões de outros ramos do Direito. Caso a dúvida pudesse fazer coisa julgada material, estar-se-ia diante de possibilidade de insegurança e preponderância indireta da esfera administrativa sobre a jurisdição, ainda considerando que o julgamento do recurso da dúvida estivesse, como em muitos estados está, afeto a órgãos de jurisdição4, impropriamente com atribuição administrativa. A natureza administrativa do procedimento da dúvida é incompatível com a ampla produção probatória, seja qual for a natureza da prova pretendida (testemunhal, pericial ou documental), na medida em que a dúvida não comporta exame dos aspectos substanciais do título apresentado; discute-se tão somente a possibilidade do seu registro, sem considerações a respeito do direito nele consubstanciado. Já na via jurisdicional, não só o título pode ser discutido em qualquer de seus aspectos, como o juízo tem o poder de declarar inconstitucional leis ou declarar ilegal atos administrativos, o que jamais poderá ocorrer em sede administrativa. Busca-se dirimir o dissenso entre o apresentante do título e o oficial estritamente quanto as questões - já existentes - relativas à registrabilidade, de modo que não cabe dilação probatória. Ressalte-se que apesar de o art. 201 da lei 6.015/1973 autorizar a realização de diligências na fase que antecede a sentença, estas são feitas em caráter restrito, com finalidade exclusivamente esclarecedora. A prova que instrui a dúvida registral é pré-constituída, correspondendo ao próprio título apresentado ao registrador e sua respectiva nova exigência. Caso fosse de outro modo, a autoridade judicial estaria qualificando um título diverso do apresentado e o saneamento demandaria tempo superior ao trintídio legal (art. 188), ocasionando potenciais prejuízos a concorrentes no direito posicional do protocolo5. No entanto, se não existir nenhum título contraditório prenotado e caso o interessado supra, no curso do procedimento, todos os requisitos para a prática do ato registrário, não parece razoável que a dúvida seja julgada procedente, podendo ser aproveitado o juízo qualificatório positivo e o mesmo número de protocolo para registro, muito embora, essa não seja a posição hodiernamente adotada.  Exigir, nesse caso, uma nova apresentação e qualificação, parece desprestígio ao princípio da efetividade dos atos da administração. Observe-se que tal hipótese demanda cautela, pois o cumprimento de exigências no curso da dúvida registral provoca, por via oblíqua, a prorrogação da prenotação e, eventualmente, pode atingir direitos de terceiros sobre o bem.6 Em arremate, conclui-se que, não obstante a dúvida possa ser revista pela via jurisdicional, e o fato do sistema registral não ser auto sustentável, em nada retira a extrema complexidade da atuação do registrador diante do emaranhado arcabouço jurídico que envolve uma série de anomias e antinomias jurídicas, decisões jurisdicionais complexas, contraditórias e vinculativas, além do arcabouço de decisões administrativas também vinculativas também exigir um preparo diuturno e aprofundado por parte desse importante operador do Direito. Referências Castanheira Sarmento Filho, Eduardo Sócrates, A Dúvida Registrária, in Rezende Campos Couto, Maria do Carmo - Rezende Dos Santos, Francisco José - Ribeiro De Souza, Eduardo Pacheco, Coleção Cadernos IRIB, vol. III, São Paulo, IRIB, 2012, p. 7. Ceneviva, Walter, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada (Lei nº 8.935/1994), 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999. Dip, Ricardo, Registros sobre Registros #67, in TV Registradores, 29-08-2017, disponível aqui [25-11-2021]. Kümpel, Vitor Frederico, Ferrari, Carla Modina, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. __________ 1 W. Ceneviva, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada (Lei nº 8.935/1994), 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 179. 2 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 3 E. S. C. Sarmento Filho, A Dúvida Registrária, in M. C. Rezende Campos Couto - F. J. Rezende Dos Santos - E. P. Ribeiro De Souza, Coleção Cadernos IRIB, vol. III, São Paulo, IRIB, 2012, p. 8. 4 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 5 R. Dip, Registros sobre Registros #67, in TV Registradores, 29-08-2017, disponível aqui [25-11-2021]. 6 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020.
A expressão "afetação" está ligada à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica, permitindo a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração econômica1. Ressalte-se que a afetação não retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém separado para que não haja a comunicação com o restante do patrimônio2. Dessa forma, o patrimônio de afetação funciona como um regime especial de propriedade, garantidora em favor de credores, que assegura ao beneficiário o direito de sequela e torna nula eventual alienação ou transferência total ou parcial do bem3. Pode-se dizer que o elemento característico fundamental do patrimônio de afetação é a sua incomunicabilidade, na medida em que constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional.4 5 A Cédula Imobiliária Rural e o patrimônio de afetação de propriedades rurais foram instituídos pela Medida Provisória 897, de 1º de outubro de 2019, convertida na lei 13.986, de 7 de abril de 2020, que provocou mudanças em relação à cédula de crédito e fomentou discussões sobre o instrumento jurídico que representa o crédito imobiliário, existindo a possibilidade de conferir o bem várias vezes em garantia de créditos diferentes. O Capítulo II (arts. 7º ao 16) da Lei 13.986/20 foi dedicado ao patrimônio de afetação, ficando estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação, inclusive vinculando-o à Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinadas nos arts. 17 ao 29, do Capítulo III, da Lei 13.986/20. Nos termos do art. 7º, parágrafo único da Lei 13.896/20, optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes, constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias por meio da emissão de Cédula de Produto Rural (CPR), de que trata a Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, ou em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras. Conforme mencionado, o patrimônio de afetação poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, de forma que os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos. Seguindo o disposto nos arts. 17 e 21 da Lei 13.986/20, a Cédula Imobiliária Rural é título executivo extrajudicial, conceituada como título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, que representa as seguintes situações: i) promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, e ii) obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio rural de afetação, e que seja garantia da operação de crédito acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito. Quanto aos efeitos da instituição do patrimônio de afetação, destacam-se os seguintes: i) o proprietário não poderá constituir sobre o patrimônio de afetação nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR ou CPR6; ii) o proprietário não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, parcelamento, ou qualquer outro ato translativo7; iii) o patrimônio de afetação vinculado à CIR ou CPR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial8; iv) não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela à qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural ou Cédula de Propriedade Rural9; v) não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural10, nem integrará a massa concursal11; vi) os atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural12. Importa destacar que o proprietário fica obrigado a promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio rural de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais, além de adimplir com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais, nos termos do art. 14, da Lei 13.986/20. A forma de constituição do patrimônio de afetação, desde a edição da Medida Provisória 897/19, gerou polêmica. Isso porque, de acordo com o art. 8º da MP, seria constituído "por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis", não esclarecendo o ato registral a ser praticado - se registro em sentido estrito ou averbação -. Além disso, o termo "inscrição" é uma afronta ao art. 168 da Lei 6.015/73, que pôs fim aos termos "inscrição" e "transcrição", as quais passaram a ser abrangidas pelo termo "registro". O indício trazido pela Medida Provisória de que a constituição do patrimônio de afetação seria por meio do registro em sentido estrito esteve presente no art. 10, ao dispor: "o oficial de registro de imóveis protocolará e autuará a solicitação de registro do patrimônio de afetação e os documentos vinculados [....]". O problema pareceu ser resolvido quando da conversão da Medida Provisória na Lei 13.986/20, que estabeleceu em seu art. 9º, de forma expressa, que o ato a ser praticado seria o registro em sentido estrito. Veja-se: "o patrimônio rural em afetação é constituído por solicitação do proprietário por meio de registro no cartório de registro de imóveis". Apesar da expressa e enfática expressão "registro", alguns doutrinadores entendem que o ato correto para a instituição do patrimônio de afetação não se trata de registro stricto sensu, pelos seguintes motivos: i) o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973) é taxativo e numerus clausus, e não foi ampliado pela Lei 13.986/2020; ii) a constituição do patrimônio de afetação não importa mutação júri-real plena, na medida em que o patrimônio não é transferido de um titular para outro, mas sim de um titular para um monte com destinação específica. No entanto, parece mais acertada a corrente que entende pela constituição do patrimônio de afetação por meio do registro em sentido estrito, na linha do disposto no art. 9º da Lei 13.986/20, tendo em vista que: i)  apesar de ser certo que o legislador deveria ter incluído o patrimônio de afetação no rol do art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973, esse argumento por si só não é suficiente para concluir que o patrimônio de afetação rural deve ser instituído por ato de averbação, já que, a regra de solução de antinomias de segundo grau faz prevalecer o critério cronológico sobre o critério da especialidade, de forma que a lei mais nova prevalece sobre a lei especial, isto é, o art. 9º da Lei nº 13.896/2020 prevalece sobre eventual ausência de previsão no inciso I do art. 167 da Lei nº 6.015/1973; ii) o legislador da Lei nº 13.896/2020 foi extremamente técnico ao definir a natureza dos atos registrais elencados na referida legislação, indicando expressamente quais deveriam ser realizados por ato de registro em sentido estrito e quais deveriam ocorrer por averbação; iii)  o patrimônio rural em afetação, na verdade, importa em uma mutação júri-real, na medida em que a afetação do imóvel gera uma segregação entre o patrimônio do titular e o afetado.13 Em melhor explicação, a mutação júri-real se justifica na medida em que o bem se separa do patrimônio do titular para ser afetado a uma destinação específica. Finda tal destinação, ele retorna ao patrimônio do titular anterior ou incorpora-se ao de outra pessoa. Por isso, filiamo-nos a corrente segundo a qual o ato para constituição do patrimônio de afetação rural é o registro stricto sensu.  _____________ 1 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 2 M. N. Chalhub, Da Incorporação cit. (nota 1 supra), p. 79. 3 M. A. Rocha, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária, in IRIB, s. d., disponível in http://www.irib.org.br/obras/o-regime-da-afetacao-patrimonial-naincorporacao-imobiliaria [12-11-2021] 4 M. N. Chalhub, Da Incorporação cit. (nota 1 supra), pp. 83-84 5 Importa diferenciar o conceito de patrimônio de afetação dado pela Lei nº 4.591/1964, que dispõe sobre a incorporação imobiliária e a Lei nº 13.986/2020. Nessa, a destinação é a prestação de garantias em operações de crédito junto a instituição financeira, servindo como uma garantia real, enquanto na incorporação imobiliária a finalidade é a proteção dos adquirentes das unidades autônomas. 6 Art. 10, §1º, da Lei nº 13.986/2020 7 Art. 10, §2º, da Lei nº 13.986/2020. 8 Art. 10, §3º, II, da Lei nº 13.986/2020 9 Art. 10, §3º, I, da Lei nº 13.986/2020. 10 Art. 10, §4º, I, da Lei nº 13.986/2020. 11 Art. 10, §4º, II, da Lei nº 13.986/2020 12 Art. 10, §5º, da Lei nº 13.986/2020 13 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo II, São Paulo. YK Editora, 2020, pp. 2756 ss. _____________ Chalhub, Melhim Namem, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003. Kümpel, Vitor Frederico, Ferrari, Carla Modina, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo II, São Paulo. YK Editora, 2020. Rocha, Mauro Antônio, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária, in IRIB, s. d., disponível in http://www.irib.org.br/obras/o-regime-da-afetacao-patrimonial-naincorporacao-imobiliaria [12-11-2021]
terça-feira, 26 de outubro de 2021

O paradoxo da lei 13.811/2019 e o registro civil

O que era uma situação usual no início do século XX, ou seja, o casamento de menores de 16 (dezesseis) anos, passou a ser repudiado pela maioria dos pensadores modernos, bem como, por boa parte da legislação, passando-se a entender, inclusive, que o referido matrimônio é um estímulo a prática de atos sexuais abusivos com a participação de menores de 16 (dezesseis) anos. Nessa linha de raciocínio, foi abolido do sistema de Direito Civil o suprimento de idade para fins de casamento (jurisdição voluntária), mantendo-se apenas o suprimento de consentimento para o maior de 16 (dezesseis) anos (art. 1.519 do Código Civil), com a injusta denegação dos representantes legais. O Código Civil abarca os aspectos da capacidade para o casamento nos arts. 1.517 a 1.520, fixando 16 (dezesseis) anos como idade núbil, ou seja, presumindo tanto aptidão psíquica quanto sexual a consolidar a conjunctio maris et foeminae tão necessária a ultimação matrimonial. Dessa forma, nos termos do art. 1.517, enquanto não atingida a maioridade civil, para que seja autorizado o casamento é necessário que a pessoa tenha: i) atingido a idade de dezesseis anos e ii) a autorização de ambos os pais ou de seus representantes legais. Em 12 de março de 2019, conforme acima mencionado, foi promulgada a lei 13.811, responsável por alterar o artigo 1.520 do Código Civil, regra que flexibilizava o casamento dos menores de 16 (dezesseis) anos. Antes da entrada em vigor da referida lei, era permitido o casamento de quem ainda não havia alcançado a idade núbil - 16 anos1-, nos seguintes casos: i) para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou ii) em caso de gravidez. Com a modificação da redação originária pela nova lei, foi proibido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, ou seja, 16 (dezesseis) anos de idade, independentemente de qualquer autorização ou condição. Ressalte-se que o casamento do menor de 16 (dezesseis) anos já era, por regra, proibido, apenas sendo autorizado nos dois casos apresentados. A doutrina civilista mais moderna, em comentários recentes, entendia, que das duas situações jurídicas mencionadas (evitar o cumprimento de pena criminal e gravidez), a primeira havia sido tacitamente revogada por força de modificação promovida no Código Penal Brasileiro2, não admitindo a extinção da punibilidade pelo casamento. A lei 11.106, de 28 de março de 2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal, não mais sendo permitida a extinção da punibilidade no crime de estupro presumido na hipótese de uma criança ou adolescente, com idade inferior a 14 (quatorze) anos, manter relação sexual com parceiro maior e se casar com ele3. Mesmo após o advento da lei em questão, sustentavam alguns autores que a primeira parte do art. 1.520, do Código Civil continuava em vigor4, na medida em que a persecução dos "crimes contra os costumes" se dava por meio de ação penal privada. Posteriormente, a lei 12.015, de 07 de agosto de 2009 introduziu o tipo penal de estupro de vulnerável - art. 217-A do Código Penal -, correspondendo a ação penal pública incondicionada, não tendo mais caráter de ação privada e, portanto, não poderia o casamento funcionar como forma de perdão tácito do crime.5-6 Nesse mesmo sentido, no ano de 2015, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que para a tipificação do crime de estupro de vulnerável basta que o agente tivesse conjunção carnal ou praticasse qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, independentemente de experiencia sexual anterior ou relacionamento amoroso entre agente e a referida vítima. A presunção de violência passava a ser considerada juris et de jure, tornando irrelevante o consentimento ou não da vítima para prática do ato sexual. Uma vez insubsistente a primeira hipótese autorizadora do casamento do(a) menor de 16 (dezesseis) anos de idade, remanescia a discussão do casamento em hipótese de gravidez. O sistema jurídico brasileiro sempre entendeu que o recôndito do casamento (família natural) é o melhor modelo para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente. A interpretação preponderante era que a plenitude do art. 227 da Constituição Federal no que toca ao cumprimento da gama de direitos estatuídos no dispositivo tinha na família matrimonial a sua mais plena consecução. Aliás, o primeiro ente obrigado ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente é a família e a família matrimonial sempre foi uma das bases da sociedade (art. 226 e §§ 1º, 2º da CF). Essa sempre foi a razão da gravidez autorizar o casamento dos pretensos pais biológicos independentemente do critério etário, a fim de garantir o melhor desenvolvimento possível para crianças, adolescentes e jovens. Porém, com a revogação do art. 1.520, não sendo mais permitido, em nenhuma hipótese, o casamento do(a) menor de 16 (dezesseis) anos, passa o sistema jurídico a entender que o casamento não é mais o melhor modelo para o primeiro desenvolvimento da criança. A doutrina entendia por um duplo interesse na regra impeditiva de anulação por motivo de idade no caso de gravidez, quais sejam: i) interesse familiar em que se não desfaça o matrimônio que frutificou com o advento da prole; ii) a invalidação traumatizaria os cônjuges e refletiria no filho, com todos os inconvenientes resultantes.7-8 Apesar de alterado o art. 1.520 do Código Civil pela lei 13.811/2019, o art. 1.550 - que trata da solução ou anulabilidade para o casamento daquele que não completou a idade mínima para se casar - não foi revogado, expressa ou tacitamente, de forma que a mera anulabilidade ainda continua em vigor, lembrando que na nulidade relativa e o interesse é privado e que, em caso de gravidez, de forma paradoxal, esta não pode operar. Nessa linha, também permanece em vigor o art. 1.551 do Código Civil, no qual não se anulará, por motivo de idade, o casamento que resultou gravidez e os arts. 1552 e 1.553 que abarcam, respectivamente: i) a convalidação do casamento do menor que não atingiu a idade núbil, caso este, depois de completá-la, confirme a sua intenção de se casar, e ii) regras específicas a respeito da ação anulatória. Na medida em que tais artigos continuam em vigor, se o oficial de registro civil se equivocar e casar pessoa grávida com 15 anos, tal casamento remanescerá válido e eficaz. A norma, na sua literalidade, apenas proíbe que o juiz autorize o casamento de menor de 16 anos em qualquer hipótese. Observe-se o paradoxo. O juiz não tem mais poder para suprir a idade e autorizar o casamento na hipótese de gravidez, mas o Oficial Registrador pode habilitar, ainda que cometa falta administrativa disciplinar, o casamento de menor de 16 (dezesseis) anos em hipótese de gravidez e uma vez celebrado o matrimonio não pode ser o mesmo suscetível de qualquer anulação. Questões remanescem a serem analisadas: (i) O que impede o juiz, no exercício da jurisdição, autorizar o casamento em caso de gravidez, se a hipótese é de direito privado (anulação) e o melhor interesse da criança ser o fanal que sempre tem que orientar a jurisdição? (ii) O que impede o Oficial de Registro Civil de remeter o caso de gravidez ao Juiz Corregedor Permanente e esse autorizar o matrimônio, lembrando que a gravidez convalesce a anulabilidade e que o interesse é nitidamente particular? (iii) que espécie de falta administrativa disciplinar seria aplicada a um registrador civil que simplesmente habilita um casamento de menor de 16 anos com notória gravidez ciente de que a situação não é nula nem anulável diante de dicção expressa do Código Civil? Diante de todas essas reflexões é possível concluir que com todos os problemas vividos na pós-modernidade o lar conjugal ainda é o melhor modelo para criação e desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens e que o comando do art. 227, caput, autoriza plenamente o alvará, bem com a celebração de casamento de menor de 16 (dezesseis) anos em caso de gravidez, sendo inócua a proibição do art. 1.520 nesta hipótese. __________ 1 Art. 1.517 do CC/2002. 2 Vide leis 11.106/2005 e 12.015/2009. 3 O Enunciado nº 329 da IV Jornada de Direito Civil, dispõe: "a permissão para casamento fora da idade núbil merece interpretação orientada pela dimensão substancial do princípio da igualdade jurídica, ética e moral entre o homem e a mulher, evitando-se, sem prejuízo do respeito à diferença, tratamento discriminatório". 4 F. Tartuce - J. F. Simão, Direito Civil: Direito de Família, vol. V, 8a ed., São Paulo, Método, 2013, pp. 41-44. 5 Conforme entende G.F. Barbosa Garcia, "em se tratando de crimes contra os costumes de ação penal privada, persiste a possibilidade de extinção da punibilidade pela renúncia do direito de queixa, ou pelo perdão do ofendido aceito (art. 107, V, do Código Penal). Como o casamento da vítima com o agente pode ser visto como renúncia tácita, ou perdão tácito (conforme exercido antes ou depois da propositura da ação penal, respectivamente), mesmo que a aplicabilidade desta parte inicial do art. 1.520 do Código Civil de 2002 tenha se reduzido, ainda persiste". 6 RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO  REPRESENTATIVO  DA  CONTROVÉRSIA.  ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ, Resp. 1480881/PI, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 26/08/2015, DJe 10/09/2015). 7 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 26. Ed., v. 5, ed. Forense, 2018, p. 142.   8 Conforme dispõe R.C. Arnaud Neto: "Historicamente, a justificativa para a previsão legal dessa possibilidade sempre foi a de que, havendo gravidez, naturalmente uma família se formaria com a chegada do novo membro e, dessa forma, não fazia sentido que a lei lutasse contra algo que já se consubstanciou no plano dos fatos." Dessa forma, buscava-se propiciar à criança uma convivência familiar com ambos os pais, estimulando a "paternidade responsável". (Lei que proíbe casamento de menores de 16 anos vale para união estável? 05 abr. 2019. Migalhas.
Sistema brasileiro  O sistema de transmissão da propriedade imobiliária que vigora no Brasil atualmente é o do título e modo, pelo qual a transferência dos imóveis se efetiva, em regra, com o registro do contrato realizado entre as partes na serventia extrajudicial de Registro de Imóveis. No entanto, até o início do século XX, vigorava no Brasil o sistema de transmissão do título, semelhante ao modelo português. Pelo sistema do título, a propriedade se transferia pelo próprio contrato, não sendo necessário o registro para constituí-la; o registro, na verdade, tinha outros objetivos, tais como o de dar oponibilidade erga omnes ao direito real, mas não o de efetivar sua transferência. O sistema do título e modo somente foi instituído no país pelo Código Civil de 1916, no art. 530, I, o qual passou a determinar, justamente, que a propriedade imobiliária seria adquirida pela "transcrição do título de transferência no registro do imóvel". Tal dispositivo equipara-se ao atual art. 1.245, caput, do Código Civil de 2002, o qual determina que a propriedade entre vivos se transfere "mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis". Ambos os dispositivos deixam clara a adoção do sistema de transmissão do título e modo para a propriedade imobiliária, ao determinar expressamente que a aquisição do bem depende do registro na serventia extrajudicial. O projeto foi proposto por C. Bevilaqua, que entendia ser o sistema do título inapropriado por sua "inconsequência", na medida em que se atribuía ao contrato o condão de transmitir a propriedade, mas não de gerar efeitos oponíveis a terceiros, e por ir de encontro com a característica do próprio direito real que seria, justamente, a oponibilidade erga omnes1. De certo modo, concorda-se com o argumento de que não há lógica em manter um sistema em que existe uma "propriedade relativa"2. Não há sentido em criar-se uma propriedade inter partes que vale somente entre o vendedor e o comprador, desvirtuando, de fato, a característica do direito real de oponibilidade erga omes. Essa divisão dos efeitos da propriedade pode gerar uma série de problemas e inseguranças desnecessárias, que seriam facilmente resolvidas com a adoção do princípio da tradição (propriedade só se transmite com o registro) ou, minimamente, com o estabelecimento de que seria apto a gerar tanto a oponibilidade inter partes quanto a erga omes. A adoção do princípio da tradição, que implica no "modo" na nomenclatura do sistema, verifica-se expressamente nos arts. 1.226, 1.227, 1.245 e 1.267 do Código Civil. A propriedade da coisa móvel não se transfere, em razão de transmissão inter vivos, antes da tradição; e da coisa imóvel, antes do registro. É necessário, portanto, o modo para que se efetive a transmissão da propriedade imobiliária. Diz-se, ainda, que o sistema é também de "título", porque, no direito brasileiro, o fundamento jurídico ou causa de mutação jurídico-real está no título, notadamente um contrato3, que será, justamente, o negócio levado a registro para que se efetive a transferência do direito real. É da relação entre o contrato e o registro, inclusive, que se extrai a causalidade do sistema, ou seja, o vínculo entre o direito obrigacional e a disposição da propriedade pelo registro. Não se encontram divergências doutrinárias quanto à adoção dos princípios da tradição e da causalidade no sistema de transmissão brasileiro. Existem controvérsias, contudo, em relação aos princípios da unidade e da separação. Uma corrente doutrinária insiste em afirmar que o Brasil adota o princípio da separação e que existe um negócio júri-real4, que divide a manifestação de vontade das partes em duas fases, uma para criar o vínculo obrigacional e outra para autorizar a disposição da propriedade5. No entanto, não há qualquer previsão legal no Ordenamento Jurídico do país que determine a cisão dos negócios e/ou exija um acordo de vontade específico para a transmissão da propriedade. O que deve ficar muito claro é que, mesmo que Clóvis Beviláqua tenha instituído no Brasil o princípio da tradição para equiparar o sistema brasileiro ao sistema germânico (como ele mesmo afirma em sua obra6), isso não significa que se tenha adotado o mesmo funcionamento contratual estrangeiro. A lei nacional não exige um negócio jurídico distinto destinado à transmissão da propriedade (negócio jurídico de disposição), como fazem os §§ 929 I, 873 I BGB. Pode-se, assim, extrair que a ideia central de Clóvis Beviláqua era assemelhar o modelo de transmissão da propriedade brasileiro ao modelo germânico justamente em relação à instituição do registro como requisito para efetivar a transferência do direito real, pondo fim à cisão entre propriedade inter partes e propriedade erga omnes e fazendo com que o Registro de Imóveis desse segurança a terceiros informando a real situação de um imóvel (publicidade). O instituto que melhor corrobora a adoção do princípio da unidade e a inexistência do negócio júri-real é o compromisso irretratável de compra e venda. Esse modelo contratual foi criado em 1937 para contornar uma crise no mercado imobiliário da época, que foi gerada, justamente, pela mudança do sistema registral brasileiro do título para o do título e modo, com a conservação do princípio da unidade7. Veja-se. Alguns dos efeitos do contrato de compromisso de compra e venda visavam, justamente, evitar essas situações de inadimplência por parte do vendedor, estipulando a irretratabilidade do contrato, a adjudicação compulsória após o pagamento integral e a possibilidade de registro do título para gerar um direito real de aquisição oponível a terceiros. Caso existisse o negócio júri-real no Brasil, com uma fase de constituição do vínculo obrigacional, e outra de autorização da disposição da propriedade, não seria necessário criar a figura do compromisso de compra e venda, na medida em que a escritura de compra e venda poderia ser constituída em duas fases, a primeira, inicial, estabelecendo a obrigação com o pagamento das parcelas e a segunda manifestando a vontade de transferência do bem somente quando o preço estivesse quitado. Não se está criticando, aqui, a ideia do negócio júri-real em si e o princípio da separação. Eles são inteligentes, na medida em que desatrelam a questão econômica do pagamento da questão jurídica da transmissão da propriedade. Deve ficar clara a ideia de que o Brasil adota em seu sistema de transmissão da propriedade o princípio da unidade, inexistindo no país o negócio júri-real, de forma que o negócio realizado entre as partes contém as disposições obrigacionais e já se embute a vontade da transferência da propriedade. A escritura pública de compra e venda brasileira, por si só, já tem efeito translativo e é apta a ingressar no Registro de Imóveis, e não há qualquer indicação legal de que seria necessário uma referência expressa à vontade de transmitir o bem. Depreende-se, portanto, que o sistema de transmissão da propriedade brasileira é o do título e modo, regido pelos princípios da tradição, causalidade e unidade. Assim, para que ocorra a transferência de um direito real, as partes deverão fazer um único negócio prévio, que já servirá como título para a efetivação da transmissão com o registro. Além de o Brasil ter um sistema registral, apresenta subsistemas cadastrais registrais que não dispensam o registro, tais como o rural, o de imóveis públicos, o torrens e o de aquisição de imóveis rurais por estrangeiros. A denominação "subsistema registral" se originou da existência de outras formas de assentamentos, realizados fora ou no próprio registro imobiliário, mas que não dispensam os atos praticados no ofício imobiliário, como é o caso do registro rural (INCRA) e a aquisição de imóvel rural por estrangeiro (no próprio registro de imóveis, porém, também em livro próprio). A ideia de "registro comum" pode ser compreendida de diversas formas, dependendo fundamentalmente do que se entende por "registro especial" ou, ainda, por "subsistema registral". A dicotomia mais evidente que geralmente se estabelece é entre o registro comum e o chamado Sistema Torrens, espécie facultativa e excepcional de registro imobiliário, reservada exclusivamente a imóveis rurais, conforme será demonstrado no subtópico próprio. Por esse viés, poder-se-ia entender como registro comum aquele adotado como regra da transmissão da propriedade imobiliária no direito brasileiro, com efeitos constitutivos conforme previsão expressa do art. 1.227 do Código Civil. No entanto, o registro poderá, ainda, ter eficácia meramente declaratória, não sendo o fator constituidor do direito real ou de sua transmissão nas hipóteses em que o próprio Código Civil prevê exceção à regra do art. 1.227. É o caso, por exemplo, da sucessão causa mortis (art. 1.784, do Código Civil) e da usucapião. Adotando uma lógica mais topográfica, pode-se entender como registro comum aquele disciplinado na lei 6015/1973, ao passo que são especiais os registros disciplinados na legislação esparsa. No entanto, é possível identificar regras e procedimentos registrais específicos no bojo da própria lei 6.015/1973. Assim, por exemplo, pode-se considerar um sistema de registro especial o registro de bens rurais, na medida em que o registro destes bens contempla todo um conjunto de regras específicas, formando um verdadeiro subsistema no âmbito da lei 6.015/19738. Seguindo essa linha, pode-se considerar também como um subsistema, o registro de bens imóveis públicos, porquanto estes bens também se submetem a regras específicas para seu ingresso no fólio registral - neste caso, dispostas em parte na legislação especial, bem como a um cadastro específico. Outra situação cujo regramento compõe um verdadeiro subsistema no universo registral imobiliário diz respeito não exatamente ao objeto, mas sim ao sujeito da aquisição. Trata-se, com efeito, da aquisição de imóvel rural por estrangeiro, cuja disciplina parte de uma lógica própria formando um regime jurídico especial. Percebe-se, portanto, que o caráter comum ou especial do registro pode ser avaliado em diferentes perspectivas, dando ensejo a classificações diversas. Há diversos subsistemas que podem ser identificados no sistema registral imobiliário, em função de suas especificidades jurídicas e operacionais, e da sua regulação por conjuntos de regras baseadas em pressupostos e princípios particulares. O desafio do sistema brasileiro do século XXI é garantir de forma efetiva a tutela do tráfego (dinâmica) e a veracidade registral (estática) e, para tal, precisa se firmar no seu sistema de título e modo, diminuindo situações jurídicas nas quais a propriedade está desatrelada do registro. Para tal desiderato, é imperiosa a revogação dos dispositivos que admitem usucapião extratabular (necessário aguardar-se o período moratório), tornando compulsória a regularização fundiária urbana e rural e exigindo o registro de alienações judiciais, de inventários e partilhas, entre outras medidas. Referências Beviláqua, Clóvis, Direito das Coisas, vol. I, Rio de Janeiro, Freitas de Bastos, 1941. Brandelli, Leonardo, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016. Kümpel, Vitor Frederico - Sóller, Natália, Lei do Distrato - Considerações históricas, in Migalhas, 02-04-2019, disponível aqui [21.01.2020]. Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. PIETREK, Marietta, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015.  Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, vol. XI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. __________ 1 C. Beviláqua, Direito das Coisas, vol. I, Rio de Janeiro, Freitas de Bastos, 1941, p. 145. 2 Termo proposto por F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 121. 3 M. Pietrek, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 43 e ss; F. E. S. Medina, Compra cit., pp. 128 e ss. 4 Como já explanado, não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata-se dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, comodato e depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123, nota 80. 5 Nesse sentido é o posicionamento de L. Brandelli, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 58 e de F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. XI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 418. 6 C. Beviláqua, Direito cit., vol. I, p. 147. 7 Cf. V. F. Kümpel - N. Sóller, Lei do Distrato - Considerações históricas, in Migalhas, 02-04-2019, disponível aqui [21.01.2020]. 8 De fato, conforme observar-se-á no subtópico seguinte, o Registro de Imóveis Rurais contempla não apenas regras registrais específicas, que influem inclusive na forma de identificação destes imóveis, como também abrange um sistema cadastral próprio.
Sistema alemão  A Alemanha adota, em seu modelo de transmissão da propriedade, três princípios: o da separação (Trennungsprinzip), o da abstração (Abstraktionsprinzip), e o da tradição ou inscrição (Traditions- oder Eintragungsprinzip).1 A separação nada tem a ver com a exigência de um ato real para a transmissão, isto é, com a tradição ou com o registro. A separação do Trennungsprinzip se dá, na verdade, entre os negócios jurídicos de obrigação (Verpflichtungsgeschäft) e de disposição (Verfügungsgeschäft)2. Significa, portanto, que haverá manifestações de vontades distintas, uma direcionada à criação da relação jurídica obrigacional, e a outra à mutação jurídico-real propriamente dita. É bem possível, assim, que a separação seja combinada em determinados ordenamentos jurídicos com o princípio do consenso - e não apenas com o da tradição, caso em que o mero negócio jurídico efetivará a transmissão da propriedade independentemente de ato real. Esse negócio jurídico, no entanto, não será o obrigacional - como a compra e venda, por exemplo -, mas o de disposição, que pode ser simultânea ou posteriormente celebrado pelas partes3. Não é incomum, mesmo na literatura alemã, o tratamento dos três princípios (separação, abstração e tradição) de maneira imprecisa, seja pela indistinção feita, por alguns, entre separação e abstração; seja pela confusão entre separação e tradição.4 Dessa maneira, é necessário que seja estabelecida a diferença entre eles. Na Alemanha, em decorrência da adoção expressa da separação, há uma distinção entre o negócio próprio do direito das obrigações e aquele do direito das coisas. Ademais, além do negócio de disposição, exige-se para a transmissão da propriedade um ato real - tradição para bens móveis, § 929 Abs. 1 BGB; e inscrição para bens imóveis (§§ 873 Abs. 1, 925 Abs. 1 BGB); daí porque falar-se em um terceiro princípio, o da tradição ou do registro.5 A ideia geral do sistema fica clara no seguinte exemplo prático: C se dirige à padaria de V para comprar um suco de laranja pelo valor de R$ 5,00; entrega a quantia em dinheiro e recebe a respectiva mercadoria. Nesse caso, são três os negócios jurídicos celebrados entre C e V: um obrigacional (contrato de compra e venda - § 433 BGB), dois de disposição (Einigung sobre a transmissão da propriedade dos bens - § 929 Abs. 1 BGB; e Einigung sobre a transmissão da propriedade do dinheiro - § 929 Abs. 1 BGB), além de dois atos reais (tradição dos bens e tradição do dinheiro). O negócio obrigacional pode ser definido como aquele por meio do qual uma pessoa (devedor) se obriga perante outra (credor) à realização de uma prestação (ação ou omissão). Diz-se, assim, que sua função primária é a criação de um dever de prestar ("Begründung einer Leistungspflicht") e, portanto, de uma relação obrigacional (Schuldverhältnis) entre credor e devedor.6 O credor tem, nos termos do § 241 Abs. 1 BGB - dispositivo que trata das obrigações decorrentes da relação obrigacional -, direito de exigir do devedor determinada prestação, inclusive a de se abster de determinada conduta (§ 241 Abs. 1 S. 2 BGB), em virtude da relação oriunda do negócio jurídico obrigacional celebrado entre as partes. O adimplemento, por sua vez, a depender do conteúdo do negócio obrigacional, poderá ser o próprio negócio de disposição combinado com o ato real - nas hipóteses dos denominados negócios de alienação (Veräußerungsgeschäfte7), como da compra e venda, da permuta e da doação, por exemplo, em que há obrigação de se transferir a propriedade de uma coisa8 - ou determinado comportamento de fato, se o negócio obrigacional é uma prestação de serviço. O negócio obrigacional constitui, além disso, a causa jurídica para que as partes possam manter a prestação já efetivada ("Rechtsgrund für das Behaltendürfen der Leistung"9). Aqui é preciso cuidado para se evitar confusões: grosso modo, muito embora a transmissão da propriedade, em razão do princípio da abstração, independa da validade do negócio obrigacional - em outras palavras, a nulidade ou anulação da compra e venda, por exemplo, em nada afeta a mutação jurídico-real -, se o negócio obrigacional é nulo ou anulado, há pretensão das partes à retransmissão da coisa com base no direito do enriquecimento sem causa (§ 812 BGB).10 Daí a importância desse instituto no direito alemão. A abstração não significa, assim, que alterações jurídico-reais realizadas sem causa jurídica devam ser toleradas.11 Tome-se a compra e venda como exemplo: se apenas o negócio obrigacional é nulo, o vendedor não tem direito à reivindicatória, pois a transmissão da propriedade ao comprador é válida (princípio da abstração). No entanto, poderá exigir que a propriedade do bem lhe seja retransmitida pelo comprador (Leistungskondiktion12), com base no instituto do enriquecimento sem causa.13 O negócio jurídico de disposição é previsto expressamente no direito alemão nos §§ 873 I e 929 I BGB. Tais dispositivos têm aplicação apenas aos casos de constituição, transmissão e extinção de direitos sobre uma coisa em razão de negócio jurídico, estando, portanto, fora de seu alcance aquela decorrentes da lei, como a transmissão causa mortis e o regime da comunhão universal no direito de família, por exemplo.14 Para a transmissão da propriedade sobre bens imóveis, dispõe o § 873 I BGB que, além do registro, será necessário o acordo sobre a alteração jurídico-real entre o titular do direito real e a outra parte: "(...) ist die Einigung des Berechtigten und des anderen Teils über den Eintritt der Rechtsänderung (...) erforderlich". No mesmo sentido, estabelece o § 929 I BGB, em relação aos bens móveis, as partes deverão estar de acordo que a propriedade seja transferida com a entrega: "(...) und beide [ambas as partes] darüber einig sind, dass das Eigentum übergehen soll". A exigência de um acordo de vontades diferente daquele que fundamentou a criação da relação obrigacional é, portanto, expressa no ordenamento jurídico alemão. A regra difere, assim, daquela contida nos arts. 1.226, 1.227, 1.24515 e 1.26716 do Código Civil brasileiro, que exigem apenas o ato real para a transmissão, sendo o título o próprio negócio jurídico obrigacional. O termo Einigung, no contexto dos §§ 873 Abs. 1, 929 Abs. 1 BGB, significa, portanto, o acordo da alteração jurídico-real sobre o bem (móvel ou imóvel).17 Quando a transmissão é, especificamente, do direito de propriedade sobre um bem imóvel, o negócio de disposição recebe o nome de Auflassung (§ 925 Abs.1 BGB), com especificidades relativas à sua forma (§ 925 Abs. 1 BGB), à impossibilidade de ter seus efeitos condicionados ou colocados a termo (§ 925 Abs. 2 BGB), bem como aos requisitos para registro (§ 20 GBO). Conforme estabeleceu o legislador nos Motivos do BGB, o escopo do negócio jurídico de disposição não é a criação de uma relação jurídico-obrigacional, mas a constituição de um direito real sobre um coisa ou, no caso de direito já constituído, sua respectiva alteração, oneração ou transmissão.18 O negócio jurídico de disposição, por esta razão, pode ser definido como o acordo de vontades direcionado à constituição, modificação, oneração, transmissão ou extinção de um direito real sobre uma coisa. Seu objeto não é a prestação em si (dar, fazer ou não fazer), mas o direito real sobre o qual a disposição latu sensu opera.19 O negócio jurídico de disposição, via de regra, não tem forma predeterminada em lei, mesmo no caso de constituição de direitos reais sobre bens imóveis. A utilização de certificação notarial, no entanto, tem importantes consequências para vinculação das partes à declaração de vontade de disposição.20 Cabe ressaltar, no entanto, que apenas a declaração da Einigung (ou Auflassung) não é suficiente para a constituição ou alteração de direito real sobre bem imóvel. Vale lembrar que a Alemanha, além dos princípios da separação e da abstração, também adota o princípio da tradição ou do registro.21 Logo, a alteração jurídico-real só opera efeitos com a combinação de negócio jurídico de disposição e ato real: tradição para bens móveis (§ 929 Abs. 1 BGB) e registro para bens imóveis (§ 873 Abs. 1 BGB). Se o objeto do negócio real, no entanto, for a transferência da propriedade de bem imóvel - e não sua mera gravação como direito real de garantia ou direito real sobre coisa alheia - o acordo de vontade recebe o nome de Auflassung. Assim, estabelece o § 925 I BGB que: "O acordo de vontade entre alienante e adquirente, conforme estabelece o § 873, necessário para a transmissão de propriedade de bem imóvel (Auflassung), precisa ser declarado na presença simultânea das duas partes, perante a autoridade competente. Todo notário será competente para recebimento da Auflassung, sem prejuízo da competência de outras autoridades. A Auflassung também poderá ser declarada em um acordo judicial ou em plano de insolvência aprovado". Bibliografia  BAUR, Fritz - BAUR, Jürgen F. - STÜRNER, Rolf, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009.  HABERMEIER, Das Trennungsdenken - Ein Beitrag zur europäischen Privatrechtstheorie, AcP 195 (1995). Jauernig, Othmar, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, JuS 1994, p. 721; J. Petersen, Das Abstraktionsprinzip, Jura 2004. JOOST, Detlev, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb - U. Noack - H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln-Berlin-Bonn-München, Carl Heymanns Verlag, 1998.  LARENZ, Karl, Lehrbuch des Schuldrechts - Zweiter Band - Besonderer Teil, 1. Halbband, 13ª ed., München, Beck, 1986. MEDINA, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich, vol. III: Sachenrecht, 2a ed., Berlin/Leipzig, J. Guttentag, 1896.  Münchner Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 8, 8ª ed., München, Beck, 2020. PIETREK, Marietta, Konsens über Tradition: Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015. SOERGEL, Th. (fundador), Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 14, 13ª ed., Stuttgart, W. Kohlhammer, 2002.  VON SAVIGNY, Friedrich Carl, System des heutigen Römischen Rechts, vol. III, Berlin, Veit, 1840. WANDT, Manfred, Gesetzliche Schuldverhältnisse: Deliktsrecht, Schadensrecht, Bereicherungsrecht, GoA, 9ª ed., München, Franz Vahlen, 2019. WOLF, Manfred; e NEUNER, Jörg, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10ª ed., München, Beck, 2012. __________ 1 D. Joost, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb - U. Noack - H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln-Berlin-Bonn-München, Carl Heymanns Verlag, 1998, p. 1163. 2 O. Jauernig, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, JuS 1994, p. 721; J. Petersen, Das Abstraktionsprinzip, Jura 2004, p. 99, sobre a distinção entre separação e abstração. Também D. Joost, Trennungsprinzip cit., pp. 1163-1164, aponta para a distinção entre a "transmissão" e o "contrato causal", como ato jurídico próprio. Quanto ao negócio de disposição adota a nomenclatura "contrato real" ("dinglicher Vertrag"), que remonta à doutrina de Savigny (cf. F. C. von Savigny, System des heutigen Römischen Rechts, vol. III, Berlin, Veit, 1840, p. 313). 3 Veja, dentre as várias possíveis combinações possíveis, a descrita por M. Pietrek, Konsens über Tradition: Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 44-45. Também sobre o tema: F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, pp. 113 e seguintes. 4 S. Habermeier, Das Trennungsdenken - Ein Beitrag zur europäischen Privatrechtstheorie, AcP 195 (1995), p. 283, sobretudo referências na nota de rodapé n. 1. Também D. Joost, Trennungsprinzip cit., p. 1163, com referências na nota de rodapé n. 14. 5 K. Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts - Zweiter Band - Besonderer Teil, 1. Halbband, 13ª ed., München, Beck, 1986, p. 10, tratando do contrato de compra e venda.  6 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10ª ed., München, Beck, 2012, p. 325. 7 K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 212, ao diferenciar os contratos de alienação (Veräußerungsverträge) dos de transferência de um bem para utilização (Verträge über Gebrauchsüberlassung), como a locação. Os contratos de alienação são aqueles direcionados à transmissão definitiva de uma coisa do patrimônio de uma pessoa ao de outra, isto é, alteração da alocação de bens ("Wechsel in der Güterzuordnung"). 8 Cf. §§ 433 I; 489 c.c. 433 I; 516 BGB. 9 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil cit., p. 326. 10 M. Wandt, Gesetzliche Schuldverhältnisse: Deliktsrecht, Schadensrecht, Bereicherungsrecht, GoA, 9ª ed., München, Franz Vahlen, 2019, p. 123. Também: K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 21. 11 F. Baur - J. F. Baur - R. Stürner, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009, p. 57. Cf. K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 21. 12 Para breve distinção entre Leistungskondiktion e Nichtleistungskondiktion, cf. por todos: M. Wandt, Gesetzliche cit., pp. 120-122. 13 F. Baur - J. F. Baur - R. Stürner, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009, p. 57. 14 R. Stürner, in T. Soergel (fundador), Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 14, 13ª ed., Stuttgart, W. Kohlhammer, 2002, p. 105. 15 Como apontou-se em ponto próprio, o registro é do negócio translativo (negócio obrigacional) e não de um acordo próprio do direito das coisas, como ocorre na Alemanha; lá o registro é da Auflassung (acordo para a transmissão de bens imóveis, conforme § 925 Abs. 1 BGB). Sobre a questão específica do princípio do consenso formal (§ 19 GBO) e material (§ 20 GBO). 16 Como já se discutiu anteriormente, a expressão "pelos negocios jurídicos", contida no art. 1.267 caput CC, não faz referência à existência de um negócio jurídico de disposição no direito brasileiro. O plural está direcionado a abranger todos os negócios jurídicos obrigacionais que visam à transmissão da propriedade de bens móveis (e.g. compra e venda, doação, permuta, etc.). 17 J. Kohler, in Münchner Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 8, 8ª ed., München, Beck, 2020, p. 114. 18 Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich, vol. III: Sachenrecht, 2a ed., Berlin/Leipzig, J. Guttentag, 1896, p. 8. 19 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil cit., p. 326. 20 R. Stürner, in T. Soergel (fundador), Kommentar cit., p. 110. 21 Para crítica à imprecisão conceitual na Alemanha: S. Habermeier, Das Trennungsdenken cit., p. 283.
Sistema inglês  Inicialmente, o sistema de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis no direito inglês fundava-se na denominada livery of seisin, isto é, a tradição simbólica (similar à traditio simbolica do direito romano) da terra, consistente na desocupação do imóvel e na entrega de algum objeto - tais como um graveto, a trava de uma porteira, um anel, uma cruz ou uma faca - ligado ao terreno. Com o passar do tempo, o direito inglês passou a reconhecer, tal como fizera o direito romano, a transferência de direitos reais sobre bens imóveis mediante a exclusiva entrega de documentos (livery at law)1. O primeiro sistema de arquivo de títulos foi implantado nos antigos condados de Yorkshire2 e Middlesex3, na Inglaterra, em 1703 e 1708, respectivamente. Até 1976 - ano em que o dever de arquivar o título nesses arquivos foi extinto -, a lei estabelecia o requisito da inscrição do título, sob pena de nulidade do negócio jurídico imobiliário e da presunção de cometimento de fraude. A doutrina inglesa considera que esse sistema, apesar de ter sido revogado, constituiu um mecanismo intermediário entre o modelo privado e o modelo estatal de transferência de títulos imobiliários4. O registro imobiliário inglês - que de per si já implica uma significativa alteração dos modos tradicionais de transmissão imobiliária inglesa5 - começou a se estruturar em âmbito nacional com a promulgação da Lei de Registro Imobiliário de 1862 (Land Registry Act 1862)6. O sistema continuou a se desenvolver, a partir de 1925, com base em três modalidades de registro de negócios translativos sobre bens imóveis: o Registro Central de Ônus Imobiliários (Central Land Charges Register), o Registro de Títulos (Registration of Titles) e o Registro Local de Ônus Imobiliários (Local Land Charges Register)7. Esses constituem os primeiros esforços destinados a promover o registro oficial dos negócios jurídicos referentes a bens imóveis. O sistema de registro de instrumentos foi substancialmente reformado com a promulgação, em 16 de fevereiro de 2002, de uma nova Lei de Registro Imobiliário (Land Registration Act). Trata-se da implantação de um novo sistema registral inspirado nos princípios que regem o sistema Torrens8 de registro imobiliário9, em muito facilitada pelo pressuposto que atribui à Coroa a titularidade originária de todos os bens imóveis em território inglês10. Devido a essa nova iniciativa registral, os direitos reais imobiliários (estates) hoje se dividem em registrados (registered) e não registrados (unregistered), a depender de o respectivo imóvel já estar matriculado, ou não, no registro imobiliário11. Na atualidade, é obrigatória a abertura de matrícula no momento da transmissão ou constituição do direito real de propriedade por tempo indeterminado (freehold), na hipótese de locação enfitêutica por prazo superior a sete anos (leasehold), bem como no momento da constituição de ônus real hipotecário (mortgage)12, entre outros. Qualquer limitação ao poder de disposição ou fruição do titular deve, para produzir efeitos perante terceiros, ser anotada na matrícula por meio de um sistema de notificações (notices) e restrições (restrictions)13. Percebe-se que o sistema registral imobiliário inglês hoje em vigor não adota a imutabilidade do título, nem lhe confere inatacabilidade absoluta, na medida em que o registro pode ser alterado diante de certas situações excepcionais taxativamente previstas em lei, mesmo sem o consentimento do titular. Trata-se de um sistema constitutivo em que a dita "inatacabilidade qualificada" (qualified indefeasibility) se consubstancia em uma forte presunção de titularidade em benefício da pessoa indicada como tal no registro. A Lei de Direito Imobiliário de 1989 simplificou algumas das formalidades que o direito costumeiro exigia (tais como a exigência de selar a escritura14) e aboliu certas restrições que podiam ser impostas pela vontade das partes (tais como o material em que o documento podia ser lavrado15). Percebe-se que o direito imobiliário inglês, adota, especificamente16 no que diz respeito à aquisição derivada de direitos reais sobre bens imóveis17, o princípio da tradição, na medida em que a simples conclusão de um contrato não transfere a propriedade ou qualquer direito real sobre o bem imóvel. É necessário praticar um ato de disposição que equivale, para todos os efeitos, à tradição do imóvel. Sem esse ato formal de alienação não há transferência válida, muito embora o contrato produza efeitos que extrapolam a esfera obrigacional. Tradicionalmente, o direito inglês concebe a transferência dos direitos reais sobre bens imóveis como um complexo de atos concatenados dirigidos à aquisição de algum direito imobiliário oponível a terceiros. Esse conjunto de atos, em regra, se desenvolve em três fases bem definidas: (i) negociações preliminares e investigações acerca da qualidade do título, das condições pessoais do alienante e do efetivo estado do imóvel, (ii) conclusão do contrato imobiliário, e (iii) disposição do direito real18 e registro. É nítido que o direito inglês adota o princípio da separação, na medida em que há a necessidade de emitir duas manifestações sucessivas da vontade para que a propriedade se transfira do alienante ao adquirente. Embora a outorga da escritura (deed) não constitua propriamente um negócio jurídico, e sim um simples ato formal, a verdade é que o alienante deve manifestar a sua vontade de forma autônoma e específica no sentido de alienar o bem em favor do adquirente. Não há, para todos os efeitos, transmissão de direitos reais imobiliários pela mera conclusão do contrato. É notoriamente árduo classificar o sistema de aquisição imobiliária derivada inglesa com base no critério causalidade/abstração, muito provavelmente porque o direito inglês, diferentemente do direito continental, não se formou a partir da análise e discussão das fontes romanas19, e sim com base no acúmulo de decisões judiciais emanadas dos tribunais (case law)20. É perceptível que o direito inglês não desvincula o ato de disposição dos motivos que lhe deram origem. Nesse sentido, pode-se dizer que o direito imobiliário inglês tradicional tem um forte viés causal. Com efeito, a máxima nemo dat quod non habet, de fundamental importância no direito imobiliário inglês, reforça a natureza causal das alienações referentes a bens imóveis. A entrada em vigor da Lei de Registro de Imóveis de 2002, entretanto, significou uma aproximação com o princípio da abstração, na medida em que há situações em que a regra nemo dat quod non habet é, de fato, excepcionada. É o que ocorre com as alienações feitas com base em um título já registrado, desde que todos os requisitos registrais tenham sido devidamente atendidos21. Assim, o adquirente, em regra, se torna titular do direito real (estate) objeto da alienação22, mesmo que o alienante não seja o verdadeiro titular do direito real em questão23. O direito registral inglês não adota ostensivamente os princípios mais comuns dos sistemas registrais de origem civilista. Seu fundamento teórico remonta, de modo geral, ao sistema Torrens de registro imobiliário. Nesse contexto, são três os princípios que regem o registro inglês na atualidade24: (i) princípio da fidelidade do registro: a matrícula imobiliária deve refletir de forma precisa, completa e incontroversa todos os fatos relevantes para determinar o conteúdo do direito real imobiliário registrado; (ii) princípio da concentração de direitos na matrícula: os direitos reais imobiliários não registrados (ou pelo menos anotados) na matrícula não produzem, em princípio, efeitos perante terceiros, de tal forma que o adquirente de um direito real sobre um imóvel matriculado possa ter a certeza de que o seu direito prevalecerá sobre qualquer outro que não esteja registrado (ou anotado). (iii) Princípio da garantia indenizatória: o Estado atua como garante da exatidão das informações constantes na matrícula do imóvel, de tal forma que qualquer prejuízo provocado por um erro cometido pelo registrador, ou mesmo pela retificação de algum erro verificado na matrícula do imóvel, deve ser indenizado pelo próprio Estado25. Hoje, a Lei de Registro Imobiliário de 2002 prevê expressamente as hipóteses de indenização por erro ou retificação do registrador26. Referências Álvarez Caperochipi, Jose Antonio, Derecho Inmobiliario Registral, Pamplona, [s.e.], 2010 Esmaeili, Hossein - Grigg, Brendan (eds.), The Boundaries of Australian Property Law, Cambridge, Cambridge University, 2016 Gray, Kevin -  Gray, Susan Francis, Elements of Land Law, 5ª ed., Oxford, Oxford University, 2009 Land Registration Act 2002 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989. Manzano Solano, Antonio. Los Sistemas Registrales Inmobiliarios de Inglaterra y Estados Unidos, in Derecho y Opinión, 1 (1992) MCFARLANE, Ben - Nicholas HOPKINS - Sarah NIELD, Land Law, Oxford, University Press, 2017. MEGARRY, Robert - WADE, William, The Law of Real Property, 7ª ed., London, Sweet & Maxwell, 2008. OLCESE, Tomás, Formação Histórica da Real Property Law Inglesa, São Paulo, YK, 2016. Operative in the British Colonies, London, Cassel/Petter/Galpin & Co., 1882. RUOFF, Theodore Burton Fox, An Englishman Looks at the Torrens System - Being some provocative essays on the operation of the system after one hundred years, Sydney, The Lawbook of Australia, 1957. TORRENS, Robert Richard, An Essay on the Transfer of Land by Registration under the Duplicate Method VAN ERP, Sjef, Comparative Property Law, in REIMANN, Mathias - ZIMMERMANN, Reinhard (coords.), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, University Press, 2006. VAN VLIET, Lars Peter Wunibald, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000. __________ 1 Acerca dessas afirmações, cf. T. Olcese, Formação Histórica da Real Property Law Inglesa, São Paulo, YK, 2016. p. 66, nt. 180. 2 Cf. Stat. 2 & 3 Anne (1703), c. 4: "...a memorial of all deeds and conveyances which...shall be made and executed...may at the election of the parties concerned be registered in such a manner as is herein directed and...every deed or conveyance that shall at any time after any memorial is so registered be made and executed...shall be adjud;00  beged fraudulent and void against any subsequente purchaser or mortgagee for valuable consideration unless such memorial thereof shall be registered as by this Act..." 3 Cf. Stat. 7 Anne (1708), c. 20: "...every such deed or conveyance...shall be adjudged fraudulent and void against any subsequent purchasor or mortgagee for valuable consideration unless...registered...before the registering of the...deed or conveyance under which such subsequent purchasor or mortgagee shall claim.". 4 K. Gray - S. F. Gray, Elements of Land Law, 5ª ed., Oxford, Oxford University, 2009, p. 187. 5 R. Megarry - W. Wade, The Law of Real Property, 7ª ed., London, Sweet & Maxwell, 2008, p. 146. 6 Cf. Stat. 25 & 26 Vict. (1862), c. 53. 7 A. Manzano Solano, Los Sistemas Registrales Inmobiliarios de Inglaterra y Estados Unidos, in Derecho y Opinión, 1 (1992), p. 153. 8 O denominado |"sistema Torrens" é um sistema de registro constitutivo de título idealizado por Sir Robert Richard Torrens, cidadão irlandês que emigrou para a Austrália em 1840 e exerceu neste país vários cargos administrativos e políticos. O principal deles foi o de fiscal da alfândega, por meio do qual se familiarizou com as normas do comércio marítimo. Com base no seu conhecimento do registro de navios, arquitetou um sistema de registro imobiliário constitutivo pelo qual o título de propriedade emanava diretamente da Coroa inglesa e substituía toda a cadeia de títulos anteriores ao primeiro registro, cf. J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho Inmobiliario Registral, Pamplona, [s.e.], 2010, pp. 39-40. Em 27 de janeiro de 1858, após oito anos de esforços para obter apoio da legislatura, foi promulgada a Lei Torrens ("Torrens Act") no Austrália do Sul. O sistema foi aperfeiçoado e implantado no restante da Austrália em 1862. Após seu retorno à Inglaterra, Richard Torrens procurou apoio para implantar - sem êxito - o mesmo sistema neste país, sob o argumento de que tornaria as transações imobiliárias mais seguras, simples, céleres, baratas e economicamente vantajosas. Uma das obras de Richard Torrens mais citadas - na qual o autor expõe o sistema registral por ele idealizado com bastante clareza - é R. R. Torrens, An Essay on the Transfer of Land by Registration under the Duplicate Method Operative in the British Colonies, London/Cassel/Petter, Galpin & Co., 1882, pp. 9-58. Embora alguns afirmem que Richard Torrens modelou sua proposta de registro no sistema registral vigente na cidade de Hamburgo havia séculos, a hipótese hoje é considerada improvável, cf. H. Esmaeili - B. Grigg (eds.), The Boundaries of Australian Property Law, Cambridge, Cambridge University, 2016, pp. 31-34. 9 J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho cit., p. 44. 10 K. Gray - S. F. Gray, Elements cit., p. 58. 11 K. Gray - S. F. Gray, Elements cit., p. 183. 12 Cf. Land Registration Act 2002, s. 4(1)-(2). 13 J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho cit., p. 45. 14 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989, s. 1 (1) (b). 15 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989, s. 1 (1) (a). 16 S. van Erp, Comparative Property Law, in M. Reimann - R. Zimmermann (coords.), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, University Press, 2006, p. 1309: "English law, unlike most civil law systems, does not follow a uniform approach with regard to transfer systems. Thus, the Sale of Goods Act of 1979 follows the consensual system. Transfer of a legal estate in land, however, requires a formal act. Also, it should not be forgotten that Equity may intervene; and the result may therefore be that while no transfer has taken place under the common law, it has taken place in Equity". 17 O princípio solo consensu aplica-se, exclusivamente, à transmissão de direitos reais sobre bens móveis e às doações mediante escritura (gifts by deed), cf. L. P. W. Van Vliet, Transfer of Moveables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000, p. 91. 18 K. Gray - S. F. Gray, Elements cit., p. 1034. 19 Nesse sentido, cf. L. P. W. Van Vliet, Transfer cit., p. 111. 20 Acerca da natureza judiciária da formação do direito imobiliário inglês, cf. T. Olcese, Formação cit., pp. 23-32. 21 Land Registration Act 2002, s. 58 (2). 22 Land Registration Act 2002, s. 58 (1). 23 R. Megarry - W. Wade, The Law cit., p. 220. 24 A primeira obra a estruturar esses princípios foi escrita por um registrador inglês com base no sistema australiano de registro imobiliário: T. B. F. Ruoff, An Englishman Looks at the Torrens System - Being some provocative essays on the operation of the system after one hundred years, Sydney, The Lawbook of Australia, 1957, pp. ix-106. Até hoje, a doutrina inglesa não tem elencado nem desenvolvido outros princípios para o registro imobiliário. 25 B. McFarlane - N. Hopkins - S. Nield, Land Law, Oxford, University Press, 2017, p. 108. 26 Land Registration Act 2002, Sch. 8, para. 1.
Direito Espanhol  O sistema registral imobiliário espanhol foi inaugurado com a edição da Lei Hipotecária de 1861, que estabeleceu uma regra geral de registrabilidade dos fatos jurídicos aquisitivos, modificativos ou extintivos de direitos reais em geral. No sistema então implementado, foi atribuído caráter em regra declaratório e voluntário à inscrição, que embora se mostre imprescindível para atribuir eficácia erga omnes aos direitos reais, não é requisito necessário para sua constituição. Dessa forma, constata-se uma clara cisão entre direitos reais conforme sua eficácia: de um lado, existem direitos reais com eficácia inter partes, e de outro, direitos reais com eficácia erga omnes. Isso explica a amplitude da autonomia da vontade na configuração dos direitos reais pelos particulares. Vale dizer, são livremente moldáveis justamente porque em princípio valem apenas inter partes, assim como os direitos obrigacionais. Não obstante, apenas o conteúdo propriamente real dessas relações jurídicas pode ingressar no Registro, assumindo eficácia oponíveis erga omnes. Embora a doutrina espanhola identifique o modo na traditio, esta não deixa de ser uma formalidade situada no campo do consenso, sendo inclusive definida pela doutrina como "um acordo de vontade das partes tendente à execução do negócio dispositivo"1. Esse acordo pode tanto derivar da própria escritura (que é o que ocorre em regra, tendo em vista a presunção legal) como ser a ela posterior, mas em todo caso trata-se de um acordo de vontade, não podendo ser confundido com o conceito de modo em sentido próprio. Por mais que se tente discernir na lavratura da escritura um título e um modo (negócio jurídico e traditio, respectivamente), o que há é apenas um título cuja eficácia real depende da concorrência de determinadas formalidades que permitam inferir a vontade de transmitir, que pode ser implícita na outorga de escritura pública, ou até mesmo explícita em momento superveniente. Daí poder-se dizer que essa transmissão opera pelo consenso, mas não pelo simples consenso. Sendo assim, na contramão da opinião doutrinária dominante2, que classifica o sistema espanhol como um sistema do título e modo (qualificado, ainda, como complexo3), defender-se a sua classificação como um sistema do título complexo. De fato, ao dispensar o registro como elemento constitutivo dos direitos reais, tem-se que o sistema espanhol é regido pelo princípio do consenso, aproximando-se de outros sistemas do título como o português. Trata-se, contudo, de um sistema do título complexo pois, para que ocorra a transmissão o consenso deve se revestir formalidades específicas, dentre as quais aquelas relacionadas à efetivação da traditio. É então possível concluir, na contramão da opinião doutrinária dominante, que o sistema de transmissão imobiliária espanhol é do título complexo, e não do título e modo. Essa tese se amolda melhor ao arcabouço normativo desse sistema, segundo o qual a inscrição é em regra voluntária e declaratória, e grande parte dos direitos sobre imóveis se forma, se modifica e se extingue à margem do Registro. O que deve ficar claro é que o princípio do consenso determina ser sistema do título, porque a propriedade se transmite antes do registro, o qual passa a ser facultativo. Ainda, pode ser considerado um sistema do título complexo na medida em que ostenta peculiaridades que o distanciam dos demais sistemas do título existentes. Essas complexidades - e até mesmo algumas perplexidades - se evidenciam sobretudo em relação ao sistema delineado pela Lei Hipotecária, ou seja, ao regime jurídico incidente sobre a propriedade já inscrita. Sucede que a compreensão do registro espanhol como um sistema do título e modo repousa na concepção de que a função do modo, nesse sistema, é exercida pela traditio, no sentido tradicional de entrega do bem (que é a terminologia empregada no ordenamento brasileiro em relação à transmissão de bens móveis4), que historicamente se estendiam aos imóveis, hoje substituída pelo registro. Ou seja, a despeito do caráter em regra declaratório do registro, o sistema espanhol seria do título e modo porque o modo não seria o registro, e sim a traditio. Essa tese não se coaduna com a concepção de modo ora adotada, segundo a qual o modo, em matéria de direitos imobiliários, corresponde sempre ao registro. Sob este prisma, o que se entende por traditio no sistema espanhol seria, na verdade, uma etapa adicional na manifestação do consenso, necessária para consolidar a constituição do direito real independentemente do modo, ou seja, do registro. Assim, tem-se que por um lado o sistema espanhol é um sistema do título, regido pelo princípio do consenso, mas por outro adota o princípio da separação, assim como na Alemanha. Afinal, para que produza efeitos reais, o consenso no sistema espanhol é manifestado em duas etapas: o contrato propriamente dito, ou seja, o negócio jurídico obrigacional, e um acordo de vontade tendente à transmissão do direito real (traditio), que exsurge como um negócio jurídico dispositivo. Outra característica que aproxima o sistema espanhol do alemão é a robusta proteção conferida aos terceiros, sobretudo em nome da fé pública registral.  Com efeito, muito embora o sistema espanhol adote o princípio da causalidade entre o negócio jurídico obrigacional e o júri-real5, e entre aquele e o registro, essa causalidade encontra suas balizas na proteção dos terceiros. Ou seja, a possibilidade de invalidação do registro por inexatidão é limitada pela regra protetiva do terceiro hipotecário, cuja inscrição não será afetada por causas relativas aos titulares anteriores na cadeia dominial que culminou na constituição do seu direito. A análise da regra protetiva do terceiro hipotecário pelo sistema espanhol conduz à conclusão de que a inscrição do título no Registro não apenas gera sua oponibilidade erga omnes como também implica uma espécie de efeito resolutivo, extinguindo eventuais direitos reais inter partes incompatíveis ou contraditórios anteriormente constituídos sobre o imóvel. Pode-se até mesmo afirmar, nessa linha, que a inscrição implica uma abstração relativa. Essa forte proteção conferida aos terceiros hipotecários tem como epicentro a norma do art. 34 da Lei Hipotecária espanhola, e decorre do fato de que, assim como o sistema alemão, o sistema espanhol é baseado na segurança do tráfico jurídico, ou seja, na segurança dinâmica. Assim, embora tutele a segurança estática (sobretudo pela consagração do princípio da legitimação), há uma clara prevalência da segurança dinâmica nas hipóteses de colisão entre ambas. É essa é a chave de compreensão do sistema arquitetado pela Lei hipotecária. Na Espanha, a doutrina e jurisprudência majoritárias - inclusive do Tribunal Supremo6 - entendem que o sistema ordinário de transmissão de imóveis se consuma no âmbito extrarregistral, sendo regido pelos arts. 609 e 1.095 do Código Civil. Nesse sentido, o registro serviria sobretudo como instrumento legitimador de aquisições a non domino, em determinadas situações previstas em lei7. Nessa concepção, os efeitos produzidos pelo registro seriam restritos, a saber: i) a inoponibilidade (art. 606 do Código Civil e 32 da LH); ii) presunção iuris tantum de titularidade e posse conforme consta no registro (art. 38 LH); iii) proteção de determinados adquirentes a non domino, legitimando sua aquisição em prol da segurança jurídica do tráfico imobiliário (art. 34 LH)8. Essa interpretação restritiva do alcance da fé pública registral, inspirada na tradição romana, se deve ao fato de que seus preceitos implicam um sacrifício ao direito do verus dominus, ou seja, aquele que adquiriu anteriormente sob a égide do art. 609 do Código Civil. Por isso, tal proteção deveria ser excepcional e plenamente justificada, de modo que ficaria restrita às situações de dupla disposição sucessiva de um mesmo bem pelo titular registral9. No entanto, uma corrente minoritária defende que o papel da fé pública no sistema espanhol é mais amplo, já que ela tem diversas funções e produz efeitos mesmo quando não há dupla disposição. Vale dizer, embora o registro tenha por função, em determinados casos, legitimar aquisições a non domino, tal não é sua única nem principal finalidade10. Aliás, essa seria uma função extraordinária do registro, cuja função ordinária se mostra na realidade cotidiana, em que na maioria dos casos há coincidência entre o titular registral e o titular negocial (verus dominus)11. Quanto à natureza jurídica do procedimento registral, predomina o entendimento de que não é propriamente administrativa nem judicial, sobretudo por tratar de questões civis e não envolver litígio entre as partes. Por isso, é geralmente considerado uma modalidade de administração pública dos interesses privados, mais especificamente um procedimento de jurisdição voluntária12. Referências  DE LA RICA Y ARENAL, Ramon, Realidades y problemas en nuestro derecho registral inmobiliario, Madrid, Real Academia de jurisprudencia y legislación, 1962. GOMEZ DE LA SERNA, D. Pedro, La Ley Hipotecaria, t. I, Madrid, Imprenta de la Revista de Legislación, 1862. GORDILLO CAÑAS, Antonio, El principio de fe pública registral (II), in ADC LXI (2008). MARTÍNEZ VELENCOSO, Luz M. Los Principales Sistemas de Transmisión de la Propiedad de los Bienes Inmuebles en el Derecho Europeo, in MORENO, Francisco J. Orduña - ALFARO, Fernando de la Puente - VELENCOSO, Luz M. Martínez (coords.), Los Sistemas de Transmisión de la Propiedad Inmobiliaria en el Derecho Europeo, Navarra, Thomson-Civitas, 2009. MEDINA, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. MÉNDEZ GONZÁLEZ, La función de la fe pública registral en la transmisión de bienes inmuebles - Un estudio del sistema español con referencia al alemán, Valencia, Tirant, 2017. PEDRÓN, Antonio Pau, La Publicidad Registral, Madrid, Centro de Estudios Registrales, 2001. ROCA SASTRE, Ramón Mª; e MUNCUNILL, Luis Roca-Sastre, Derecho Hipotecario - Fundamentos de la publicidad registral, t. I-III, 8ª ed., Barcelona, Bosch, 1995. SOUSA JARDIM, Mónica Vanderleia Alves, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013. __________ 1 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013, p. 302. 2 Afirmam R. De la Rica y Arenal, Realidades y problemas en nuestro derecho registral inmobiliario, Madrid, Real Academia de jurisprudencia y legislación, 1962, p. 41, que o sistema adotado pelo Código Civil espanhol é o do título e modo, sendo o modo correspondente à traditio, fundada na transmissão da posse. Em igual sentido, L.M. Martínez Velencoso, Los Principales Sistemas de Transmisión de la Propiedad de los Bienes Inmuebles en el Derecho Europeo, in F. J. O. Moreno - F. de la P. Alfaro - L. M. M. Velencoso (coords.), Los Sistemas de Transmisión de la Propiedad Inmobiliaria en el Derecho Europeo, Navarra, Thomson-Civitas, 2009, p. 83. Para R. M. Roca Sastre - L. Roca-Sastre Muncunill, Derecho Hipotecario - Fundamentos de la publicidad registral, t. I, 8ª ed., Barcelona, Bosch, 1995, pp. 304-305, o sistema aquisitivo baseado na teoria do título e modo foi respeitado pela Lei Hipotecária de 1861 e mantido pelo Código Civil. Também classificam o sistema espanhol como do título e modo A. P. Pedrón, La Publicidad Registral, Madrid, Centro de Estudios Registrales, 2001, p. 369; D. P. Gomez de la Serna, La Ley Hipotecaria, t. I, Madrid, Imprenta de la Revista de Legislación, 1862, p. 211; A. Gordillo Cañas, El principio de fe pública registral (II), in ADC LXI (2008), pp. 1099-1100. 3 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos Substantivos do Registo Predial, Coimbra, Almedina, 2013, p. 53. 4 Vide art. 1.226 do CC/2002. 5 Não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, o comodato e o depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 123, nota 80. 6 Por exemplo, as sentenças de 5 de março e 7 de setembro de 2007. 7 F. P. Méndez González, La función de la fe pública registral en la transmisión de bienes inmuebles - Un estudio del sistema español con referencia al alemán, Valencia, Tirant, 2017, p. 17. 8 F. P. Méndez González, La función cit., p. 11. 9 F. P. Méndez González, La función cit., p. 11. 10 F. P. Méndez González, La función cit., p. 22. 11 F. P. Méndez González, La función cit., p. 35. 12 R. M. Roca Sastre - L. Roca-Sastre Muncunill, Derecho Hipotecario - Fundamentos de la publicidad registral, t. I-III, 8ª ed., Barcelona, Bosch, 1995, p. 484.
Direito Português O sistema de transmissão imobiliária português é regido pelo princípio do consenso, de forma que os direitos reais se constituem pelo mero acordo de vontade. Inexiste, portanto, uma separação entre um negócio jurídico obrigacional e um negócio dispositivo, já que o efeito real depende tão somente do consenso. Adota-se como regra, portanto, o princípio da unidade. Essa ideia é reforçada pela dicção do art. 408, nº 1, do Código Civil português, segundo o qual a mutação júri-real ocorre por "mero efeito do contrato", ou seja, não se exige a celebração de um negócio jurídico dispositivo apartado. Esse dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o art. 224 do mesmo Código, que, ao tratar da eficácia da declaração negocial, consagra a doutrina da recepção. Assim, determina a primeira parte do nº 1 do referido artigo que "a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida". Aplicando essa lógica aos contratos reais quod effectum, tem-se que seus efeitos reais são em regra produzidos desde o momento de emissão e recepção das declarações de vontade1. Nada impede, no entanto, que essa eficácia real seja diferida no tempo em virtude da inatualidade ou indeterminação do objeto (art. 408, nº 2, do CC português), ou, ainda, de estipulação de reserva de domínio ou outra condição imposta pelas partes (art. 409 do CC português2). Nesses casos, embora a produção dos efeitos reais não seja uma consequência imediata e instantânea do contrato, não deixa de ser uma consequência direta do último. Tais hipóteses, portanto, não são propriamente exceções ao princípio do consenso, mas manifestações dos princípios da atualidade e da especialidade. Adota-se, ainda, o princípio da causalidade, já que o título que fundamenta a produção de efeitos reais deve existir, ser válido e eficaz para atingir tal fim. O atual sistema imobiliário português não adota o princípio da abstração, de modo que a constituição do direito real exige uma justa causa, ou seja, um título existente, válido e apto à produção de efeitos reais. Vale dizer, embora o título seja suficiente para constituir direitos reais, por força do princípio do consenso, tal título deve necessariamente existir, ser válido e eficaz, caso contrário não produzirá o efeito real colimado. Sendo assim, pode-se afirmar que o sistema português consagra o princípio da causalidade3. O art. 408, nº 1 do Código Civil português consagra o princípio da consensualidade ou do consenso, ao determinar que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre pelo mero efeito do contrato, ressalvadas as exceções legais. Ou seja, no sistema português, em regra, o acordo de vontades é condição necessária e suficiente para a eficácia real do direito, dispensando a superveniência de um modus adquirendi. Pode-se, então, situar o sistema de transmissão imobiliária português entre os sistemas do título4. O registro, nesse contexto, não assume em regra efeito constitutivo, mas apenas declaratório - ou, na terminologia empregada pela doutrina portuguesa, consolidativo ou confirmativo. Vale dizer, embora a constituição do direito real se dê pelo consenso, o registro consolida a sua eficácia perante terceiros. Isso porque, como expressamente prevê a legislação portuguesa, enquanto não registrado, o direito produz efeitos apenas entre as partes. Apenas após seu ingresso no fólio real o direito torna-se oponível ou invulnerável em face de terceiros. Importa frisar, contudo, a existência de exceções a esse princípio. As exceções apontadas pela doutrina podem ser assim divididas: situações em que se exige a traditio (doação de móveis sem a existência de escrito; transmissão de títulos ao portador; constituição de penhor de coisas nas modalidades do art. 669 do Código Civil); situações que demandam outras formalidades (constituição do penhor de créditos, que exige a notificação do devedor ou equipolente); e, por fim, a situação da hipoteca, que, na linha da maioria dos sistemas jurídicos existentes, se constitui tão somente pelo registro5. Em que pese o caráter em regra não constitutivo do registro português, o legislador optou por revesti-lo de obrigatoriedade. Com efeito, o Código do Registo Predial, em sua redação hodierna, fixa expressamente o caráter obrigatório do registro - salvo pontuais exceções - indicando inclusive os sujeitos obrigados a promovê-lo, o prazo para o cumprimento dessa obrigação e as consequências do descumprimento. Essa obrigatoriedade - que afasta o sistema português do adotado na Espanha, por exemplo - surgiu com a introdução dos arts. 8º-A a 8º-D no Código do Registo Predial, pelo decreto-lei 116/2008, de 4 de julho. O art. 8º-A assinala expressamente a obrigatoriedade de submeter a registro os fatos elencados no art. 2º do mesmo diploma e as ações, decisões e providências aludidas no art. 3º, ressalvando apenas algumas exceções. Não se sujeitam à regra da obrigatoriedade, segundo o dispositivo, os fatos que: i) devam ingressar provisoriamente por natureza no registo, nos termos do n.º 1 do artigo 92.º; ii) relativos à aquisição sem determinação de parte ou direito; iii) que incidam sobre direitos de algum ou alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa; iv) relativos à constituição de hipoteca e o seu cancelamento, neste último caso se efetuado com base em documento de que conste o consentimento do credor; v) relativos à promessa de alienação ou oneração, os pactos de preferência e a disposição testamentária de preferência, se lhes tiver sido atribuída eficácia real. Importa esclarecer que a obrigatoriedade do registro no sistema português não afeta a eficácia atribuída ao registro, que é, em regra, declaratória. Vale dizer, a sanção direta ao descumprimento da obrigação de registrar é pecuniária, nos termos acima mencionados. É certo que a falta do registro também tem consequências relacionadas à sua eficácia perante terceiros, mas tais consequências dizem respeito à eficácia consolidativa que o registro tem, e não propriamente ao seu caráter obrigatório. A base da organização técnica do registro é real, assim como a dos sistemas alemão, espanhol6 e brasileiro. Ou seja, adota-se o princípio do fólio real, de modo que para cada imóvel é feita uma descrição, a partir da qual são realizados todos os lançamentos relativos ao imóvel, compondo seu histórico jurídico-real. No que diz respeito aos efeitos do registro português, tem-se que, em primeiro lugar, o registro definitivo gera uma presunção iuris tantum de que o direito existe tal como consta no assento, e, ainda, que pertence ao titular registral, nos termos inscritos. Trata-se de uma manifestação do princípio da legitimação registral. Note-se que, ao contrário do que ocorre no sistema espanhol, o registro no sistema português não gera presunção de que a posse do imóvel é exercida pelo titular inscrito nos termos constantes do registro7. Essa diferença pode ser explicada pelo fato de que o registro espanhol pressupõe a prévia ocorrência da traditio, que consiste justamente na transmissão possessória, já que é essa formalidade que consolida a transmissão do direito real inter partes. O registro português também, em regra, tem como função típica um efeito declarativo, consolidando a oponibilidade erga omnes da situação jurídico-real inscrita8, como analisado anteriormente. Assim como o direito espanhol, o ordenamento português defere uma proteção especial a determinados terceiros adquirentes que confiam na aparência gerada pelo Registro, tendo em vista a tutela da segurança dinâmica ou do tráfico jurídico. Não obstante, a proteção do terceiro registral no sistema português é menos ampla, havendo inclusive quem sustente a inexistência do princípio da fé pública registral nesse sistema. Independentemente da discussão quanto à existência da fé pública e, consequentemente, da presunção de exatidão do registro português, é inconteste que nesse sistema o critério último para a resolução de impasses entre titulares de direitos reais é a usucapião, que prevalece sobre os direitos do terceiro registral. Assim, embora tutele o tráfico jurídico, objetivo primordial do Registro predial, o direito português em última instância sempre dá preferência à propriedade fundada na posse. Bibliografia ASCENSÃO, José de Oliveira, Efeitos substantivos do registo predial na ordem jurídica portuguesa, in RFDUSP 69 (1974). DE SOUSA JARDIM, Mónica Vanderleia Alves, Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013. __________ 1 M. V. A. SOUSA JARDIM, Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013, p. 414. 2 Segundo o nº 1 do referido art. 409, "1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento." Importa destacar o nº 2, segundo o qual "Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros". 3 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos cit., p. 477. 4 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos cit., p. 412-413. 5 M. V. A. Sousa Jardim, Os Efeitos cit., p. 414. 6 O. ASCENSÃO, Efeitos substantivos do registo predial na ordem jurídica portuguesa, in RFDUSP 69 (1974), p. 158. 7 M. V. A. Sousa Jardim, Escritos cit., p. 146.   8 M. V. A. Sousa Jardim, Escritos cit., p. 146.?
Direito Romano e Direito Intermédio A relevância do direito romano para a compreensão dos sistemas contemporâneos de transferência da propriedade não pode ser subestimada. Com efeito, as modernas teorias causal (que inspira a codificação francesa) e abstrata (que embasa a codificação alemã) de transferência da propriedade encontram a sua origem no direito romano, tal como foi acolhido e posteriormente interpretado por glosadores e comentadores, bem como pelos juristas do ius commune1. Cediço entre os romanistas é que o direito romano conheceu, ao longo da sua história, três modos típicos de transferir a propriedade (modus adquirendi) e distintos da relação econômico-social subjacente (titulus adquirendi)2. Esses modos, a saber, a mancipatio, a in iure cessio e a traditio, são mais comumente elencados pela doutrina romanista sob a rubrica "modos derivados de aquisição da propriedade" e diferenciam-se dos denominados "modos originários de aquisição da propriedade" por implicar a continuidade de um poder dominial preexistente e pertencente a outrem, ao passo que estes estão desvinculados de qualquer poder atribuível a um titular anterior3. O direito romano, convém notar, não conheceu a distinção entre a aquisição originária e derivada da propriedade. Conheceu, isso sim, a distinção entre os modos de aquisição do domínio oriundos do ius civile, de um lado, e aqueles atribuídos ao ius gentium e ao ius naturale, do outro4. Nessa lógica, o critério determinante era a efetividade da aquisição exclusivamente em favor de cidadãos romanos, no primeiro caso, e também em benefício de estrangeiros, no segundo. Eram considerados modos de aquisição iuris civilis a usucapio, a mancipatio e a in iure cessio, ao passo que a traditio e todos os demais modos de aquisição, quer fossem originários ou derivados, inseriam-se no ius gentium/ius naturale. A mancipatio constitui, sem sombra de dúvida, um dos mais antigos e tradicionais modos de adquirir a propriedade a título derivado no direito romano. É quase certo que sua origem é pré-romana e que era uma instituição conhecida dos povos latinos antes da fundação de Roma5. É interessante notar que uma parte importante da literatura romanista, ao sistematizar os diversos institutos do direito romano, tende a elencar a mancipatio (bem como a in iure cessio) tanto entre os negócios jurídicos (onde normalmente se faz a análise do conteúdo solene do instituto)6 quanto entre os modos derivados de aquisição do domínio (no qual se faz o estudo dos seus efeitos translativos)7. O sistema classificatório das coisas no direito romano pré-clássico e clássico distinguia entre as coisas que deviam ser alienadas mediante mancipatio (as res mancipi) e aquelas para cuja alienação bastava a simples traditio (as res nec mancipi)8. Nesse sentido, Gaio, ao explicar que o tutor não pode ser obrigado a interpor a sua autoridade (auctoritatis interponere) para praticar atos que sejam onerosos ao pupilo, qualifica as res mancipi como aquelas coisas que eram "mais valiosas" [=res pretiosiores] para os romanos9. A mancipatio, por ter servido de modelo para todo um conjunto de atos de disposição de poderes, podia surtir vários efeitos. O traço comum a todos esses efeitos era a transferência a outrem (ou melhor, a extinção e concomitante criação) de um poder sobre uma coisa ou pessoa. O que variava era a expressão desse poder, que ora podia recair sobre uma coisa, ora sobre a mulher, ora sobre algum outro membro da família. O principal efeito decorrente da realização das solenidades da mancipatio era a aquisição da propriedade quiritária (ex iure Quiritium), por parte do mancipio accipiens, sobre a res mancipi objeto do negócio. Note-se que, além da propriedade, a mancipatio transferia também a posse das coisas móveis (escravos e animais de tiro e carga), na medida em que estas deviam estar presentes na celebração das formalidades, a fim de que o adquirente as apreendesse materialmente (adprehendere id ipsum)10. Outro modo formal e solene de aquisição derivada da propriedade era a cessão em juízo (in iure cessio), que a doutrina designa como uma espécie de lis imaginaria, por analogia à imaginaria venditio que a mancipatio constituía. Segundo essa mesma doutrina, o caráter nitidamente artificial da in iure cessio, entre outros fatores, torna mais plausível que esta tenha surgido em momento posterior à mancipatio11, embora já fosse mencionada, ao que parece, na Lei das XII Tábuas12. Objeto da in iure cessio podiam ser tanto as res mancipi quanto as res nec mancipi13. Como negócio translativo da propriedade, entretanto, as próprias fontes parecem indicar que o uso da in iure cessio não era muito difundido14, sendo mais utilizada, provavelmente, para constituir e extinguir direitos reais limitados e para transferir poderes absolutos não patrimoniais15, tais como a cessão da tutela mulieris e a transmissão da patria potestas para fins de adoção (adoptio)16. Admitia, além disso, a alienação fiduciária das res nec mancipi, algo que não era possível por meio da simples traditio. Tal como a mancipatio, a in iure cessio constituía um modo abstrato de aquisição derivada da propriedade, na medida em que não havia necessidade de declinar os motivos, isto é, a causa, que levava as partes a realizar a transmissão17. No período pós-clássico, os meios de publicidade tradicionais entram em decadência e terminam por desaparecer. Com o tempo (e após algumas reformas), surge a corporalis traditio para a efetiva transferência da propriedade. Nesse sentido, uma constituição de Teodósio, Arcádio e Honório18, após assinalar que, em relação às coisas móveis, basta a simples tradição para que o contrato seja válido, prescreve que se o pacto disser respeito a imóveis, deverá ser lavrada uma escritura (scriptura emittatur) que os transfira ao adquirente, seguida da tradição material (traditio corporalis) e de atas (gesta) que atestem a conclusão do negócio: pois de outra forma não podem entrar no novo domínio nem ser separadas da antiga titularidade. A partir de então, portanto, a scriptura é da essência da transferência dominial imobiliária, junto com a tradição material incontinenti da coisa. Muito embora o direito justinianeu reconhecesse o requisito do documento escrito (scriptura) para a transmissão imobiliária, tal exigência não era requisito de validade. O registro, portanto, era esporádico e a documentação tinha caráter comprobatório. De acordo com a doutrina especializada, a traditio, como modo de aquisição da propriedade, pode ser definida como a entrega ou, pelo menos, a disponibilização de uma coisa, aliada às intenções recíprocas de renunciar e de receber o domínio sobre a coisa entregue, com base em uma relação que o direito reconhece como apta a justificar a transferência do domínio19. Embora os autores da doutrina especializada divirjam quanto à efetiva enumeração desses requisitos20, existe um certo consenso quanto aos seguintes elementos essenciais da traditio: (i) um ato material indicativo da traditio que consistia, inicialmente, na entrega física da coisa, porém se torna, a pouco e pouco, um ato "espiritualizado" ou meramente simbólico; (ii) a intenção do alienante de entregar e do adquirente de receber a posse da coisa; (iii) a existência de uma iusta causa que servisse de fundamento à tradição; (iv) a titularidade, por parte do alienante, da propriedade (quiritária ou pretoriana) da coisa, e (v) a capacidade, por parte do accipiens, de adquirir a propriedade da coisa entregue. Tende a prevalecer a noção de que, no direito romano, a iusta causa traditionis era requisito para a transferência válida da propriedade de uma coisa. A controvérsia, ao que tudo indica, diz respeito ao efetivo conteúdo dessa iusta causa. Um dos fatores que alimentou essa controvérsia21 é a célebre divergência, registrada nas fontes romanas, entre Juliano e Ulpiano acerca da traditio. Com efeito, Juliano sustenta que o consentimento das partes em relação à entrega da coisa é suficiente para transferir a propriedade, mesmo que haja divergência quanto ao motivo dessa mesma entrega22. Ulpiano, por sua vez, ao discutir a mesma fattispecie, diverge da opinião de Juliano, por entender que, não havendo consentimento acerca da causa (no caso, o acordo acerca de se tratar de uma doação ou de um empréstimo de dinheiro), não pode haver transferência da propriedade23. Hoje, a doutrina romanista tende a considerar a traditio um modo causal de transferência do domínio e, mesmo nos dias de hoje, a simples entrega de um bem qualquer, por si só, não implica que um direito sobre a coisa entregue, ou mesmo a simples posse, tenha sido transferido validamente. Alguma formalidade ou, no mínimo, uma intenção consubstanciada em algum tipo de declaração (quer seja expressa, tácita ou presumida), é necessária para que a entrega produza efeitos jurídicos. Há quem agrupe as opiniões acerca da iusta causa traditionis que surgiram no direito intermédio24, e que deram origem às doutrinas do título e modo do século XIX25, em três modalidades de transferência da propriedade. De um lado, quem entende necessária uma causa vera exige, para que a transferência seja eficaz, que a transferência do domínio se funde em um título jurídico válido26. Embasar a transmissão do domínio no animus dominii transferendi, por sua vez, significa requerer que a vontade translativa seja isenta de vícios, independentemente da validade da causa, para que a transferência seja eficaz27. Por último, optar pela abstração implica separar a vontade de transferir da sua respectiva causa, tornando a transferência da propriedade eficaz independentemente da causa traditionis28. Essas três noções acerca da transmissão da propriedade são as que serviram de base para a primeira concepção sobre o sistema do título e modo, que teria dominado o direito comum europeu até o século XIX29. Para essa corrente, o modo é considerado a publicidade e, por isso, já existia desde o direito romano pela mancipatio. No entanto, entende-se, numa segunda concepção, que modo é somente o registro, que nasceu na Idade Média por volta de 1347, de forma que os sistemas considerados como de título e modo seriam, na verdade, somente de título, reservando-se o "modo" apenas aos países que adotam o registro como fator constitutivo da transmissão da propriedade. Além disso, deve-se observar que, independentemente da concepção de "modo" - seja ela a publicidade ou o registro - muitos países já se desvincularam do direito romano durante a Baixa Idade Média, passando a adotar o sistema puramente do título, como é o caso da França, Portugal e Itália, por exemplo. Durante a Idade Média, se abstraiu a noção de publicidade e o contrato ganhou força constitutiva da transmissão muito provavelmente em virtude do crescimento do notariado, de forma que vários países passaram a adotar o sistema do título.  Paralelamente, na Alemanha, houve o surgimento do registro, que, no país, passou a ser mais prestigiado que o contrato, na medida em que era necessário para efetivar a transmissão. O sistema alemão, inclusive, dispensa o título obrigacional para o registro, não existindo vínculo causal entre eles (princípio da abstração). No Brasil, por sua vez, ocorreu um sincretismo. Inicialmente, o país adotou o sistema do título, seguindo as determinações das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, vigentes durante o período colonial. Tal sistema perdurou até 1916, ocasião em que, com a promulgação do Código Civil, houve a tentativa de incorporar no Ordenamento ideias do sistema alemão. Migrou-se, então, do sistema do título para o sistema do título e modo, no qual se exige, em regra, tanto o título quanto o registro para a transferência do direito real. Bibliografia Baldus, In quartum et quintum Codicis libros commentaria, Venetiis, 1577. Bonfante, Pietro, Corso di diritto romano - La proprietà, vol. II, t. II, Milano, Giuffrè, 1968. Cujacius, Jacobus, Jacobi Cujacii IC. Tolosatis opera ad Parisiensem Fabrotianam editionem diligentissime exacta in tomos XIII. distributa auctiora atque emendatiora, p. IV, t. IX, Prati, Giachetti, 1839. Hofmann, Franz, Die Lehre vom Titulus und Modus Adquirendi, Wien, Manz, 1873. Kaser, Max, Römisches Privatrecht, trad. ing. de Dannenbring, Rolf, Roman Private Law, 4ª ed., Pretoria, University of South Africa, 1984.  Marrone, Matteo, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006. Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Moreira Alves, José Carlos, Direito Romano, vol. II, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. Rogerius, Enodationes questionum super Codice, in H. Kantorowicz - W. W. Buckland, Studies in the Glossators of the Roman Law - Newly discovered writings of the twelfth century, Cambridge, University Press, 1938. Talamanca, Mario, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990. van Vliet, Lars Peter Wunibald, Iusta Causa Traditionis and its History in European Private Law, in European Review of Private Law, 3 (2003).  van Vliet, Lars Peter Wunibald, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000. __________ 1 L. P. W. van Vliet, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000, p. 169. 2 M. Talamanca, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990, p. 429. 3 Cf. P. Bonfante, Corso di diritto romano - La proprietà, vol. II, t. II, Milano, Giuffrè, 1968, p. 270; M. Talamanca, Istituzioni cit., pp. 413-414. 4 Gai. 2, 65. 5 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 188-189. 6 Assim, por exemplo, M. Kaser, Römisches Privatrecht, trad. ing. de Dannenbring, Rolf, Roman Private Law, 4ª ed., Pretoria, University of South Africa, 1984, pp. 45-48; M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006, pp. 129-133; J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. II, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, 156-157 (de modo mais superficial). 7 Cf. M. Kaser, Römisches cit., pp. 125-127; M. Marrone, Istituzioni cit., pp. 309-311. Diversamente, J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, 304-307 e M. Talamanca, Istituzioni cit., pp. 429-435 cuidam da mancipatio predominantemente como modo de aquisição da propriedade, apenas secundariamente como negócio jurídico. 8 Gai. 2, 19: Nam res nec mancipi ipsa traditione pleno iure alterius fiunt, si modo corporals sunt et ob id recipiunt traditionem (As coisas que não são suscetíveis de venda por mancipação tornam-se propriedade de outrem pela mera tradição, desde que sejam corpóreas e, por causa disso, capazes de serem entregues). 9 Gai. 1, 192. 10 Gai. 1, 121. 11 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 199-200. 12 Ela é mencionada ao lado da mancipatio: Tab. 6, 6b: "(...) et mancipationem et in iure cessionem lex XII tab. confirmat" ("...a Lei das XII Tábuas confirma a mancipação e a cessão em juízo"). Cf. também Paul. Frag. Vat. 50. 13 Gai. 2, 22. 14 Gai. 2, 25. 15 M. Talamanca, Istituzioni cit., p. 435 16 M. Marrone, Istituzioni cit., p. 133. 17 Nesse sentido, cf. M. Talamanca, Istituzioni cit., p. 429; M. Marrone, Istituzioni cit., p. 134; M. Kaser, Römisches cit., p. 127, entre outros. 18 Theod.-Arcad.-Honor., C. 4, 3, 1, 1-2 (de 394 d.C.): "(1. Mas se for esse o motivo da entrega de ouro, prata ou alguma outra coisa móvel, basta a mera tradição para que o contrato tenha plena validade, pois a entrega conclusa de uma coisa móvel goza de plena fé por essa razão. 2. Porém, se o pacto disser respeito a imóveis rurais ou urbanos, deverá ser lavrada uma escritura que os transfira ao adquirente, seguida da tradição material e de atas que atestem a conclusão do negócio: pois de outra forma não podem entrar no novo domínio nem ser separadas da antiga titularidade)." 19 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 203-204. 20 Acerca dessa divergência, cf. J. C. Moreira Alves, Direito cit., vol. I, p. 309. 21 L. P. W. van Vliet, Transfer cit., pp. 169-170. 22 Iul. 13 digest., D. 41, 1, 36. 23 Ulp. 7 disputat., D. 12, 1, 18 pr. 24 Acerca desse agrupamento, cf. L. P. W. van Vliet, Iusta Causa Traditionis and its History in European Private Law, in European Review of Private Law, 3 (2003), p. 346. 25 Para uma crítica contemporânea a essas teorias, cf. F. Hofmann, Die Lehre vom Titulus und Modus Adquirendi, Wien, Manz, 1873, pp. 41-79. Acerca do tema e do seu desenvolvimento, consultar a pesquisa elaborada em F. E. S. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - Uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese de Doutorado - Faculdade de Direito da USP, 2018, pp. 115-119. 26 Nesse sentido, J. Cujacius, In libros IV prioris Codicis Justiniani, ad C. 4, 50, in J. Cuiacius, Jacobi Cujacii IC. Tolosatis opera ad Parisiensem Fabrotianam editionem diligentissime exacta in tomos XIII. distributa auctiora atque emendatiora, p. IV, t. IX, Prati, Giachetti, 1839, col. 2567. 27 É o caso, por exemplo de Baldus, In quartum et quintum Codicis libros commentaria, Venetiis, 1577, ad C. 4, 50, 6, f. 127, col. 3, n. 35: "(Por último, pergunta a glosa o motivo pelo qual a propriedade se transfere com base em um contrato nulo, embora não surja uma obrigação. A glosa responde: porque a obrigação não pode surgir sem ter por base um contrato válido, mas a propriedade pode ser transferida com base em um contrato putativo; pois, a bem da verdade, não se transfere pelo contrato, e sim pelo consenso fundado no contrato. Por isso a causa imediata, isto é, o consenso acerca da transmissão da propriedade é suficiente para transferir o domínio. Não obsta que a causa remota dessa mesma propriedade seja inválida ou nula)." 28 Assim, Rogerius, Enodationes questionum super Codice, in H. Kantorowicz - W. W. Buckland, Studies in the Glossators of the Roman Law - Newly discovered writings of the twelfth century, Cambridge, University Press, 1938, p. 289: "(Embora aquilo que se faz contra a lei seja inválido, nem sempre aquilo que se lhe segue é tido por ineficaz. Com efeito, se alguém for induzido dolosamente a vender, embora a venda seja inválida por força de lei, a tradição que se lhe segue transfere o domínio ao adquirente)." 29 F. E. S. S. Medina, Compra cit., pp. 117-119.
O registro é determinante para que se consiga distinguir a base do modelo de transmissão da propriedade adotado em um determinado país, bem como o momento desta transmissão. Dessa forma, a determinação do momento da transferência e seus efeitos estão diretamente relacionados ao tipo de sistema e os princípios adotados. Os sistemas de civil law de transmissão da propriedade imobiliária podem adotar como base de seu funcionamento os seguintes princípios registrais: (i) consenso/consensualidade; (ii) tradição; (iii) unidade; (iv) separação; (v) causalidade; (vi) abstração. Pelo princípio do consenso, a propriedade imóvel é transmitida pelo contrato realizado entre as partes, sem a necessidade de um registro subsequente1. Diz-se, assim, que o título é suficiente para adquirir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais2. Em contrapartida, pelo princípio da tradição, a propriedade não se transmite pela simples realização do contrato entre as partes, mas depende, na verdade, de um ato real (tradição ou registro),3 ou seja, um modo. O modo, no caso da transmissão imobiliária, nada mais é do que o registro da transferência do direito no Registro de Imóveis (ou órgão equivalente, a depender de cada país). O Registro de Imóveis com essa função constitutiva de propriedade sobre bens imóveis surgiu na Bavária, em 1347, por iniciativa do Kaiser Ludwig. Nas normas municipais de Munique (Münchner Stadtrecht), a declaração apenas se tornava válida ao ser inscrita no livro de registros; e, consequentemente, a aquisição da propriedade imobiliária também estava condicionada à inscrição ("Der Erwerber war erst Eigentümer des Grundstückes, wenn er in das Gerichtsbuch eingetragen war").4 Por sua vez, o princípio da unidade determina que exista um único negócio jurídico para a transmissão da propriedade, enquanto, opostamente, o princípio da separação estabelece a cisão entre um negócio jurídico obrigacional e outro negócio jurídico real (de disposição).5-6 Por fim, há a contraposição entre o princípio da causalidade e o da abstração. O princípio da causalidade estabelece que deve existir uma relação entre o negócio jurídico obrigacional e o real (de disposição), de forma que a invalidade ou ineficácia de um dos negócios prejudica o outro.7 Por outro lado, o princípio da abstração não exige a vinculação entre os negócios jurídicos, pouco importando, assim, a invalidade ou ineficácia de um para o outro ou podendo o negócio de disposição e o registro serem realizados de maneira independente do conteúdo anteriormente estabelecido no negócio obrigacional.8 Conclui-se, portanto, que os princípios podem se mesclar das seguintes formas9: (i) Consenso, unidade e causalidade (Portugal) (ii) Consenso, separação e causalidade (Espanha) (iii) Consenso, separação e abstração (iv) Tradição, unidade e causalidade (Brasil) (v) Tradição, separação e causalidade (vi) Tradição, separação e abstração (Alemanha). A categorização dos sistemas de transmissão da propriedade iniciou-se há muito tempo, com o estabelecimento de um quadro classificatório dos diversos sistemas existentes pelos tratadistas de Direito Imobiliário. A primeira forma de sistematização classifica os sistemas quanto a sua origem (sistema romano, sistema francês e sistema alemão). Outra forma de classificar os sistemas é quanto à sua publicidade. Segundo AFRÂNIO DE CARVALHO, existem três sistemas: o sistema consensual ou privativista, o publicista e o eclético. Resumidamente, o sistema consensual é aquele em que a transmissão dos direitos sobre o imóvel ocorre por acordo entre as partes, dispensando-se a publicidade para a operação da transmissão. O sistema publicista, por sua vez, impõe a publicidade como elemento essencial para a mutação jurídico-real dos direitos sobre o bem, no qual o modo de adquirir absorve o título. Por fim, o eclético combina o título e o modo, estabelecendo ser a publicidade registral que confere a transmissão da propriedade ou a constituição de direito real, mas antes dela o ato causal gera efeitos apenas entre as partes.10 A classificação proposta por Afrânio de Carvalho, de certo modo, assemelha-se à classificação quanto aos efeitos substantivos feitas por ORLANDO DE CARVALHO e M. V. A. SOUSA JARDIM. Segundo eles, são três os sistemas que valoram diferentemente a publicidade registral: o sistema do título, o sistema do título e do modo e o sistema do modo.11 A classificação quanto aos efeitos substantivos do sistema é a melhor em termos de identificação do funcionamento da transmissão da propriedade, sendo que as demais classificações, além de imprecisas, apresentam efeitos muitas vezes despidos de causas. Quando o sistema for somente do título, será regido pelo consenso, sem a necessidade do registro para efetivar a transferência do direito real; quando o sistema for de título e modo ou modo, será regido pela tradição, e o registro será o elemento de efetivação da transferência. Detalhadamente, o título é a causa que justifica a mutação da situação jurídico real, ou seja, o fundamento jurídico da mutação dominial. Abarca todas as razões no que toca aquisição, modificação, transferência, resguardo ou extinção de um ius in re. Pode estar materializado por meio de um negócio jurídico particular, escritural, administrativo ou mesmo em decisão judicial (mandado, alvará, formal de partilha etc.). O sistema do título é o adotado na Itália, França, Bélgica, Portugal e Luxemburgo. Em todos esses países, o título é suficiente para adquirir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais12. O assento registral tem natureza declarativa e consolida oponibilidade erga omnes perante os terceiros.13 O sistema do título e modo é sempre regido pelo princípio da tradição, o qual determina que, além da manifestação de vontade no negócio jurídico, a propriedade só se transfere por meio de um ato real (tradição ou registro)14. O princípio da tradição pode ser combinado tanto com o princípio da separação (modelo terá dois negócios jurídicos e um ato real) ou com o princípio da unidade (modelo terá um negócio jurídico e um ato real - como é o caso do modelo brasileiro).15 Nesse sistema, é necessário que exista uma relação (causalidade) entre um dos negócios realizados entre as partes (ou do único negócio) e o registro, de maneira que a transmissão da propriedade, justamente, dependa de um título prévio, seja ele obrigacional, real ou ambos, e do modo. No sistema do modo puro, exclusivo do sistema alemão, ocorre a adoção do princípio da tradição, sendo o registro elemento constitutivo da propriedade, e do princípio da separação em conjunto com o da abstração, de forma que há a separação entre o negócio jurídico obrigacional (Verpflichtungsgeschäft) e o negócio jurídico real (Verfügungsgeschäft), sendo abstrata a relação entre ambos. A propriedade se transfere com a combinação do acordo de vontade mais o registro, não sendo maculada por eventual vício do negócio jurídico obrigacional. Não há, assim, qualquer vínculo do título obrigacional com o registro. No sistema alemão, a inscrição, ainda que nula, continuará produzindo efeitos para terceiros de boa-fé. Inclusive, o proprietário inicial do imóvel cujo negócio de disposição for nulo pode pedir a correção do registro, porém, caso o bem já tenha sido transmitido para um terceiro de boa-fé, a inscrição será válida para esse terceiro que terá adquirido a propriedade. O Registro de Imóveis garante ao titular da propriedade segurança jurídica, tanto sob o ponto de vista estático, quanto sob o ponto de vista dinâmico16. A segurança jurídica estática é aquela que se preocupa com os direitos subjetivos do titular do direito real, a fim de garantir a estabilidade e a certeza do seu conteúdo.17 A segurança dinâmica, por outro lado, está voltada à proteção do terceiro de boa-fé que venha a adquirir a propriedade. O objetivo dessa segurança é que o terceiro de boa-fé possa confiar no conteúdo do registro18, sem se prejudicar posteriormente por omissão ou erro de informações. No sistema brasileiro, a segurança estática coincide com a dinâmica, e na medida em que aquela é relativizada, como consequência, esta também o é, por causa do sistema do título e modo causal brasileiro. Como o Brasil é sincrético e adota diversas exceções ao sistema registral, a exemplo dos modos originários de aquisição da propriedade, acaba por não garantir nem a segurança estática e nem a segurança dinâmica. Bibliografia: Brandelli, Leonardo, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016. de Carvalho, Afrânio, Registro de Imóveis, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1997. de Carvalho, Orlando, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012. Diniz, Maria Helena, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012. Jauernig, Othmar, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, in JuS 1994 Joost, Detlev, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in Lieb, Manfred - Noack, Ulrich - Westermann, Harm Peter (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln, 1998 Kümpel, Vitor Frederico - Borgarelli, Bruno de Ávila, Doação a Incapaz, in Revista de Direito Civil Imobiliário, 79 (2015), pp. 421-438 Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Pietrek, Marietta, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015. Sousa Jardim, Mónica Vanderleia Alves, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013. Stewing, Clemens, Geschichte des Grundbuches, in Rpfleger 97 (1989), pp. 445-447. __________ 1 F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro - uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, pp. 119-120 e D. Joost, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb/ U. Noack/ H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln, 1998, p. 1164. 2 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123. 3 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123. 4 C. STEWING, Geschichte des Grundbuches, in Rpfleger 97 (1989)., p. 446. 5 Não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata-se dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, comodato e depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123, nota 80. 6 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 124. 7 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 114. 8 O. Jauernig, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, in JuS 1994., p. 721. 9 Essas mesclas foram também sugeridas por F. E. S. MEDINA, Compra cit., p. 114. 10 Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1977, pp. 15-16. 11 Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 196-197; M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., p. 50. 12 M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., pp. 53-54. Também nesse sentido, J. Lieder, Die rechtsgeschäftliche cit., p. 264. 13 M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., pp. 54-55. 14 D. Joost, Trennungsprinzip cit., p. 1164. Também tangencialmente nesse sentido: V. F. Kümpel - B. A. Borgarelli, Doação a Incapaz, in Revista de Direito Civil Imobiliário 79 (2015), p. 425 e ss. 15 Sobre as combinações de princípios: M. Pietrek, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 41 e ss. 16 Maria Helena Diniz, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 59-60. 17 L. Brandelli, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 7. 18 L. Brandelli, Registro cit., p. 11.
De acordo com o artigo 653 do Código Civil, a procuração é a instrumentalização do mandato, ou seja, da outorga de um poder, pelo mandante, ao mandatário. O dispositivo, entretanto, é infeliz ao afirmar que "a procuração é o instrumento do mandato", dando a entender que a procuração é a materialização do mandato. A procuração, na verdade, é um negócio jurídico unilateral, caracterizado simplesmente pela outorga de poderes; o mandato é contrato (negócio jurídico bilateral), e deve regrar direitos e obrigações entre mandante e mandatário, inclusive com muito sigilo, já que os terceiros, muitas vezes, não devem saber a confidencialidade que envolve mandante e mandatário. É inegável, por outro lado, a existência de relação entre ambos os institutos, até porque a outorga de procuração pode ser anterior ou posterior ao contrato de mandato. O ideal é estabelecer, em primeiro lugar, o contrato de mandato e, logo após, a procuração como o ato unilateral que instrumentaliza o contrato inicial subjacente, que é o mandato. Figura que merece especial atenção é a da Procuração em Causa Própria. Trata-se, pois, de um poder de representação, pelo qual o outorgado exercia o ato em benefício dele mesmo1. No Brasil, o mandato em causa própria, ou in rem propriam, é o negócio jurídico principal, com o condão de transmitir ao mandatário direitos sobre a coisa objeto do mandato. O procurador atua de acordo com o seu próprio interesse, de modo que não se confunde com a representação própria e geral do ordenamento jurídico. Esse tipo de negócio tem natureza jurídica de representação na forma e, simultaneamente, alienação na essência. Logo, produz mais que efeitos de gestão de interesse alheio, uma vez que opera efeitos translativos de direitos2. A procuração, neste caso, tem caráter anômalo, uma vez que traduz verdadeiro negócio jurídico dispositivo, com efeito translativo de direitos, dispensando prestação de contas. Ademais, a cláusula "em causa própria" não admite dedução, devendo constar expressamente no negócio. Tem caráter irrevogável, irretratável, não se sujeita à prestação de contas e confere poderes gerais, no exclusivo interesse do outorgado (art. 658, CC). Neste caso em específico, o próprio instrumento da procuração constitui título hábil para transferência em favor do próprio procurador dos bens móveis ou imóveis objeto do mandato, inclusive para o registro imobiliário, desde que obedecidas as formalidades legais. Dispensa, por conseguinte, a lavratura do instrumento definitivo de transmissão da propriedade, como a escritura pública de compra e venda. Sendo assim, sujeita-se aos mesmos requisitos do negócio jurídico a que se reporta a procuração (por ex., a regra do art. 108 do CC). Inclusive, em alguns estados exige-se para a lavratura da procuração em causa própria o recolhimento do ITBI (ex: art. 254 da CN do RJ). Em contrapartida, não existe consenso quanto ao ingresso da procuração em causa própria no fólio real. Uma corrente mais tradicional rechaça essa hipótese, tendo em vista a ausência de previsão legal, além da impossibilidade de enquadramento no rol de títulos hábeis do art. 221 da LRP. Para esta corrente, a referida procuração não exime as partes de lavrar o instrumento público principal. Para outra corrente, como a procuração em causa própria veicula o próprio negócio jurídico principal, dispensa a lavratura deste. Considera-se, assim, título hábil para a transmissão dos direitos reais, podendo legitimamente ingressar no fólio real. Logo, apesar de não constar no rol do art. 167 nem do art. 221 da LRP, estaria contemplada no art. 172, por ser ato translativo de direitos reais3. A jurisprudência antiga do STF tendia para a segunda tese: "PROCURAÇÃO EM CAUSA PROPRIA. QUANDO CONSTANTE DE INSTRUMENTO PÚBLICO, EQUIVALENTE A ESCRITURA DE COMPRA E VENDA, MAS SOMENTE TRANSFERE A PROPRIEDADE IMOBILIARIA QUANDO TRANSCRITA NO REGISTRO PRÓPRIO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (RE 71816, rel. Oswaldo Trigueiro, Primeira Turma, j. 11-5-1971)". Porém, o STJ recentemente adotou outra posição (Informativo 0695/2021), fixando a tese de que "A procuração em causa própria (in rem suam) não é título translativo de propriedade." "(...) De fato, se a procuração in rem suam operasse, ela própria, transferência de direitos reais ou pessoais, estar-se-ia abreviando institutos jurídicos e burlando regras jurídicas há muito consagradas e profundamente imbricadas no sistema jurídico nacional. Em síntese, à procuração em causa própria não pode ser atribuída a função de substituir, a um só tempo, os negócios jurídicos obrigacionais (p.ex. contrato de compra e venda, doação) e dispositivos (p.ex. acordo de transmissão) indispensáveis, em regra, à transmissão dos direitos subjetivos patrimoniais, notadamente do direito de propriedade. É imperioso observar, portanto, que a procuração em causa própria, por si só, não produz cessão ou transmissão de direito pessoal ou de direito real, sendo tais afirmações frutos de equivocado romanismo que se deve evitar. De fato, como cediço, também naquele sistema jurídico, por meio da procuração in rem suam não havia verdadeira transferência de direitos (...)". (REsp 1.345.170-RS, j. 4-5-2021) Outra discussão existente nessa seara é com relação à procuração com poderes especiais e a necessidade de identificação do objeto de "poderes especiais" no caso de compra e venda de imóvel. A necessidade de se identificar o objeto na definição de "poderes especiais" foi contemplada no Enunciado nº 183 do Conselho da Justiça Federal, in verbis: "Para os casos em que o parágrafo primeiro do art. 661 exige poderes especiais, a procuração deve conter a identificação do objeto". Na sequência, o STJ, no Informativo nº 660, definiu: "A procuração que estabelece poderes para alienar "quaisquer imóveis localizados em todo o território nacional" não atende aos requisitos do art. 661, § 1º, do CC/2002, que exige poderes especiais e expressos para tal desiderato." (REsp 1.814.643-SP, rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 22-10-2019). Destaca-se, do julgado, a seguinte justificativa: "Dos termos do art. 661 do CC/2002, depreende-se que o mandato em termos gerais só confere poderes para administração de bens do mandatário. Destarte, para que sejam outorgados poderes hábeis a implicar na disposição, alienação ou agravação do patrimônio do mandante, exige-se a confecção de instrumento de procuração com poderes expressos e especiais para tanto". Por outro lado, no Estado de São Paulo, o CSM, de forma pacífica, exige que a procuração para a compra e a venda de imóveis siga a regra do art. 661, § 1º, do Código Civil: Os poderes especiais se dão no caso da alienação do imóvel, do objeto, das partes e do preço, enquanto os poderes expressos incidem na forma de pagamento e de transferência do bem (o modo como será feita esta transferência). Os termos "alienar" e "onerar" são aqui entendidos em sentido amplo, englobando também os poderes para vender, doar, hipotecar, dar em alienação fiduciária, permutar, dar em pagamento, em cessão, dentre outros. Atualmente, as NSCGJSP ressalvam um entendimento mais brando, utilizando o sentido amplo dos termos: "Entende-se por poderes especiais na procuração para os fins do art. 661, §1º, do Código Civil, a expressão "todos e quaisquer bens imóveis" ou expressão similar, sendo desnecessária a especificação do bem." (Item 131.1, Cap. XVI, Tomo II, NSCGJSP). A partir das análises realizadas, é possível perceber que o STJ vem seguindo uma corrente mais tradicional para a operabilidade da procuração, entendo que, no caso da procuração em causa própria, o instrumento, por si só, não é apto ao ingresso no fólio real e, com relação à procuração com poderes especiais para compra e venda, é necessária uma descrição minuciosa dos poderes e do bem objeto do contrato. Por outro lado, o STF e o Tribunal de Justiça de São Paulo optaram por posicionamentos mais flexíveis, visando facilitar a operacionalização dos contratos no sistema jurídico, entendendo, respectivamente, que a procuração em causa própria é título translativo da propriedade e que, para a procuração com poderes especiais para compra e venda, a expressão "todos e quaisquer bens imóveis" ou expressão similar é suficiente, sendo desnecessária a especificação do bem. Bibliografia Balbino Filho, Nicolau, Registro de Imóveis - doutrina, prática e jurisprudência, 15ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010. Godoy, Claudio Luiz Bueno, in Peluso C. (coord.), Código Civil Comentado - Doutrina e jurisprudência, 2ª ed., Barueri, Manole, 2008. Pontes De Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, vol. XLIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. __________ 1 Cf. F. C. Pontes De Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, vol. XLIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, pp. 210 e ss. 2 C. L. B. Godoy, In C. Peluso (coord.), Código Civil Comentado - Doutrina e jurisprudência, 2ª ed., Barueri, Manole, 2008, p. 641. 3 Nesse sentido: N. Balbino Filho, Registro de Imóveis - doutrina, prática e jurisprudência, 15ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p 553.
Os serviços notariais e de registro são remunerados por emolumentos fixados pelos Estados e Distrito Federal, sendo que, segundo o mandamento constitucional, cabe à lei federal estabelecer normas gerais para a fixação desses emolumentos1. O vocábulo "emolumento", derivado do latim emolumentum, refere-se à ideia de vantagem, proveito2. Em sentido genérico significa toda retribuição devida ou vantagem concedida a uma pessoa, pelo exercício de seu cargo ou ofício. Em sentido estrito, é a contribuição que se faz exigível como compensação por atos praticados pelo poder público ou pelo serventuário público, retribuindo o serviço prestado e o poder de polícia exercido. Muito se discutiu a respeito da natureza jurídica dos emolumentos. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3089/DF3, pacificou a questão. Segundo o pretório, os emolumentos têm natureza jurídica tributária, mais precisamente de taxa. Por ter natureza jurídica de tributo, aos emolumentos se aplica o regime jurídico próprio, com foco na legalidade estrita, incidindo também os princípios de direito tributário. Note-se que não se trata de tarifa, e sim de taxa. Tais figuras se distinguem, segundo o entendimento do STF, a partir do critério da compulsoriedade: as taxas, por corresponderem a tributos, são de cobrança obrigatória pelos titulares de delegação, nos termos do Verbete Sumular n. 545. Tem-se, portanto, que os emolumentos traduzem uma prestação pecuniária compulsória, cobrada como contraprestação de um serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte, em atividade vinculada por titulares de delegação4. No caso, o sujeito ativo do tributo é o respectivo Estado ou Distrito Federal, ao passo que o sujeito passivo é o usuário dos serviços de notas e registro, seja pessoa física ou jurídica. Os titulares da delegação fazem o recolhimento por substituição - "para trás" - sendo responsáveis subsidiários pelo recolhimento tributário nos atos que praticarem5. Nesse ponto, é bom recordar que taxa, em geral, consiste na retribuição do serviço público prestado ou é fixada em razão do exercício do poder de polícia6. No caso específico dos emolumentos notariais e registrais, há uma taxa sui generis ou mista, na medida em que a taxa de serviço e do poder de polícia estão agregadas à mesma figura: ela remunera simultaneamente a prestação do serviço público e a fiscalização realizada pelo Poder Judiciário. Aliás, parte do valor dos emolumentos é relativo aos repasses que notários e registradores devem cumprir, como os devidos ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, em razão justamente do exercício do poder de polícia. De modo geral, os valores dos emolumentos são fixados conforme o efetivo custo e a adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados, considerando a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro. Também é levada em consideração a classificação dos atos em comuns e específicos de cada serviço, bem como, em relação aos últimos, a dicotomia entre os atos com conteúdo financeiro e os sem conteúdo financeiro. Assim, dispõe os incisos II e III do art. 2º da lei 10.169/2000: "II - os atos comuns aos vários tipos de serviços notariais e de registro serão remunerados por emolumentos específicos, fixados para cada espécie de ato; III - os atos específicos de cada serviço serão classificados em: a) atos relativos a situações jurídicas, sem conteúdo financeiro, cujos emolumentos atenderão às peculiaridades socioeconômicas de cada região; b) atos relativos a situações jurídicas, com conteúdo financeiro, cujos emolumentos serão fixados mediante a observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais enquadrar-se-á o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro."  As tabelas estaduais discriminam a base de cálculo dos atos sujeitos à cobrança de emolumentos, sendo integradas por notas explicativas. Sendo assim, os notários e registradores devem sempre atentar à lei emolumentar específica do respectivo Estado da federação. Com efeito, a fixação do valor dos emolumentos é de competência tributária exclusiva estadual e distrital, segundo as peculiaridades regionais dos Estados ou Distrito Federal e as normas gerais estabelecidas pela União (mormente na lei 10.169/2000)7. Eventuais projetos de lei tendentes à sua modificação são de iniciativa privativa do Poder Judiciário do Estado respectivo8. Mais especificamente, a iniciativa é do Corregedor Geral da Justiça do respectivo Tribunal, a quem compete elaborar o projeto de lei, que é submetido à aprovação, por maioria, do órgão especial do tribunal. Uma vez aprovado pelo órgão especial, o projeto é remetido para a Assembleia Legislativa. Importante destacar que o referido projeto tem que ser específico, ou seja, tratar tão somente da questão emolumentar. Não pode, portanto, conter disposições de outras matérias, até para se evitar o denominado "contrabando legislativo", consistente na prática de embutir, em determinada lei, assuntos impertinentes, impróprios. Em São Paulo, a competência para fixação de emolumentos foi exercida com a publicação da lei 11.331 de 2002. A base de cálculo é fixada em tabelas anexas à referida lei, e sua atualização monetária se atrela à variação da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, que é o índice divulgado anualmente por comunicado do governo do Estado (lei estadual 6.374/1989). Analisados os aspectos gerais dos emolumentos, cabe introduzir a polêmica alteração implementada pela Lei do Agronegócio (lei 13.986/2020), editada com o mote de facilitar o financiamento e o exercício da atividade agrária, inclusive reduzindo burocracias e custas relacionadas a esse ramo. Dentre suas diversas alterações implementadas, destacam-se a criação de novos modos de garantia ao crédito agrário, a regulamentação do patrimônio de afetação rural, dentre outras. A referida lei alterou os arts. 2º e 3º da lei 10.169/2000, introduzindo regras específicas relativas aos emolumentos relacionados aos negócios agrários. Primeiramente, incluiu o § 2º ao art. 2º, dispondo que os emolumentos devidos pela constituição de direitos reais de garantia mobiliária ou imobiliária destinados ao crédito rural não poderão exceder o menor dos valores a seguir elencados: "I - 0,3% (zero vírgula três por cento) do valor do crédito concedido, incluída a taxa de fiscalização judicial, limitada a 5% (cinco por cento) do valor pago pelo usuário, vedados quaisquer outros acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência ou para associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação; e II - o valor respectivo previsto na tabela estadual definida em lei, observado que: (...)" Tais critérios configuram limites, dentre os quais deve ser aplicado o de menor valor ao caso em exame, diversamente do que estabelece a lei paulista. Note-se que o acima transcrito inciso I inclui os demais repasses cobrados a impõe um limite máximo ao valor dos emolumentos, aplicável salvo se os respectivos valores, fixados em lei nas tabelas estaduais ou distritais, forem menores. Em situações especiais, como na hipótese de dois ou mais imóveis dados em garantia pelo produtor a título de financiamento, o valor dos emolumentos será fixado pelo resultado da divisão do valor do mútuo pelo número de imóveis, limitada ao potencial econômico de cada bem9. Nos aditivos de garantia real com liberação de crédito suplementar, a cobrança do ato de averbação terá como base de cálculo o valor do crédito que exceder aquele que constava da matrícula10. Se não houver alteração do valor do financiamento, deverá ser considerado como ato sem conteúdo econômico11. No que diz respeito ao cancelamento dos atos relativos à garantia do crédito rural, a lei determinou que o valor deverá atender às tabelas estaduais, mas não poderá exceder a 0,1% do valor do crédito concedido12. Em todas as hipóteses, o valor da prenotação, das indicações e arquivamentos considerar-se-á incluído nos emolumentos devidos pelos registros das garantias reais previstas na referida lei13. Ainda, os emolumentos devidos pelo registro auxiliar de cédula ou nota de crédito e produto rural, não garantida por hipoteca ou alienação fiduciária de bens imóveis, respeitadas as tabelas estaduais, não poderão exceder 0,3% do valor do crédito concedido, incluída a taxa de fiscalização judicial, limitada a 5% do valor pago pelo usuário14. Os repasses serão desconsiderados dos emolumentos. Por fim, a Lei do Agro incluiu um inciso VI ao art. 3º da Lei dos Emolumentos, com o seguinte teor: "impor ao registro e averbação de situações jurídicas em que haja a interveniência de produtor rural quaisquer acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos e fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, ou outros que venham a ser criados." As modificações em comento causam estranhamento ao se considerar a vedação constitucional à instituição de isenções heterônomas entre os entes da federação. De fato, não cabe à União criar causas de exclusão de créditos estaduais, distritais ou municipais, o que leva ao questionamento quanto à constitucionalidade das novas disposições. Isenção é a dispensa do pagamento de tributos e só pode ser exercida por aquele ente federativo a quem a carta política conferiu a competência para instituir, cobrar e fiscalizar a exação15. Decorre sempre de lei e nunca da própria Constituição, pois esta somente define as imunidades. Há exceções relacionadas à permissão de isenções heterônomas, mas todas estão disciplinadas no texto constitucional. A própria Presidência da República havia vetado esta parte da Lei do Agronegócio justamente por invadir âmbito de competência dos Estados e do Distrito Federal, qual seja, fixar os emolumentos cobrados pelos atos notariais e registrais16. O veto presidencial, contudo, foi derrubado pelo Congresso Nacional, o que, em tese, seria permitido para matérias gerais, mas não para a temática dos emolumentos, pois o regime tributário é próprio. Ressalte-se que, a partir da EC 03/1993, a Constituição Federal passou a exigir lei específica para qualquer desoneração tributária, inclusive a isenção tributária. Deste modo, o legislador da Lei do Agro também pecou ao incluir, em uma lei que aborda assuntos diversos, como direito agrário, civil e registral, regras sobre a desoneração do produtor rural das custas judiciais ou dos emolumentos, além de disposições relativas a repasses. De fato, tais modificações deveriam advir de lei específica, vocacionada tão somente à alteração da lei 10.169/2000. Mas, em todo caso, o defeito da referida lei não se resume à forma, já que o próprio teor das alterações é problemático. Afinal, tal lei modificou uma a Lei dos Emolumentos - de caráter sabidamente genérico, até por previsão constitucional - para inserir disposições de caráter específico, pautados pela predileção a um setor específico da economia. Logo, além das irregularidades formais e de competência já aludidas, fica evidente o desrespeito do legislador ao princípio da impessoalidade e da igualdade na prestação dos serviços cartoriais. Os registradores e notários atuam em sede administrativa, o que lhes impõe a limitação a análises sobre a constitucionalidade de normas. Por esta razão, até que se provoque o controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, é prudente consultar a Corregedoria Geral da Justiça e as Corregedorias Permanentes sobre o modo de aplicação da presente desoneração heterônoma, nos moldes dos arts. 10 e 29 da lei 11.331/2002. Sejam felizes! __________ 1 Art. 236, § 2º, da CF/1998. 2 Plácido e Silva, Oscar Joseph, Vocabulário Jurídico, 22ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 519. 3 ADI n 3.826, rel min Eros Grau, j. 12.5.2010, DJE de 20.08.2010. Em tal Ação Direta de Inconstitucionalidade, se discutiu a incidência ou não do ISS (Imposto sobre Serviços) aos atos praticados por notários e registradores. Nessa ocasião, o Pretório delimitou que a atividade extrajudicial é desenvolvida em caráter privado e com intuito lucrativo, remunerada através dos emolumentos (que, segundo o Tribunal, têm natureza jurídica de taxa), de modo a incidir a tributação através do Imposto em questão. 4 Art. 1º da LEI 10.169/2000. 5 Art. 134, VI, do CTN, c.c. art. 30, XI, da lei 8.935/1994. 6 Art. 77, caput, do CTN: "Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição". 7 Arts. 6º e 77 do CTN. 8  Art. 96, II, "b", da CF/1988. 9 Art. 2º, § 2º, II, "a", da lei 10.169/2000. 10 Art. 2º, § 2º, II, "b", da lei10.169/2000. 11 Art. 2º, § 2º, II, "c", da lei 10.169/2000. 12 Art. 2º, § 2º, II, "d", da lei 10.169/2000. 13 Art. 2º, § 2º, II, "e", da lei 10.169/2000. 14 Art. 2º, § 2º, II, "e", da lei 10.169/2000. 15 At. 176 do CTN. 16 Art. 145, II, c.c. art. 236, § 2º, da CF/1988.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um órgão do Poder Judiciário que norteia e fiscaliza a atividade judiciária brasileira e visa garantir a transparência dos atos praticados por todos os seus membros1. Tal órgão foi criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que inseriu o art. 103-B na Constituição Federal de 1988. O §4º do referido artigo elenca as funções do Conselho Nacional de Justiça. Neste artigo, dar-se-á destaque àquela pertinente ao desempenho da atividade notarial e registral, qual seja a de expedir atos regulamentares ou recomendar providências. § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; Naturalmente, estando a atividade notarial e registral diretamente ligada ao Poder Judiciário (art. 236, §1º, CF/1988), ela também está vinculada à atuação do Conselho Nacional de Justiça. Essencialmente, o CNJ exerce uma função correcional sobre a atividade notarial e registral e é o responsável por emitir diversas regulamentações para a referida atividade. Como se sabe, a atividade notarial e registral tem como base legislativa nacional a Lei dos Registros Públicos - lei 6.015/1973 e a lei 8.935/1994, que regulamentam a atividade como um todo. Além disso, em nível estadual, as serventias extrajudiciais seguem as disposições das Normas de Serviço e Provimentos das Corregedorias Gerais da Justiça (estaduais) para os detalhes da prática dos atos ou para matérias não previstas nas leis federais. Essa ausência de regulamentação mais aprofundada em nível nacional faz com que surjam algumas discrepâncias entre as Normas de Serviço e Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça de cada estado, além das lacunas existentes para diversos temas. A lacuna ocorre quando não há qualquer norma regulamentando certo comportamento, ou quando a norma que existe não está em consonância com o próprio ordenamento (lacuna axiológica), gerando o vazio incômodo no sistema. Outro problema encontrado é também a criação de itens nas Normas de Serviço ou de Provimentos das Corregedorias Estaduais que conflitem com legislações nacionais já existentes, gerando antinomias no Ordenamento. Quando duas normas conflitantes incidem sobre um mesmo caso, aplicando soluções incompatíveis, temos as famosas antinomias, simples ou de segundo grau (incompatibilidade entre os critérios de aplicação). Para a resolução de antinomias aparentes, utilizam-se critérios pautados na cronologia, na especialidade e na hierarquia de normas e, caso estes não resolvam o problema, estaremos diante de uma antinomia real, para a qual os artigos 4º e 5º da LINDB preveem o uso de analogias, costumes, bem como dos princípios gerais do direito, em vista dos fins sociais aos quais a norma se dirige à exigência do bem comum. Outro problema comum existente ocorre quando as normas estaduais conflitam com Provimentos ou Resoluções do próprio CNJ, implicando antinomia administrativa. Nesta última hipótese é sempre salutar que o notário ou registrador cumpra a norma com maior grau de exigência para evitar responsabilidade na esfera administrativa. Por regra geral, o Conselho Nacional de Justiça torna-se o órgão responsável por sanar os conflitos normativos existentes entre estados ou entre estado e federação, sem, no entanto, formular normas em âmbito nacional sob pena de se imiscuir no ente delegante, que é o Poder Judiciário de cada Estado da federação. O Supremo Tribunal Federal já deixou assentado que o CNJ não atua apenas de forma subsidiária, tanto no que diz respeito a responsabilização administrativa quanto no que toca a atuação administrativa da Justiça dos Estados ou da própria Justiça Federal. A atuação do CNJ pode ser tanto subsidiária ou principaliter, cabendo ao seu plenário resolver a questão no caso concreto. Um bom exemplo da atuação do CNJ coibindo abusos das normas estaduais ocorreu no famoso caso do Divórcio Impositivo. Em 2019, a Corregedoria Geral da Justiça do estado de Pernambuco editou o Provimento 06/2019, instituindo o divórcio impositivo, que autorizava, exclusivamente, no estado de Pernambuco, qualquer dos cônjuges a pleitear, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, onde estivesse o assento de casamento, a averbação do divórcio, bastando a mera vontade da parte, independentemente de título, mediante o preenchimento do "REQUERIMENTO DE AVERBAÇÃO DO DIVÓRCIO IMPOSITIVO". Tal Provimento conflitou diretamente com as disposições do Sistema Notarial e Registral, ou seja, muito mais do que o mero desrespeito a norma específica, sendo indispensável a confecção de um título para assentamento nos Registros Públicos. Diante desse conflito entre o provimento de âmbito estadual e das leis federais, sobre matéria notarial e registral, o CNJ tomou as devidas providências, regulamentando e solucionando o conflito por meio da expedição de resolução (Resolução CNJ nº 26/2019)2. Pois bem. É evidente prevalência hierárquica do CNJ em relação à atividade notarial e registral e a importância de sua atuação principalmente sobre a normatização dos procedimentos nas serventias extrajudiciais, que carecem de legislações em nível federal para solucionar conflitos e lacunas. Agora, pergunta-se: por que discorremos e evidenciamos essa atuação do CNJ? Justamente para mostrar como o órgão desempenha função de regulamentação e correição da atividade notarial e registral de forma extremamente ativa e recorrente, mas, até o presente momento, não contém em sua composição titulares de ofícios de registro e tabelionatos. Além da matéria Notarial e Registral ser indispensável e necessária, é extremamente complexa, inclusive ante a inexistência, na maioria das grades curriculares, de disciplina obrigatória ou facultativa em nível de graduação. Esse fenômeno tem gerado não só o desconhecimento, mas confusão quanto a operabilidade, tanto das Notas quanto dos Registros, que muitas vezes são, inclusive, confundidos, embora sejam modelos com estruturação distintas. Atualmente, o Conselho Nacional de Justiça é composto por 15 membros, com mandato de 2 anos, admitida uma recondução. Dos 15 membros, 9 pertencem à Magistratura, 2 ao Ministério Público, 2 à advocacia e 2 são cidadãos comuns3. Ou seja, mesmo com a atuação direta do CNJ na atividade notarial e registral, ainda não existem membros dessas atividades (Notas e Registro) que integrem sua composição. Em 2016, foi apresentada salutar proposta no Congresso Nacional de Emenda Constitucional (PEC nº 55/2016) que, dentre outras medidas concernentes à atividade notarial e registral, previu a inserção de um representante de cada natureza de serventia notarial e de registro como membros permanentes do CNJ4. A referia proposta teve como justificativa: A experiência tem demonstrado que os procedimentos envolvendo serventias notariais e de registro têm sido inúmeros, sendo que vários deles acabam desaguando, em sede recursal, no Supremo Tribunal Federal. Muitas vezes, as decisões do Conselho Nacional de Justiça poderiam ser mais bem deliberadas se o órgão contasse, em sua composição, com representantes dessa atividade. É que os comandos administrativos dos Tribunais de Justiça nem sempre são uniformes, no território nacional, gerando situações e decisões desiguais para situações idênticas. Ademais, certas instruções emanadas desse Conselho esbarram na realidade fática que poderia ser explanada, de modo mais adequado, por Conselheiros que fossem oriundos da atividade notarial e de registro. O acréscimo, proposto por esta emenda, tornará as decisões do Conselho Nacional de Justiça mais condizentes com as diferentes realidades verificadas em todo o país e contribuirá para diminuir o número de processos encaminhado ao Supremo Tribunal Federal5 (grifou-se). A referida iniciativa está em absoluta consonância com a quantidade enorme de regras que têm sido criadas, tanto pelo plenário do CNJ como pela Corregedoria Nacional de Justiça e faz ver que a atividade vem galgando não só efetividade, como notoriedade entre os operadores do Direito. Em arremate, a proposta se mostra atualíssima, não obstante tenha sido apresentada em 2016 e certamente deixará o CNJ melhor aparelhado tanto no viés da desjudicialização da máquina judiciária quanto para atender melhor o cidadão, tanto nas Notas quanto nos Registros. Sejam felizes! __________ 1 "O CNJ é uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual". - CNJ, Sobre o CNJ - Quem somos, CNJ, s.l, s.d, disponível aqui, acesso em 23.04.2021. 2 Resolução CNJ nº 36/2019: Art. 1º Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal que: I - se abstenham de editar atos regulamentando a averbação de divórcio extrajudicial por declaração unilateral emanada de um dos cônjuges (divórcio impositivo), salvo nas hipóteses de divórcio consensual, separação consensual e extinção de união estável, previstas no art. 733 do Código de Processo Civil; II - havendo a edição de atos em sentido contrário ao disposto no inciso anterior, providenciem a sua imediata revogação. Art. 2º Esta recomendação entrará em vigor na data de sua publicação. 3 Nos termos do art. 103-B da CF, compõem o CNJ: o Presidente do Supremo Tribunal Federal; um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal; um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República; um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal. 4 "Finalmente, altera a composição do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, acrescentando um representante de cada natureza de serventia notarial e de registro, que serão indicados pela entidade nacional representativa da atividade. O CNJ é composto por apenas quinze membros, sendo nove magistrados, dois representantes do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal" - Justificativa da PEC 55/2016. 5 Justificativa da PEC 55/2016.
Em geral, as normas administrativas nacionais se voltam ao gestor público e não à Administração Pública, à sua função ou ao interesse público. Isso porque, casuisticamente, os abusos de poder e desvios de finalidade deflagram-se a partir dele. As Leis da Ação Popular (lei 4.717/65), de Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), de Inelegibilidade e de Lei do Mandado de Segurança (lei 12.016/09) caminham sob esse foco: punir o administrador improbo ou abusador. O gestor é ator principal do controle e fiscalização, malgrado o princípio da impessoalidade e o interesse público primário informem a toda administração, inclusive na atuação punitiva. Ocorre que, para sociedade e o Estado, em si, a interação dos órgãos públicos de forma coordenada, de entidades e Poderes Funcionais e a correção da mácula são muito mais salutares que a própria punição. A ausência de recolhimento dos repasses aos fundos de registro civil ao Tribunal de Justiça, ao Estado, Ministério Público, Santas Casas e Prefeituras, nos termos da lei estadual 11.331/2002; ou contribuições previdenciárias e pagamento de tributos não consumados, pesam mais do que responsabilidade do gestor. O ato de punir sem recuperar é mais lesante que recuperar o emergente e o cessante do infrator. Dar vida e utilidade aos valores a fim de transformá-lo em serviços públicos de saúde, educação, segurança pública etc. A despeito disso, não se prega a "anistia" ou esquecimento. Simplesmente se nota a situação e se questiona: não seria mais proveitoso recuperar com lucro do que um moroso processo? Cadeias não constroem um amanhã. Progresso e proteção à dignidade das pessoas, sim. A compensação e a multa; a segurança jurídica subjetiva, a proteção à confiança dos administrados é fator de evolução. A punição, por si só, mostrou-se ineficaz. A sanha de órgãos de controle em iniciar procedimentos administrativos disciplinares em decorrência de condutas ultrapassadas apenas traz benefícios aos seus persecutores. A função legislativa captou esse viés e a judiciária está guinando nessa senda: com a desjudicialização, economicidade, celeridade e consensualismo. Com a superveniência da lei 13.655/2017, abriu-se uma nova fronteira à atividade controladora, administrativa e judiciária, o que se pretende esmiuçar no presente artigo. Clique aqui e confira o artigo na íntegra.  
A união estável é a convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas, tendo, por fim, a constituição de uma família (informal). É uma situação de fato que gera efeitos jurídicos, a qual a Constituição Federal classifica como entidade familiar. A união estável é marcada pela informalidade na sua formação, além de manter-se e extinguir-se livremente - no mundo do ser, pois situa-se no plano dos fatos com efeitos jurídicos. No mesmo sentido ensina Euclides de Oliveira: "A união estável é tipicamente livre na sua formação. Independe de qualquer formalidade, bastando o fato em si, de optarem, homem e mulher, por estabelecer vida em comum. Bem o diz ANTONIO CARLOS MATHIAS COLTRO, assinalando que a união de fato se instaura 'a partir do instante em que resolvem seus integrantes iniciar a convivência como se fossem casados, renovando dia a dia tal conduta, e recheando-a de afinidade e afeição, com vistas à manutenção da intensidade. Na união estável basta o mútuo consentimento dos conviventes, que se presume do seu comportamento convergente e da contínua renovação pela permanência" (g.n)1 Seu regime jurídico disciplina-se mormente no arts. 226, §3º, da CF e 1.723 a 1.727 CC, afora as Leis Extravagantes anteriores. O comando constitucional determina ainda a facilitação da conversão da união estável em casamento; a ser concretizada através do procedimento de habilitação de casamento perante o Registro Civil de Pessoas Naturais do domicílio dos conviventes. Aliás, independentemente de sua celebração por juiz de paz, consuma-se com o registro no Livro B, após a publicação de editais na serventia extrajudicial e em jornal de circulação local ou eletrônico (art. 1.726, CC).2 Todavia, não é obrigatória a sua conversão, embora igualmente seja possível dar publicidade à relação de fato, através de sua formalização via escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas do domicílio dos conviventes e registrada no Livro-E. Para disciplinar a questão, editou-se o Provimento nº 37/2004 da Corregedoria Nacional de Justiça, em que consta o ato de registro da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais como faculdade aos companheiros. Justifica-se tal liberdade das partes por se tratar de uma relação que independe de outra publicidade para sua existência, "in verbis": "Art. 1º. É facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo". Em consequência, a eficácia de sua constituição e dissolução, nos termos art. 5º do mesmo Provimento, via registro da união estável no Livro "E" do Registro Civil, produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, sem prejudicar terceiros que não tiverem participado da escritura pública, como se aduz: "Art. 5º. O registro de união estável decorrente de escritura pública de reconhecimento ou extinção produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, não prejudicando terceiros que não tiverem participado da escritura pública" A questão que se põe no presente artigo é a seguinte: a dissolução informal da união estável, para eventual casamento de um dos companheiros com um terceiro, pressupõe alguma formalidade legal? Ou seja, constituição formal leva à ruptura formal? Pelas características da relação entre os conviventes - informalidade e consensualismo - a resposta parece que não. Ademais, nos impedimentos matrimoniais não se vislumbra restrição nesse sentido, a despeito de corrente jurisprudencial que traça entendimento divergente. Todavia, as normas excepcionais de direito devem ser interpretadas restritivamente. Inclusive, se é possível a constituição de união estável em relação à pessoa casada separada de fato (art. 1.723, § 1 º, CC), não seria lógico restringir-se com proeminência à situação de fato, diante da liberdade conferida à união formal (casamento). Esta tem natureza jurídica institucional e contratual - regime de bens. Confere ao relacionamento publicidade ampla, fidelidade e domicílio conjugal. Para se dissolver, pressupõe a lei civil a separação ou o divórcio, morte, declaração de nulidade ou anulação por decisão judicial, neste caso.3 Neste caso, para o casamento do nubente - que convivia em união estável com terceiro - deve se exigir, por prudência e segurança jurídica, somente a colheita de sua declaração de que se dissolveu anterior união estável, no próprio procedimento de habilitação para o casamento. Ao oficial de registro civil caberá, por conseguinte, anotação na Central de Registro Civil (CRC) com o fim de se extinguir a publicidade do registro no Livro E. Por não produzir efeitos perante terceiros, o presente assento não se condiciona a averbação de dissolução, devido à inexistência de pressuposto jurídico à dissolução da união estável. Finda a consensualidade entre as pessoas, termina a relação de fato. Não se pode olvidar que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II, é clara: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Assim sendo, se não há regra impediente, jamais se impede; salvo em regimes totalitários, onde inexiste Estado de Direito. A Associação dos Registradores Civis de São Paulo (ARPEN-SP) publicou enunciado orientativo nesse sentido, a saber: "Enunciado 20: Para a habilitação para o casamento não é necessário previamente cancelar ou dissolver eventual registro de união estável com outra pessoa". Nas palavras de Jean Jacques Rousseau: "Junto do estado civil vem a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente dono de si, já que obedecer apenas aos desejos é escravidão, e a obediência à lei é a liberdade". Entretanto, apesar dessas características, a união estável convive no ordenamento jurídico com os direitos reais, os quais são marcados pela observação de forma específica para que certos atos e negócios jurídicos produzam plenamente seus efeitos jurídicos. Em especial, a constituição de direitos reais sobre imóveis, oponíveis erga omnes, por força da publicidade de seu registro. Em regra, aplica-se às relações econômicas da união estável o regime da comunhão parcial de bens, salvo se existir instrumento público ou particular em sentido diverso. Através da lavratura de escritura pública declaratória de sua existência, permite-se aos companheiros optarem por qualquer regime previsto no Código Civil, ou mesclá-lo de forma livre.4 Pois bem, o registro de aquisição de bem imóvel gera efeitos jurídicos de direito real. Por isso, tem por finalidade a publicidade e a garantia de segurança jurídica estática (posição jurídica de titular de direito real com eficácia erga omnes) e dinâmica (do tráfego negocial do bem). Para atingir a esse desiderato, deve respeitar a certos princípios, como o da especialidade subjetiva. Desse modo, seu titular não será classificado apenas como companheiro ou "em união estável", em virtude da necessidade de se preencher os requisitos da especialidade subjetiva. Caso conste seu estado civil de casado, não poderá de forma concomitante receber tal qualificação subjetiva, já que o Registro de Imóveis não permite a simultaneidade de inscrições do direito de propriedade que sejam conflitantes. De modo que, ou o titular de direito é solteiro, viúvo, separado ou divorciado e mantém união estável - neste caso, sem a existência de conflitos de direito - ou seu estado civil é de casado. Frente a esse estado civil, em específico, é impossível a permanência de qualificação concomitante da existência de companheiro, sob pena de se gerar prejuízo a terceiro, salvo se reconhecida por decisão judicial. Somente sob essa perspectiva, o oficial de registro deve exigir a certidão do registro no Livro E ou da sentença judicial que assim o declare, porquanto esse ato registral é facultativo, pelo art. 1º do Provimento n. 37/2004, todavia, proibido se constar o estado civil de casado (art. 8º do Prov. 37/2004 da Corregedoria Nacional de Justiça). Ressalta-se que união estável não é estado civil, mas situação de fato que produz efeitos jurídicos, sendo esse o entendimento do atual Corregedor Geral da Justiça. Para sua inscrição no fólio real, em regra, é inexigível seu registro no Livro E do RCPN do atual ou último domicílio dos companheiros, ou ainda, seu registro no Livro n. 3 - Registro Auxiliar do Registro de Imóveis - para que conste essa condição na aquisição de direito real. Porém, é requisito para o ingresso de aquisição de direito real dentro do fólio a declaração conjunta dos companheiros, ou sentença judicial transitada em julgado, na medida que a declaração unilateral de vontade obriga somente quem a realizou, sem criar ou prejudicar direito de terceiro que dela não tenha participado. Da aplicação da separação obrigatória de bens à união estável e seus efeitos O regime patrimonial de bens que deve regular a partilha de bens dos conviventes em união estável, tanto em decorrência do término, em vida, do relacionamento, quanto em razão do óbito do companheiro, deve observar o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar, e não o vigorante no momento do partilhamento, como forma a ser preservado o ato jurídico perfeito que então se aperfeiçoara (Enunciado 346, IV Jornada de Direito Civil). Mesmo diante de contrato escrito em que se elege outro regime de bens, ou então do silêncio eloquente dos companheiros, é aplicável o regime de separação obrigatória de bens à união estável entre septuagenários, por ser imperativo, cogente, conforme entendimento do STJ. Com efeito, produz efeitos, inclusive, sucessórios, sendo inexistente direito hereditário entre os cônjuges aos bens particulares, quando houver concorrência com descendentes (art. 1.829, I, CC). Ademais, é desnecessário o consentimento do companheiro para alienação ou doação de bens particulares, e ausente a comunhão de bens, salvo na hipótese de aquestos, desde que provada a participação em sua aquisição. A determinação do regime jurídico aplicável à partilha de bens, seja pela dissolução da união estável ou óbito de um companheiro, será aquela vigente no momento da aquisição do bem. A finalidade de tal exegese é a proteção da segurança jurídica dos atos jurídicos perfeitos e dos interesses de terceiros de boa-fé. Outrossim, para produção de publicidade, o contrato de convivência ou a decisão declaratória da existência de união estável deve ser averbado no Registro de Imóveis em que registrado os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé pelo adquirente. Da dissolução da união estável sob o regime da separação obrigatória É sabido que o regime da separação obrigatória de bens é aplicável às uniões estáveis. Assim sendo, diante da idade de 60 anos do homem ou 50 anos da mulher, antes da vigência do novo Código Civil, aplicar-se-á aos companheiros esse regime, de acordo com art. 258. Neste contexto, a partilha de bens no regime de separação obrigatória, conforme previsto na Súmula 377 do STF, dependerá da comprovação do esforço comum na aquisição do bem a título oneroso pelo companheiro. Inclusive, a contribuição pode ser material ou imaterial. "nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha" (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015).  Do regime da sucessão do companheiro e do reserva da quarta parte Em decorrência da decisão do STF que julgou inconstitucional o art. 1.790 do CC, a sucessão do companheiro será feita da maneira equivalente à do cônjuge. Assim, aplica-se o regime jurídico do art. 1.829 do CC, quando o companheiro concorrer com herdeiros do de cujus, sejam exclusivos ou comuns. Por consequência, o companheiro é herdeiro necessário, concorre com descendentes aos bens particulares do de cujus, e lhe é reservada a quota de ¼ do patrimônio se concorre com descendentes comuns. Em relação a essa última hipótese, se houver concorrência híbrida, ou seja, descendentes exclusivos, será inaplicável essa reserva.5 __________ 1 (OLIVEIRA, Euclides de, "União Estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do Código Civil", 6º ed., São Paulo: Editora Método, 2003, p. 122 -124). 2 Art. 1.726. CC: "A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil". 3 Art. 1.571, CC. "A sociedade conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; II - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. § 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. § 2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial". 4 "Art. 1.725 do CC. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens". 5 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA HÍBRIDA. FILHOS COMUNS E EXCLUSIVOS. ART. 1790, INCISOS I E II, DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. APLICAÇÃO AO CÔNJUGE OU CONVIVENTE SUPÉRSTITE DO ART. 1829, INCISO I, DO CC/2002. DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INEXISTÊNCIA DE RECONHECIMENTO DA VIOLAÇÃO DA METADE DISPONÍVEL. SÚMULAS 282/STF E 7/STJ. (REsp 1.617.650-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 11/06/2019, DJe 01/07/2019).  
Introdução Locação de coisas é contrato pelo qual uma das partes se obriga a ceder a outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa remuneração (art. 565, CC). A locação é regulada pela lei 8.245/1991, com as alterações introduzidas pela lei 12.112/2009. A locação caracteriza-se como uma relação bilateral, sinalagmática, onerosa, consensual, comutativa e não solene. Outrossim, por ser direito pessoal, em regra, vincula as partes à prestação de dar coisa em troca de dar quantia pecuniária, em períodos certos ou integralmente, no início e no término da relação contratual (natureza de trato sucessivo ou de execução continuada). Ademais, pode ser ajustado por qualquer prazo, dependendo de vênia conjugal, se igual ou superior a dez anos, sob pena de o consorte não estar obrigado a observar o prazo excedente1. Tratando-se de locação de imóvel urbano, o contrato de locação poderá ser averbado na matrícula do bem de raiz, para fins de exercício do direito de preferência (art. 167, II, 16, LRP). O contrato de locação de prédio poderá, ainda, ser registrado, quando for consignada cláusula de vigência para o caso de alienação de coisa locada (art. 167, I, 3, LRP). O direito de preempção é aquele conferido ao condômino de coisa indivisa, e exercido diante de alienação onerosa da fração ideal de outro coproprietário, mediante a anulação do negócio com terceiro, o depósito do valor pago pelo adquirente e a decisão judicial adjudicatória fração cedida. A venda de fração ideal indivisa a terceiro se viabiliza, portanto, quando: a) for comunicada previamente aos demais condôminos; b) for dada preferência aos demais condôminos para aquisição da parte ideal, pelo mesmo valor que o estranho ofereceu; c) os demais condôminos não exercerem o direito de preferência dentro do prazo de 180 dias da notificação do potencial negócio. O direito de preferência é de natureza real, pois não se resolve em perdas e danos. O condômino que depositar o preço haverá para si a parte vendida. Tal não ocorrerá se este fizer contraproposta diferente da que ofereceu o estranho. O aludido direito de preferência dentro do prazo decadencial de 180 (cento e oitenta) dias. Far-se-á, neste artigo, uma breve análise de questões jurisprudenciais relacionadas às referidas cláusulas, bem como apresentar-se-á um panorama geral de seus efeitos relativos ao Registro de Imóveis. Princípio da especialidade objetiva Para que ocorra o registro ou a averbação do contrato de locação no Registro de Imóveis, por óbvio, deve haver o cumprimento do princípio da especialidade subjetiva. Nessa toada, sendo a infungibilidade um requisito para a locação do imóvel, o título somente será registrado ou averbado quando a coisa locada estiver perfeitamente descrita. Da mesma forma, no caso de locação fara fins comerciais, o prédio onde funcionará o estabelecimento também deverá estar descrito de maneira completa. Significa dizer que as construções efetivamente locadas devem estar averbadas na matrícula em momento anterior ao contrato de locação. Ademais, para as locações comerciais, o nome da parte usado no momento da assinatura do contrato deve corresponder àquele consignado em seu registro no Registro Público de Empresas Mercantis. Caso seja usado nome distinto no ato de celebração da locação, mesmo que ocorrida sua alteração em momento posterior, será impedido o seu ingresso no fólio real.REsp 475.033/SP - Oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência Já decidiu o Superior Tribunal Federal no REsp 475.033/SP, acerca da oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência: RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. REGISTRO DO CONTRATO COM CLÁUSULA DE VIGÊNCIA NO CASO DE ALIENAÇÃO. REQUISITOS. SOLIDARIEDADE EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONCERTO ENTRE OS LITISCONSORTES. REEXAME DE PROVA. 1. Não há falar em nulidade do registro do contrato de locação se o co-proprietário que o celebra detém autorização para a administração do imóvel. 2. A averbação no registro de imóveis, de que depende a oponibilidade do contrato de locação ao novo adquirente, tem como requisitos legais a "apresentação de qualquer das vias do contrato, assinado pelas partes e subscrito por duas testemunhas, bastando a coincidência entre o nome de um dos proprietários e o locador." (artigo 169, inciso III, da Lei nº 6.015/73, com redação dada pelo artigo 81 da Lei nº 8.245/91). 3. Possui legitimidade para o registro do contrato de locação com cláusula de vigência em caso de alienação não apenas o proprietário locador, mas também e, sobretudo, o próprio locatário, em cujo interesse dispôs o artigo 81 da Lei do Inquilinato. 4. A inexistência de concerto entre os litisconsortes, no intuito de lesar a parte contrária, a excluir a condenação solidária nos ônus da sucumbência, insula-se, por inteiro, no universo fático-probatório, o que impede o seu conhecimento, por força do Enunciado nº 7 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça. 5. Recurso parcialmente conhecido e improvido. (REsp 475.033/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2003, DJ 09/02/2004, p. 215). Do julgado, portanto, pode-se afirmar o seguinte sobre a oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência a terceiros: A oponibilidade depende do registro/averbação de uma das vias contratuais de locação na matrícula do imóvel pelo interessado (locador ou locatário); No caso de cláusula de vigência, é necessário que ela tenha sido registrada precedentemente à alienação, em pelo menos 30 dias; Em caso de mais de um proprietário do imóvel, a celebração da cláusula será válida quando realizada com todos eles ou com o coproprietário que detém autorização para administrar o bem; Esses proprietários serão solidariamente responsáveis pela quebra da cláusula de vigência, não podendo se esquivar da responsabilidade por simples alegação de inexistência de acordo entre eles para o estabelecimento da cláusula.   Nulidade da locação por dupla modalidade de garantia É causa de nulidade a averbação de contrato de locação em imóvel quando presente dupla modalidade de garantia, sob fundamento da Lei n. 8.245/1991, in verbis: Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia. IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação. Há corrente jurisprudencial reconhecedora da primazia da primeira garantia diante da presença de nulidade pelo vício da dupla garantia que, no entanto, é inaplicável em sede administrativa. Nesse sentido: Registro de Imóveis - Averbação de caução constituída sobre imóvel em locação - Contrato de locação com dupla garantia (fiança e caução real) - Inadmissibilidade à luz do disposto no art. 37, p.u., da Lei nº 8.245/1991 - Nulidade da caução, como garantia subseqüente à fiança - Inviabilidade da averbação correspondente - Cancelamento que se determina, com amparo no poder de revisão hierárquica da Corregedoria Geral da Justiça. CGJSP - Processo: 34.906/2005 CGJSP - Processo/LOCALIDADE: Guarulhos DATA JULGAMENTO: 09/08/2006 Relator: Álvaro Luiz Valery Mirra. Importante, destacar, contudo, que a dupla garantia não impede a averbação do contrato para fins de cláusula de vigência: REGISTRO DE IMÓVEIS - Contrato de locação predial urbana com dupla garantia vedada pelo artigo 37, parágrafo único, da Lei 8.245/91 -Nulidade da garantia que, embora se constitua em obstáculo à averbação desta, não impede, porém, a averbação do contrato locatício para fins de exercício do direito de preferência - Recurso não provido (CGJSP Parecer 303/2008-E - Processo CG 2008/32518, rel. Walter Rocha Barrone, j. 24.09.2008). Natureza da caução locatícia Ao locador, a Lei do Inquilinato confere o direito de exigir uma das modalidades de garantia prevista, dentre elas a caução locatícia. Sua natureza jurídica é de garantia real anômala. A característica "real" se deve, logicamente, ao fato de recair sobre um bem. Já a anomalia ocorre visto que essa garantia ingressa no fólio registral por meio de ato de averbação (e não de registro, como de costume) e pela desnecessidade de lavratura de instrumento notarial (escritura pública) para a constituição do gravame. Em relação ao regime jurídico, aplica-se à caução locatícia as mesmas regras da hipoteca no que diz respeito os seus princípios gerais, como o da causalidade (vinculação da garantia a obrigação principal), indivisibilidade (a garantia não se reduzirá, ainda que a obrigação principal tenha sido parcialmente paga), vedação ao pacto comissório, e o direito à excussão, mediante o procedimento adequado, com realização de hasta pública. Nesse sentido: AI n° 2171847-51.2014.8.26.0000, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Marcos Ramos, j. em 12/11/2014 e AI n° 0004713-39.1999.8.26.0362, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Andrade Neto, j. em 12/8/2015). A caução locatícia gera efeito de sequela, isto é, o direito do credor persegue o bem em caso de alienação do imóvel, o qual é essencial aos direitos de garantia, mesmo que previsto também o direito ao locador de pedir sua substituição presente estas circunstâncias; bem como a impossibilidade de o credor de segunda caução ou de créditos quirografários de executar a garantia antes do vencimento da primeira, caso se trate de direito real (direito de preferência). Cumpre salientar, neste ponto, que é incabível a qualificação negativa pelo oficial de registro se o contrato de locação, cuja caução é prevista, omitir-se de constar que se trata de direito de garantia de segundo grau, frente à de primeiro inscrita na matrícula. Com efeito, os direitos reais revestem-se, quando registrados, de publicidade erga omnes, assim, o credor da caução não poderá alegar ignorância do gravame, diante da presunção que todos têm ciência dos fatos lá registrados (art. 54 da lei 13.097). No entanto, se houver menção no título da segunda garantia de que seria de primeiro grau, insta o oficial obstar o seu ingresso no fólio real, uma vez que haverá contradição entre o que está previsto no instrumento do constante no fólio real. Eficácia da cláusula de vigência Em regra, quando o imóvel for alienado na vigência da locação, a lei 8.245/1991, em seu art. 8º, confere ao comprador direito de denunciá-lo no prazo de noventa dias, e o mesmo para desocupação do imóvel, contados da data do registro. Contudo, se o promissário comprador e ao promissário cessionário não fizerem a referida denúncia, traspassado o prazo para o exercício de direito em comento, presumir-se-á que aceitou a manutenção da locação. Nesse caso, é desnecessário o cancelamento de eventual registro anterior do contrato realizado entre locatário e antigo proprietário, pois sucede de forma automática com a decorrência do prazo da locação. Nessa toada, havendo a manutenção da locação pelo comprador, a prorrogação de seus efeitos por prazo indeterminado, ou, o contrato com prazo determinado, dependerá de novo registro. Além disso, como se sabe, a locação poderá conter o prazo certo e a previsão da cláusula de vigência em caso de alienação, registrada na matrícula do imóvel. Caso em que o comprador não poderá exercer o direito e deverá respeitar o término da locação. Com relação a esta cláusula, importante elucidar alguns pontos. É possível a convalidação das cláusulas do contrato original e seus aditamentos em ato futuro, sendo exigível deste último prova da representatividade da pessoa jurídica pelo seu signatário e não de todos os representantes dos atos anteriores. Contudo, pressupõe-se o reconhecimento da firma da assinatura no último ato. Assim, não se estende a exceção prevista aos órgãos da Administração direta, autárquica e fundacional, prevista no decreto estadual 52.658/2008, às serventias extrajudiciais, geridas em caráter privado por delegação. Não é possível, v.g., o reconhecimento pelo oficial da expiração do prazo prescricional, salvo se a parte apresentar ata notarial (CPC, art. 284, c.c. LRP art. 252, II). Isso é efeito do sistema adotado para transmissão de propriedade no Código Civil de 1916, herdado pelo vigente. Trata-se do sistema do título e modo, em que a transmissão opera efeitos erga omnes, embora haja presunção relativa, admitindo-se assim prova em contrário (LRP, arts. 216 e 252). Em verdade, o ato de registro não se desatrela do título e, assim, sujeita-se às intempéries do ato volitivo. As partes, em um contrato, devem concordar com seus termos, bem como para cancelá-lo, salvo o cumprimento de decisão judicial com trânsito em julgado, prova da quitação ou aquiescência declarada pelas partes, além de documento oficial comprobatório. É o que se aduz da jurisprudência administrativa igualmente, a saber: REGISTRO DE IMÓVEIS - Pedido de cancelamento de cláusulas restritivas - Necessidade de prova de quitação do preço, condição resolutiva - Impossibilidade de presunção de prescrição do débito - Incidência, ademais, do disposto no art. 250, incisos I, II e III, da Lei de Registros Públicos - Pedido de Providências improcedente - Recurso não provido (proc. n. 1019022-86.2016.8.26.0577, j. 01.12.2017). REGISTRO DE IMÓVEIS - Hipoteca - Pedido de averbação de cancelamento negado - Ausência de prova de quitação da obrigação principal ou da anuência do credor hipotecário - Impossibilidade do reconhecimento administrativo da alegação de prescrição da pretensão à cobrança da dívida garantida pela hipoteca - Necessidade de discussão da matéria na esfera jurisdicional - Recusa acertada da averbação pretendida - Recurso desprovido (proc. n. 1018185-70.2017.8.26.0100, j. 20.10.2017). Notificação A notificação deve ser, em regra, judicial ou extrajudicial, de modo expresso e com comprovante de recebimento. Exige-se-lhe para o fim de demonstrar a inequívoca ciência, por parte dos outros condôminos, da intenção de venda. A doutrina pátria aduz: "Para que um condômino venda sua parte ideal a estranhos sobre coisa indivisível, deve oferecê-la aos demais condôminos para que possam livremente exercer seu direito de preferência a essa compra. Por tal razão, deve ser dado conhecimento dessa venda por instrumento que liberará o condômino vendedor de responsabilidade. Esse instrumento pode ser uma interpelação judicial ou extrajudicial, por Cartório de Títulos e Documentos ou por carta protocolada, ou com ciência de recebimento em sua cópia, sempre provando que esse conhecimento foi dado".2 É possível, ainda que pelo art. 107 do CC/2002, que o conhecimento aos outros consortes se dê por meios informais, uma vez que a lei não prevê forma específica para tal ato. Todavia, adverte-se que é exigida a comprovação da ciência inequívoca mediante outra prova que não seja a documental. Neste caso, pode-se utilizar de analogia com a Lei do Inquilinato, conforme a redação do dispositivo legal: Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca. (Sem grifo no original) Ora, por que não se abranger nestas um instrumento de segurança jurídica e presunção iuris tantum de veracidade? Primeiramente, a falta de notificação gera anulabilidade com prazo preclusivo. O direito do adquirente fica sob o regime de uma condição resolutiva. Enquanto não ocorrer a manifestação da preferência, o terceiro é tido como adquirente do bem e poderá exercer plenamente o domínio. Por outro lado, o termo a quo é momento da publicidade decorrente do registro imobiliário. "O prazo de seis meses é prazo preclusivo", diz Pontes de Miranda. "Dentro dele há de ser exercido o direito de preferência, depositando o preço (não basta a oferta de depósito).3 Ademais, a escritura pública, lavrada por notário, é documento dotado de fé pública, com eficácia de prova plena das informações que nela contidas, nos termos do art. 215, caput, do CC/2002, mormente em relação à manifestação de vontade das partes e dos eventuais intervenientes (art. 215, § 1º, IV, do CC/2002). Essa formalidade, será exigida na compra e venda de imóveis, em regra (CC, art. 108), sendo requisito formal ad soleminitratem E a transmissão da propriedade imobiliária, pressupõe o registro do título translativo no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.245 do CC/2002, c/c o art. 172 da Lei n. 6.015/1973), ocasião em que produzirá efeitos erga omnes, constitutivos, eficaz perante terceiros, notadamente em virtude do atributo da publicidade real. Se não registrado o título, a avença produz efeitos apenas inter partes; ao passo que, realizado o registro, tais efeitos atingem toda a sociedade. Compartilham desse entendimento Nelson Rosenvald e outros: "Sendo os direitos reais oponíveis em caráter erga omnes, há a necessidade de cientificar a sociedade sobre a situação jurídica dos bens imóveis, tornando conhecidas por quem tenha interesse toda e qualquer mutação no cadastro imobiliário. A gênese da publicidade se dá pelo ato de registro ou averbação, em que surge em potência a função qualificadora dos títulos apresentados ao oficial. A ausência de registro produz duas ordens de consequências: (a) entre as partes o título se resume a gerar eficácia obrigacional; (b) perante terceiros: não se pode exigir o conhecimento daquilo que não se pública".4 Assim, omissa a comunicação prévia aos demais condôminos, pelo alienante, de sua fração ideal do imóvel comum indiviso ao terceiro estranho à relação condominial, esta será suprida  com o registro da escritura pública de compra e venda, iniciando-se, deste ponto, o transcurso do prazo decadencial do direito de preferência, porquanto presumida a ciência do negócio, nos limites das informações constantes do título levado a registro. O preço do negócio será justamente aquele convencionado na escritura pública outorgada pelo condômino-alienante e terceiro, porquanto é dotada de fé pública e presunção de veracidade das informações nela contidas. Esse raciocínio se aplica às locações com cláusulas de preferência e vigência, posto que são direitos pessoais e, desta forma, menores do que o direito de preferência do condômino, que inclusive prevalece. A autonomia das partes na alienação de bem locado com vigência e preferência na matrícula permite que contratem livremente vendedor-locador e terceiro. Não tem sentido outra conclusão, senão apresente, diante da oponibilidade erga omnes. O locatário, mesmo com prazo indeterminado somente poderá se manifestar no prazo decadencial. Ressalte-se que a cláusula de vigência pressupõe contrato de locação com prazo determinado. Terminado esse prazo, a referida obrigação ao adquirente se esvai. Não existe direito real menor permanente, salvo a propriedade. A enfiteuse, inclusive, foi revogada. Não havendo de se exigir ad eternum. Cabe ao registrador o cancelamento, mediante requerimento do novo titular, diante da eficácia ex vi lege da alienação do imóvel, quando encerrado o prazo. Cancelamento das cláusulas O cancelamento "ex officio" é possível, diante do término do prazo estabelecido, sem que ocorra a sua prorrogação automática. Nas demais hipóteses de cancelamento que não sejam o transcorrer do prazo, em geral, é condição para o ato o requerimento prenotado com documento oficial comprobatório, com uma ata, ou termo, assinado por ambas as partes, com firma reconhecida (LRP, arts. 221, II, c.c.art. 250, inc. II e III). Nesse sentido, é o posicionamento da CGJ/SP:  REGISTRO DE IMÓVEIS. DÚVIDA. REGISTRO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE BEM IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE CLÁUSULA DE VIGÊNCIA. INADMISSIBILIDADE. ART. 167, I, 3, DA LEI Nº 6.015/73. EVENTUAL POSSIBILIDADE DE AVERBAÇÃO, A FIM DE ASSEGURAR O DIREITO DE PREFERÊNCIA DA LOCATÁRIA, NOS TERMOS DO ART. 167, II, 16, DA LEI Nº 6.015/73. NECESSIDADE, ENTRETANTO, DE PRÉVIO CANCELAMENTO DO REGISTRO DE ANTERIOR CONTRATO DE LOCAÇÃO CONSTANTE DA MATRÍCULA DO IMÓVEL. ELEMENTOS SUFICIENTES À AUTORIZÁ-LO, O QUE, CONTUDO, DEVERÁ SER PROVIDENCIADO EM REQUERIMENTO AUTÔNOMO AO REGISTRADOR E NÃO NESTES AUTOS. RECURSO NÃO PROVIDO (Apelação n° 0012529-40.2013.8.26.0602, rel. HAMILTON ELLIOT AKEL, j. 7.07.2014). Com efeito, é pressuposto a novos atos de registro, o prévio cancelamento do contrato de locação registrado na matrícula do imóvel, onde figura registro de cláusula de vigência e/ou averbação de preferência. Isso porque, de acordo com o art. 252, da lei 6.015/73, o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais, ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido. __________ 1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: contratos e atos unilaterais - vol. 3. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2020, p. 326-329. 2 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: contratos típicos e atípicos, volume 4. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, livro digital. 3 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 342-343. 4 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil -volume único, Salvador: JusPodivm, 2017.
Em 13/01/2021 entrou em vigor a lei 14.119/21, que institui a Política nacional de pagamentos por serviços ambientais, definindo conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). A Constituição Federal, no art. 225, caput, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Quanto ao Poder Público vigora o princípio da intervenção estatal obrigatória, e para a coletividade o princípio da participação, do compartilhamento. Entre os instrumentos adotados para a coletividade contribuir de forma participativa para a preservação ambiental, a sanção punitiva sempre foi empregada. Em matéria ambiental, além de eventuais sanções administrativas e penais, incide, em caso de dano ambiental, a responsabilização civil (CF, art. 225 § 3º), sendo aplicável o princípio do poluidor-pagador (art. 4º inciso VII da lei 6.938/81). Todavia, o mero sancionamento punitivo não conseguiu frear o avanço da degradação ambiental. Adotou-se, então, um caminho virtuoso - a educação ambiental. A Carta Constitucional, no art. 225, § 1º inciso VI, impõe ao Poder Público, como política pública obrigatória, "promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente". Em razão disso foi editada a Lei da Política Nacional da Educação Ambiental - lei 9.795/99 - cujo art. 3º caput e inciso I dispõem que, como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente. Todavia, a transformação da sociedade para um pensar e agir ecológicos, não é tão simples e rápido. O "pensamento e postura ecológicos" serão progressivamente atingidos com políticas públicas adequadas e eficientes, somando-se a conscientização e o engajamento social, posto ser necessária a participação ativa da sociedade na construção de um viver sustentável. Na edificação do Estado Socioambiental de Direito, é imprescindível a "democracia ambiental participativa" e seu marco axiológico fincado no "princípio constitucional da solidariedade"1. Além desses dois, um terceiro instrumento veio juntar-se para alavancar a participação da sociedade - a sanção premial (o direito premial). A punição, diz Terence Dorneles Trennepohl, "através da aplicação da sanção negativa, representando castigo e represália, mostra-se, no mundo contemporâneo, em flagrante decadência, seja pela falência das instituições punitivas, seja pela ineficácia da tão pretendida ressocialização, pelas vias da prisão ou das penas restritivas de direito"2. Assim, com inspiração nos ares de liberdade e no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, busca-se, cada vez mais, diminuir a intervenção estatal, fazendo prevalecer medidas de prevenção, isto porque, "quanto mais de previne, tanto menos se reprime"3.  É nesse contexto que o direito premial, o incentivo e o prêmio para regular e incentivar condutas, vem sendo cada vez mais aplicado. Há, "no momento legislativo atual, uma forte tendência de moralização, que não se apresenta sob a forma de leis punitivas, mas frequenta o cenário da legislação sob as formas de recompensa às condutas racionais e consoantes à ordem e à moral, ao justo e ao certo"4. Maurício Benevides Filho5 ilustra que a obra de Jeremy Bentham (Teoria das Penas e das Recompensas), publicada no século XIX, é considerada marco do direito premial, pois ali encontramos a primeira sistematização da técnica motivacional positiva de indução a comportamentos humanos. Depois, Norberto Bobbio editou trabalho em 1977, denominado Dalla Struttura alla Funzione, com o que passou a ser considerado sucessor de Bentham quanto ao direito premial6. Assim, a recompensa premial é uma constante no Estado intervencionista, isto porque a coação e punição não mais representam o único meio de orientação social. Inclusive, Norberto Bobbio distinguia ordenamento repressivo e ordenamento promocional. Para o primeiro, "existiam três formas de impedir uma ação: a) torná-la impossível; b) torná-la difícil; e c) torná-la desvantajosa". Já no segundo caso, de um ordenamento promocional, "as formas de impedir a ação eram: a) torná-la necessária; b) torná-la fácil: e c) torná-la vantajosa"7. E é neste último que se encaixa a instrumentação econômico-financeira positiva ambiental. Como assinala Gabriel Wedy, "De fato, o referido princípio invoca a regulação por indução e estímulo a práticas sustentáveis, normalmente mais eficientes do que as tradicionais medidas repressivas e punitivas, de "comando-e-controle", que ensejam a atuação estatal para depois de cometida a infração ambiental". E acrescenta: "O princípio do protetor-recebedor, importante destacar, envolve o mecanismo que se convencionou denominar de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), o qual "consiste no aporte de incentivos e recursos, de origem pública e/ou privada, para aqueles que garantem a produção e a oferta do serviço e/ou produto obtido direta ou indiretamente da natureza"8. Portanto, no pagamento por serviços ambientais (PSA), um agente financiador, público ou privado, remunera quem preserva áreas naturais próprias em benefício da sociedade. Eduardo Coral Viegas traz um exemplo internacional, que é o abastecimento de água na cidade de Nova York9.  No Brasil, entre outras situações previstas, a lei 12.651/2012 -  Código Florestal -, tratou da temática no artigo 41, elencando como linha de ação, dentre outras, o pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como a conservação das águas e dos serviços hídricos10. Há que se lembrar, ainda, do princípio do usuário-pagador, expresso no art. 4º inciso VII da lei 6.938/81, que dispõe que todo aquele que utiliza recursos ambientais com fins econômicos deve contribuir em razão da utilização de um bem difuso, de uso comum do povo. Ou seja, o princípio do usuário-pagador não ostenta caráter punitivo, pois, independentemente da legalidade do comportamento do usuário, ele pode ser cobrado pelo mero uso do bem ambiental. Assim, pode-se dizer que "PSA é um instrumento baseado no mercado para financiamento da conservação que considera os princípios do usuário-pagador e provedor-recebedor, pelos quais aqueles que se beneficiam dos serviços ambientais (como os usuários de água limpa) devem pagar por eles, e aqueles que contribuem para a geração desses serviços (como os usuários de terra a montante) devem ser compensados por proporcioná-los. Assim, essa ferramenta busca conservar e promover o manejo adequado por meio de atividades de proteção e de uso sustentável. Para o PSA funcionar deve haver provedores, pessoas engajadas capazes de preservar e manter o serviço ambiental. E também os compradores, pessoas interessadas que irão se beneficiar da proteção de tal serviço, como ONGs, empresas privadas, poder público, pessoas físicas, entre outros. Vale ressaltar que essa é uma prática voluntária, e também pode ser adotada por empresas que visem melhorar sua imagem ou mesmo por pessoas que queiram mitigar os impactos de suas ações cotidianas"11. No que toca aos imóveis privados, regidos, portanto, pelo Código Civil, notadamente pelos artigos 1.228 e seguintes, foram escolhidos para provimento de serviços ambientais, três categorias: a) os situados em zonas rurais inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo dispensados da inscrição as terras indígenas, territórios quilombolas e outros ocupados por populações tradicionais; b) os situados em zona urbana que estejam em consonância com o Plano Diretor do município (devidamente edificados e adequadamente utilizados); c) as reservas particulares do patrimônio natural (RPPNS) e as áreas das zonas de amortecimento e dos corredores ecológicos cobertas por vegetação nativa. Nestas três categorias de imóveis privados, eleitas para pagamento por serviços ambientais, mediante, inclusive, a utilização de recursos públicos, dando-se preferência para áreas localizadas em bacias hidrográficas consideradas essenciais para o abastecimento público de água, abrangendo ainda em áreas prioritárias para conservação da diversidade biológica em processo de desertificação ou avançada fragmentação. Uma das questões deveras interessantes, ainda em âmbito privado, é o contrato de pagamento por serviços ambientais. Uma das discussões a ser travada pela doutrina e pela práxis será a incidência ou não do art. 108 do Código Civil que impõe escritura pública para todos os negócios que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo vigente no país. Tal questão não foi pensada no texto legal tendo sido cogentes três naturezas de cláusulas: 1) direitos e obrigações do provedor; 2) direitos e obrigações do pagador; 3) as condições de acesso, pelo poder público, a área objeto do contrato, podendo ser instituída nos imóveis rurais servidão ambiental. Como última observação relevante, está o acréscimo ao rol taxativo dos atos de registro do art. 167 da Lei dos Registros Públicos. Passa a estabelecer o item 45, como um ato de registro "do contrato de pagamento por serviços ambientais, quando este estipular obrigações de natureza propter rem". Como é sabido, os atos de registro, ao contrário dos atos de averbação, são aqueles essenciais e que conferem posição jurídico-real, estando enumerados de forma fechada no inciso I do art. 167 da LRP, porém não de forma exauriente.12 O contrato de pagamento de serviços ambientais, ao estipular obrigações de natureza propter rem, estabelece um ônus real sobre o imóvel equiparável a servidões prediais, merecendo um estudo a parte que refoge a alçada da presente pesquisa. Conclui-se o presente trabalho apresentando apenas uma primeira reflexão sobre a lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021, primeira de outras que virão neste queridíssimo Registralhas. Sejam felizes! __________ 1 SARLET, Ingo, e FENSTERSEIFER, Tiago, Direito Constitucional Ambiental, RT, 3ª edição, 2013, p. 56. 2 Terence Dorneles Trennepohl, Incentivos Fiscais no Direito Ambiental, São Paulo, Editora Saraiva, 2011, 2ª edição, p. 45. 3 idem, p. 46. 4 Idem, p. 46. 5 Maurício Benevides Filho, A Sanção Premial no Direito, Brasília, Brasília Jurídica, 1999, p. 56. 6 Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 47 destaca que "O autor italiano, em passagens de sua obra, ressalta a importância dos incentivos, subsídios e prêmios, onde o Estado não mais age como mero partícipe das relações sociais, como se passava no L'État Gendarme, mas sim, dada a intensa participação atual, em vista do Welfare State, intervencionista, portanto, urge sua intensa presença, em quase todos os setores da sociedade". Ainda complementa que o autor italiano " ... destaca as sanções positivas em retributivas e indenizatórias. As primeiras sintetizam as condutas pautadas no que é desejado socialmente; as segundas são compensações pelo dispêndio de esforços na busca de vantagens para sua comunidade". E Maurício Benevides Filho, obra citada, p. 82, ressalta que Norberto Bobbio ainda previa "sanções positivas preventivas e sucessivas", sendo as primeiras "anteriores à ação, por exemplo, isenções", enquanto "as segundas, posteriores, recompensas, meritórias". 7 Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 132. 8 Wedy, Gabriel, "Os princípios do poluidor-pagador, do protetor-recebedor e do usuário-pagador", CONJUR, 12.10.2019 - o articulista, como exemplo, refere que em recente estudo, a World Resource Institute (WRI) concluiu que só no Brasil as florestas em terras indígenas podem "render" em serviços prestados até um trilhão de dólares nos próximos 20 anos (cerca de 3,2 trilhões de reais), o que equivale a quase metade do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2015. São os chamados "serviços ecossistêmicos", que não aparecem nas contas públicas, mas geram resultados positivos relativos à produção e conservação da água, retenção de nutrientes no solo, regulação da temperatura e chuvas, polinização, recreação e turismo (DING, Helen; VEIT, Peter. Protecting Indigenous Land Rights Makes Good Economic Sense.World Resource Institute (WRI). Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2019). 9 VIEGAS, Eduardo Coral, Pagamento por serviços ambientais é importante instrumento de conservação, CONJUR, 17.09.2016: "No plano internacional, um modelo bastante referido na literatura é o caso de Nova York. A bacia hidrográfica dessa grande cidade americana atende por dia a demanda de aproximadamente 9 milhões de pessoas. Por sua vez, a prefeitura nova-iorquina investe há longos anos em propriedades rurais situadas a até 200km de distância de sua sede. Os resultados são surpreendentes tanto em termos do aumento de volume de água quanto de sua qualidade. Atualmente, os moradores e visitantes de Nova York podem tomar água da torneira, sendo que antes ela passa apenas por processo de filtragem e adição de cloro e flúor. Não há outras formas de tratamento. Assim, um investimento na área rural, inclusive em outros municípios, reflete diretamente no ambiente urbano, que é densamente povoado e grande demandante de água de qualidade". 10 Art. 41. É o Poder Executivo federal autorizado a instituir, sem prejuízo do cumprimento da legislação ambiental, programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente, bem como para adoção de tecnologias e boas práticas que conciliem a produtividade agropecuária e florestal, com redução dos impactos ambientais, como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, observados sempre os critérios de progressividade, abrangendo as seguintes categorias e linhas de ação:  I - pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como, isolada ou cumulativamente: a) o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono; b) a conservação da beleza cênica natural; c) a conservação da biodiversidade; d) a conservação das águas e dos serviços hídricos; e) a regulação do clima; f) a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; g) a conservação e o melhoramento do solo; h) a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito; (...) § 5º O programa relativo a serviços ambientais previsto no inciso I do caput deste artigo deverá integrar os sistemas em âmbito nacional e estadual, objetivando a criação de um mercado de serviços ambientais. (...) § 7º O pagamento ou incentivo a serviços ambientais a que se refere o inciso I deste artigo serão prioritariamente destinados aos agricultores familiares como definidos no inciso V do art. 3º desta Lei.  11 Nesse sentido "O que é Pagamento por Serviços Ambientais e como funciona?". 12 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, página, 533-538, São Paulo, YK Editora, 2019.
A prefeitura municipal de São Paulo e o Governo Estadual extinguiram o direito à gratuidade no transporte coletivo para idosos na faixa entre 60 anos e 65 anos, medida que passa a valer a partir de 1º de janeiro de 2021. A medida, no Estado de São Paulo, veio por meio do decreto estadual  65.414/20. A lei municipal sancionada é a de nº 17.542, de 22 de dezembro de 2020, já em vigor, que, entre outras medidas, revoga a lei 15.912, de 16 de dezembro de 2013. Somente continuarão a viajar gratuitamente em ônibus, trens e metrô, além dos ônibus intermunicipais da Região Metropolitana, os idosos acima de 65 anos, conforme garante a Constituição Federal e o Estatuto do Idoso, cujo art. 39, § 3º, dispõe que "No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo". A questão a ser debatida é a eventual inconstitucionalidade da medida. Muitos irão invocar que esse direito é garantido apenas aos idosos acima de 65 anos, e que entre 60 e 65 anos, a concessão da gratuidade está no âmbito da discricionariedade administrativa. Mas é possível contrapor esse pensamento. Vejamos: O STJ, no REsp 1.192.577/RS, entendeu que a condição de vulnerabilidade dos idosos é reconhecida na própria CF, ao dispor no art. 230 que "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Mais que isso, tem reconhecido aos idosos a condição de hipervulneráveis (REsp 1.793.332/MG). Como o direito à vida é um direito fundamental, o direito ao envelhecimento e sua proteção1, que é uma extensão do direito à vida e estão intrinsecamente ligados, tem a natureza de direito social (por força do Estatuto do Idoso) e fundamental (o direito à vida, ao idoso, abarca o envelhecer com dignidade). Inclusive a Constituição Federal, no art. 3º inciso IV, ao garantir como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito relativo à idade, autoriza a equiparação do direito ao envelhecimento digno aos direitos formalmente fundamentais por seu conteúdo e relevância - trata-se, pois, de direito fundamental material. Além disso, o art. 10 § 1º inciso I garante ao idoso o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários. Trata-se, mais amplamente, da liberdade pública relativa ao direito de locomoção, ou seja, garantia de ir e vir sem qualquer restrição de caráter urbanístico, e que engloba o direito de frequentar ambientes públicos fechados (direito de acesso arquitetônico), de percorrer ruas, praças e avenidas (direito de trânsito) e de utilizar-se, nesse trajeto, de meios de transporte público financeira e ergonomicamente acessíveis (direito a transporte acessível), que muitas vezes é restringido ou impedido em virtude da inadequação arquitetônica dos prédios, de concepções urbanísticas falhas e de desenho industrial impróprio dos veículos de transporte que circulam pela malha viária urbana, e ainda pelo valor da tarifa. Na ADI 3.768-4/DF, o ministro Carlos Britto, ao votar pela constitucionalidade do art. 39 do Estatuto do Idoso, acentuou "o advento de um novo constitucionalismo fraternal ou, como dizem os italianos, 'altruístico', com ações distributivistas e solidárias". Segundo o ministro, "não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados". Falta ainda um olhar para o Estatuto da Pessoa com Deficiência - lei 13.146/15, que define, no art. 3º inciso IX, "pessoa com mobilidade reduzida", entendendo assim toda aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo os idosos. Além disso, o art. 46 garante que o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso, e o art. 53 assegura o direito à acessibilidade à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, para que possa viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social. Diante disso, podemos concluir que o idoso tem direito fundamental à vida com dignidade, a envelhecer em estado de bem-estar, direito de locomoção, acesso arquitetônico, trânsito e transporte acessível, e por se tratar de pessoa com mobilidade reduzida, tem incorporado os direitos concedidos às pessoas com deficiência. E assim, como a Carta de 1988 institui o Estado Social Democrático de Direito, reconhecendo os direitos sociais como direitos fundamentais, não pode o Estado extirpar direitos fundamentais já conquistados, ou seja, proíbe-se a diminuição de proteção aos bens jurídicos fundamentais já alcançados e implementados em determinada sociedade. Logo, se o Estado diminui, restringe ou extingue direitos fundamentais, isso viola o princípio da proibição do retrocesso, violando-se o próprio Texto Constitucional. Ingo Sarlet refere inexistir Estado de Direito sem segurança jurídica, razão pela qual é exigível a proteção (por meio de prestações normativas e materiais) contra atos - do poder público - violadores dos diversos direitos pessoais, garantindo a estabilidade da ordem jurídica2. Nesse sentido o STF enuncia que "O conjunto dos Direitos Sociais foi consagrado constitucionalmente como uma das espécies de direitos fundamentais, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal" (STF, ADI 5038). Como decidiu o STF, "O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados". [...] (Ag. no RE 639.337/SP). Portanto, na medida em que a Constituição Federal reconhece o idoso como vulnerável e detentor do direito à proteção, segurança e bem estar, e como o direito à gratuidade, por força de lei municipal (de 2013), é um direito social e fundamental que foi incorporado ao ordenamento, tal concessão afigura-se direito adquirido de natureza difusa, de todos os idosos entre 60 e 65 anos, daí porque pode-se considerar inconstitucional a nova legislação que suprimiu a gratuidade aqui considerada, por força da proibição do retrocesso social. Ademais, as relações exigem condutas adequadas, que detenham um padrão, um standard de comportamento, ou seja, exige-se que toda e qualquer relação se faça por meio de condutas impregnadas de cooperação, probidade e lealdade. Essa concepção tem raízes no princípio da boa-fé objetiva, que é um standard de comportamento que deve vigorar conforme as expectativas da sociedade. E o comportamento com lealdade, dentro da expectativa e conforme os usos do tráfico, gera relações jurídicas de confiança, não somente relações morais.3 Assim, é exigível, nas relações, a observância dos deveres gerais de conduta, pautados pela boa-fé objetiva, sem o que estará instaurada a abusividade repudiada pelo sistema.4 Diante de algumas situações que se apresentam abusivas por quebrarem a expectativa, a boa-fé instaurada nas relações, o Direito proporciona o enfrentamento através da doutrina do venire contra factum proprium (teoria dos atos próprios), apta a reequilibrar a conduta dos parceiros nas relações sociais5. Ruy Rosado de Aguiar Júnior6 releva a importância do tema, apto a reconduzir as relações ao status que os seus comportamentos anteriores ditaram: "A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte". Não há dúvida de que a revogação da gratuidade configura venire contra factum proprium, francamente abusiva. Em 06 de janeiro de 2021 o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical - SINDNAPI e outras entidades associativas ajuizaram ação civil pública7 para restabelecer a gratuidade do transporte público para pessoas entre 60 e 64 anos, sustentando, em linhas gerais, que o artigo 3º do Decreto Estadual nº 65.414/2020 retirou a eficácia da Lei Estadual 15.187/2013. Argumentam que a revogação da gratuidade para idosos com faixa etária de 60 a 64 anos depende de lei e que o ato do Poder Executivo seria ilegal por violar o direito adquirido ao benefício tarifário. Em decisão liminar, o Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo deferiu os efeitos da tutela provisória para manter a isenção de pagamento aos maiores de 60 anos. Em 12 de janeiro de 2021, a Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar8. De acordo com a decisão, a liminar poderia acarretar lesão à ordem, economia e segurança públicas ao afastar do Poder Executivo estadual "seu legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade de organização dos serviços públicos, o que inclui o transporte público". É certo que o art. 12 §1º da LACP - lei 7.347/85 autoriza a suspensão da liminar ao dispor que a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada. Todavia, há necessidade de que haja juridicidade para tanto. No caso, a liminar não causa grave lesão à ordem, à saúde e à segurança, isto porque a fundamentação espelhada no pedido de suspensão da liminar é que o subsídio subiu de cerca de 200 milhões/ano, quando instituído em 2014, para 600 milhões/ano (custo estimado pra 2021), ou seja, o único fundamento é a consideração de que tal gratuidade agravaria a situação fiscal. Então, aqui há um confronto entre o interesse público primário e o secundário. Este último é meramente o interesse patrimonial da administração pública, que deve ser tutelado, mas não pode sobrepujar o interesse público primário, que é a razão de ser do Estado e sintetiza-se na promoção do bem-estar social. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: "O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles." (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pág. 66.) [...] (REsp 1356260/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, j. 07/02/2013, DJe 19/02/2013). No caso, a ancoragem para a manutenção do benefício é o fato de que temos um direito fundamental efetivado, que não pode ser afastado por receber a blindagem de "direito adquirido coletivo" e de "proibição do retrocesso". Nesse sentido, Gomes Canotilho diz que "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial"9. Dessa maneira, a discricionariedade administrativa não pode ser invocada quando direitos fundamentais estão em pauta, razão pela qual a manutenção da gratuidade tornou-se uma obrigação vinculada, não passível de revogação, a não ser que fossem editadas medidas alternativas ou compensatórias que promovessem a devida modulação, e que não existem. Há, pois, ofensa aos princípios constitucionais da proibição do retrocesso, da razoabilidade e da proporcionalidade. *Luiz Antônio de Souza é procurador de Justiça (28º Procurador de Justiça da Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos); mestre e doutor em Direito pela PUC/SP; professor Assistente-Doutor da PUC/SP; professor do Curso Damásio e do Instituto Damásio de Direito; professor dos Cursos de Pós-Graduação da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do COGEAE - Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP, da ESA - Escola Superior de Advocacia. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico do Instituto Damásio de Direito chancelado pela Faculdade de Direito IBMEC-SP. __________ 1 O art. 8º do Estatuto do Idoso proclama que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004. p. 4. 3 Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Tomo XXXVIII, 3ª edição, Rio de Janeiro, Borsoi, 1972, § 4.242, p. 321. 4 Paulo Luiz Netto Lobo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 145, falando sobre a boa-fé que deve nortear os indivíduos nas suas relações, considera que "A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa em conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé que podemos chamar de boa-fé de comportamento". 5 Cf. KÜMPEL, Vitor Frederico. Teoria da Aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. 6 Na obra A Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor, 1ª edição, Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 240 e seguintes. 7 Sob nº 1000277 - 05.2021.8.26.0053 8 Feito nº 2002288 - 52.2021.8.26.0000   9 Fachin, Luiz Edson, Comentários ao Código Civil, Direito das Coisas, volume XV, Saraiva, 2003, p. 374.
terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Retrospectiva 2020

2020, sem sombra de dúvidas, foi um ano histórico, marcado pelos devastadores e inesperados efeitos da pandemia do COVID-19, cujo combate exigiu uma mobilização em todos os níveis institucionais e setores da sociedade. As repercussões geradas pela pandemia são incontáveis e, como não poderia deixar de ser, alcançaram inclusive o universo jurídico. Pode-se afirmar que um dos principais efeitos colaterais da pandemia, na práxis jurídica, foi um salto significativo no processo de migração para os sistemas informatizados. É claro que esse movimento já se verificava há muito tempo, mas o isolamento imposto pela pandemia demandou medidas drásticas, que não podiam esperar o ritmo natural do processo de informatização. Diversas tarefas e procedimentos que se realizavam pessoalmente passaram a ser realizados de forma virtual. Em alguns casos, essas medidas exsurgiram como soluções temporárias, mas, em outros, as mudanças estão se consolidando como definitivas. No âmbito extrajudicial, foram editados diversos provimentos pela Corregedoria Nacional de Justiça, com o objetivo de criar alternativas ao tradicional atendimento presencial nas serventias e, assim, reduzir os riscos de contágio sem comprometer a continuidade dos serviços durante o período de quarentena. O primeiro ato normativo expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça, com esse objetivo, foi o Provimento 91, de 22 de março de 2020, que determinou a suspensão ou redução do atendimento ao público, além da suspensão do funcionamento das serventias extrajudiciais, além de regular a suspensão de prazos para a lavratura de atos notariais e de registro. Em seguida, foi editado o Provimento 93, de 26 de março, que regulou o funcionamento dos registros públicos de nascimento e óbito durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). No que diz respeito ao Registro de Imóveis, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 94, de 28 de março de 2020, regulando seu funcionamento pelo sistema de plantão (presencial ou à distância) nas localidades em que foi decretada a quarentena. Em 1º de abril de 2020, a edição do Provimento 95 trouxe novas regras sobre o funcionamento das serventias extrajudiciais durante a pandemia. No dia 27 do mesmo mês, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 97, regulamentando os procedimentos de intimação nos Tabelionatos de Protesto do país; bem como o Provimento 98, dispondo sobre o pagamento dos emolumentos, acréscimos, dívidas e demais despesas por meios eletrônicos, nas serventias extrajudiciais, durante a pandemia. Com o passar dos meses e o avanço implacável do vírus, as medidas mencionadas foram objeto de sucessivas prorrogações (Provimentos 96, 99, 101 e 105). Na última dessas prorrogações, os Provimentos 91, 93, 94, 95, 97 e 98 tiveram sua vigência estendida para o dia 31 de dezembro de 2020, pelo Provimento nº 105. O que se nota é que, além dos atos normativos voltados diretamente a instituir medidas de combate à disseminação do COVID-19 - que envolvem o recurso à informática e ao trabalho remoto, como visto - o CNJ também normatizou assuntos que, embora não diretamente referentes à pandemia, também se relacionam com o avanço da informatização e da implementação de alternativas digitais aos tradicionais procedimentos físicos. Nessa linha, o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, dispôs sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, além de criar a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dar outras providências. Em seguida, foi editado o Provimento nº 103, de 04 de junho de 2020, dispondo sobre a Autorização Eletrônica de Viagem nacional e internacional de crianças e adolescentes até 16 anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais. Levando em consideração o papel de Ofício da Cidadania exercido pelos RCPN, e colocando em benefício da população os progressos derivados da informatização dos serviços notariais e registrais, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 104/2020, dispondo sobre o envio de dados registrais, das pessoas em estado de vulnerabilidade socioeconômica, pelo RCPN aos Institutos de Identificação dos Estados e do Distrito Federal, para fins exclusivos de emissão de registro geral de identidade. Essa emissão pode ser feita diretamente ou por intermédio da Central de Informações de Registro Civil de Pessoas Naturais- CRC, e se alinha ao compromisso assumido em nível nacional para a ampliação do acesso do cidadão brasileiro à documentação civil básica, mediante colaboração e articulação dos entes públicos (art. 1º do Decreto n. 6.289, de 6 de dezembro de 2007). Dando continuidade ao propósito de impulsionar a informatização em nível nacional, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 106, de 17 de junho de 2020, dispondo sobre a adoção e utilização do sistema eletrônico "APOSTIL" para a confecção, consulta e gestão de apostilamentos em documentos públicos, realizados em todas as serventias extrajudiciais do país. Já por meio do Provimento 107, de 24 de junho de 2020, a Corregedoria Nacional de Justiça esclareceu ser vedada a cobrança de quaisquer valores dos consumidores finais dos serviços prestados pelas centrais cartorárias em todo o território nacional. Seguindo essa linha, a Corregedoria Nacional de Justiça deu também mais um passo na implementação do sistema de registro de imóveis eletrônico, ao disciplinar, por meio do Provimento nº 109, de 14 de outubro de 2020, a sua atuação como Agente Regulador do ONR - Operador Nacional do Registro Imobiliário Eletrônico. O ato normativo tem por objetivo disciplinar a forma de funcionamento do Agente Regulador para que se estabeleçam os meios de interação entre ele e o ONR, bem como para definir como se dará a atividade de regulação própria do Poder Judiciário que decorre de sua atividade fiscalizatória dos serviços prestados pelos órgãos incumbidos dos serviços delegados de notas e registro. Em nível legislativo, um dos mais importantes acontecimentos do ano foi a entrada em vigor da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que dispôs sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Observe-se que, muito embora a LGPD tenha entrado em vigor no dia 18 de setembro de 2020, os dispositivos que tratam das sanções administrativas impostas àqueles que violam seus preceitos (arts. 52, 53 e 54) apenas entrarão em vigor em 1º de agosto de 2021. Não se pode negar que 2020 foi recheado de surpresas, o que deixa incertezas quanto ao que nos reserva 2021. De nossa parte, podemos prever que no ano vindouro estaremos mais presentes aqui no Portal Migalhas, agora que retomamos com muito carinho nossa coluna quinzenal. Fiquem conosco e sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) foi publicada há pouco mais de dois anos e, desde o seu nascimento, suscitou inúmeras discussões sobre os seus impactos no cotidiano das mais diversas entidades. Como se sabe, seus preceitos alcançam tanto pessoas naturais quanto jurídicas, de direito público ou privado e, como não poderia deixar de ser, também estão contemplados os serviços notariais e registrais. O art 23, § 4º, da LGPD faz menção expressa ao enquadramento desses profissionais, dispondo que "Os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei.". O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público - inclusive os serviços notariais e registrais, dada a equiparação acima mencionada -, nos termos da lei, deverá "ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público" (art. 23, caput, da LGPD). Tendo em mente esses pressupostos, interessante discussão que se coloca diz respeito aos impactos da LGPD no tráfego de dados entre os ofícios de Registro de Imóveis e as centrais eletrônicas de serviços compartilhados. Ocorre que, no Estado de São Paulo, determinadas informações sobre operações imobiliárias são remetidas dos ofícios de registro de imóveis à central eletrônica, a partir da qual os dados são tratados tendo em vista a formulação de índices e estatísticas sobre os negócios e atos jurídicos praticados. Esse fluxo é previsto pelas Normas de Serviço estaduais, cujo item 414 do Cap. XX determina que, para formação de índices e indicadores, os oficiais de registro deverão informar eletronicamente até o dia 15 de cada mês, à Central Registradores de Imóveis, os dados arrolados no dispositivo, referentes ao mês anterior1. Tais dados abrangem informações sobre o mercado, a regularização fundiária, a alienação fiduciária, as incorporações e instituições de condomínio edilício, os loteamentos e parcelamentos e os processos extrajudiciais de usucapião. Ainda, segundo o subitem 414.1, "A ARISP ficará responsável pelo armazenamento, proteção, segurança e controle de acesso aos dados sobre operações imobiliárias, fazendo-o de modo a omitir quaisquer informações, que porventura lhe forem encaminhadas, sobre a identificação das pessoas nelas envolvidas." Para a finalidade em comento, eram geralmente enviadas, à central, as Declarações de Operações Imobiliárias (DOI) emitidas na serventia. Contudo, esses documentos contêm informações pessoais sobre os envolvidos nas operações, de forma que sua remessa deve ser cercada de cautelas que garantam a correta aplicação da LGPD. Em princípio, a ARISP assumiu a incumbência de filtrar as informações constantes nas DOI encaminhadas pelos oficiais de registro, de modo a torná-las anônimas. No entanto, em representação formulada perante a CGJ, questionou-se caberia aos próprios oficiais de registro de imóveis efetuar essa filtragem, de modo a enviar à central as informações já anonimizadas2. Em seu Parecer 458/2020-E, a respeito da controvérsia, o Juiz Assessor da Corregedoria Josué Modesto Passos sustentou que, sendo os oficiais de registro considerados "controladores" para os fins da LGPD3, são diretamente responsáveis pelas decisões referentes ao tratamento de dados, o que inclui, justamente, as decisões relacionadas à anonimização de dados pessoais para a transferência de informações para a central eletrônica de serviços compartilhados. Daí concluir que caberia aos próprios oficiais decidir quais dados podem ou não ser transmitidos para fins de estatística, sob a égide da LGPD. Vale dizer, mesmo se optassem por enviar a DOI na íntegra, deixando à central a incumbência de proceder à anonimização, não se eximiriam da responsabilidade, que passaria a ser conjunta com a central. Sendo assim, e considerando ainda que a DOI é revestida pelo sigilo fiscal (art. 198 do CTN e IN 1.112/2010 da RFB), argumentou-se não caber à CGJ, tampouco à central de serviços eletrônicos compartilhados, exigir dos oficiais de registro o envio da íntegra da DOI para os fins dos itens 397, 414 e 415 das NSCGJSP. Para o autor do parecer, os dados transmitidos à central devem ser apenas os estritamente necessários para o cumprimento das finalidades estatísticas mencionadas, de modo a reduzir ao máximo os riscos à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem, em consonância com o regime fixado pelo pela LGPD. Dessa forma, entendeu-se razoável a proposta de esclarecer aos oficiais de RI do Estado que, para os fins mencionados, não podem ser transmitidos dados que de qualquer forma possam ser relacionados a pessoa física (inclusive o número de matrícula do imóvel). Assim, basta o envio das seguintes informações: (1) o tipo de transação; (2) a data da transação; (3) a forma de alienação; (4) o valo base de ITBI; (5) o tipo de imóvel; (6) a localização (limitada ao bairro, CEP, cidade e unidade federativa). O parecer com tal orientação foi aprovado, em 28 de outubro de 2020, pelo Corregedor Geral da Justiça Ricardo Anafe. Muito embora se reconheça a tecnicidade da argumentação esposada no Processo em comento, é importante ressaltar que tal decisão não é desprovida de impactos no cotidiano dos registradores de imóveis. Afinal, efetuar a referida filtragem sobre cada operação imobiliária demandará, sem sombra de dúvidas, um investimento significativo de tempo e recursos por parte dos oficiais, que até então apenas tinham que encaminhar a íntegra da DOI à Central. Assim, com a nova orientação, os oficiais passam a assumir mais uma incumbência dentre tantas outras que já possuem. __________ 1 O fornecimento de dados pelos ofícios de registro para fins estatísticos encontra respaldo, também, no Decreto nº 8.764/2016, cujo art. 5º define, em seu caput, que "Os serviços de registros públicos disponibilizarão à administração pública federal, sem ônus, documentos nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel, do título ou do documento registrado, na forma estabelecida pelo Manual Operacional.", e, em seu § 3º, que "Os critérios para a identificação do imóvel e do negócio jurídico poderão abranger outras informações que sirvam para fins de estatística." 2 A referida representação foi formulada pelo Dr. Ruy Veridiano Patu Rebello Pinho, 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Osasco, e deu origem ao Processo nº 2020/53702 3 Controlador, segundo a definição do art. 5º, VI, da LGPD, é a "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais".
terça-feira, 17 de novembro de 2020

Retomada do Registralhas

Caríssimos leitores e amigos do Portal Migalhas, é com grande alegria que retomo minha querida coluna Registralhas nesta data. Separei a coluna de hoje para contar um pouco sobre o motivo do afastamento deste ano: o desafio da Livre Docência. Após a abertura do Edital para o concurso de Livre Docência em Direito Notarial e Registral pela USP, no final de 2019, bem como após muitas conversas e aconselhamentos de meu estimado amigo, e brilhante acadêmico, prof. titular Eduardo C. Silveira Marchi, ex-diretor da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, decidi tentar o concurso e redigir minha tese: Sistemas de transmissão imobiliária sob a ótica do registro. Não foi uma tarefa fácil. O concurso exigiu-me imensa dedicação, muito embora eu já venha estudando o referido tema há muitos anos. Foi necessário o amadurecimento e aperfeiçoamento de algumas ideias, além, é claro, da escrita propriamente dita da tese, a qual totalizou 393 laudas. Propus, em meu trabalho, uma análise aprofundada dos sistemas de transmissão da propriedade imobiliária de civil law, classificados quanto aos efeitos substantivos: título, título e modo ou modo. Foram analisados os sistemas de Portugal, Espanha, Inglaterra, Alemanha e Brasil. Para o estudo de cada modelo, tomei como pressuposto os princípios aplicados em cada sistema.   Em resumo, pude entender o funcionamento da transmissão da propriedade imobiliária nos países supracitados, bem como concluir como se deu a evolução do sistema brasileiro, extremamente sincrético, e quais são as dificuldades práticas atualmente enfrentadas em nosso Ordenamento. Além da rápida menção ao tema da tese, abro espaço para comentar sobre as etapas do concurso. Após o depósito da tese, passei ainda por 4 etapas: prova escrita, prova didática, arguição do memorial e arguição da tese. Todas elas foram realizadas em 3 dias subsequentes (terça, quarta e quinta feira). Na segunda feira, um dia antes do início do processo, dentre os 30 temas elencados no Edital, 10 foram sorteados. Terça-feira, viajei para Ribeirão Preto para a realização da prova escrita, momento em que foi sorteado 1 tema dentre esses 10 já escolhidos. Escrevi minha prova sobre "O Sistema de Registro no ordenamento jurídico brasileiro. O Direito Registral como microssistema e como unidade normativa". Após o término da prova escrita, houve um novo sorteio do ponto que deveria ser trabalhado na aula didática do dia seguinte. Assim, na quarta feira, apresentei uma aula à banca examinadora sobre o tema "Separação e Divórcio extrajudicial (Lei 11. 441/07) e resoluções do CNJ". Na sequência, realizei a arguição de meu memorial. Na quinta-feira (o grande dia), ocorreu a arguição da minha tese. Tive a honra de ser arguido por brilhantíssimos juristas: dr. Fernando Scaff, Dr. Otavio Luiz Rodrigues Junior, dr. Torquato da Silva Castro e dra. Flavia Trentini. Por fim, não posso deixar de lado, a insigne profa. Cintia Rosa Pereira de Lima, que presidiu minha banca. Faço a ela um agradecimento especial por toda atenção e disposição no acompanhamento de perto das fases do concurso, que foram fatores essenciais para minha motivação e persistência. Agradeço, finalmente, aos queridos leitores de minha coluna, que se dispuseram a ler brevemente sobre minha gratificantíssima conquista e que continuaram acompanhando com carinho a coluna. Espero, após esse desafio da Livre Docência, poder agregar ainda mais com os próximos artigos, trazendo aos senhores novas reflexões sobre o direito notarial e registral. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
Vitor Kümpel e Giselle de Menezes Viana O inventário extrajudicial Em que pese a incidência do princípio da saisine, determinando a transmissão automática da herança no momento de abertura da sucessão (art. 1784 do Código Civil), é necessário um procedimento posterior de apuração de ativos e passivos, para permitir o pagamento de eventuais dívidas e a partilha aos herdeiros. De fato, com a abertura da sucessão, os bens são transferidos aos sucessores, mas como um todo unitário e indivisível (art. 1.790, parágrafo único, do Código Civil). Daí a necessidade do inventário e da partilha, permitindo a divisão por quinhões a cada herdeiro e a consolidação da transmissão patrimonial1. No que diz respeito ao aspecto procedimental, antes da lei 11.441/2007, os inventários processavam-se exclusivamente no âmbito judicial. Porém, com a entrada em vigor da referida Lei - que, dentre outras providências, modificou o art. 982 do antigo Código de Processo Civil de 1973 - conferiu-se um inédito protagonismo aos notários na operacionalização da transmissão causa mortis, tanto na etapa do inventário quanto da partilha. Assim, admitiu-se o processamento dos inventários e partilhas também pela via extrajudicial, possibilidade preservada pelo atual Código de Processo Civil (art. 610, §§ 1º e 2º)2. Desde 2007, portanto, o procedimento de apuração do patrimônio líquido deixado pelo falecido, culminando na partilha aos herdeiros, pode ser realizado não apenas em juízo, mas também por escritura pública, perante o tabelião de notas de livre escolha dos interessados. Vale dizer, desde que atendidos os pressupostos e requisitos legalmente fixados, os interessados poderão escolher entre a via judicial e a extrajudicial para a operacionalização do inventário e da partilha3. A escritura, assim concebida, constitui título hábil para o registro imobiliário e demais órgãos e repartições públicas e privadas para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores, independentemente de homologação judicial4. Essa inovação se alinhou a uma tendência crescente nas últimas décadas em prestigiar a atividade dos notários e registradores, ampliando seu âmbito de atuação. Isso não apenas pela destacada celeridade e segurança jurídica que as serventias extrajudiciais garantem, mas também pelo consequente desafogamento do Poder Judiciário, que pode então se concentrar na resolução de questões efetivamente litigiosas. É neste ponto, aliás, que reside a nota característica dos procedimentos atribuídos às serventias extrajudiciais: a ausência de litigiosidade. Por isso, a lei exige como pressuposto para a viabilidade do processamento extrajudicial do inventário que as partes sejam plenamente capazes e concordes, exigindo também a inexistência de testamento válido e eficaz deixado pelo falecido. A inexistência de testamento como pressuposto para a via extrajudicial Como acima mencionado, a opção pela via extrajudicial não se compatibiliza com a existência de litigiosidade, daí se exigir a concordância entre os interessados. Estes, até para que possam expressar sua concordância, devem ser plenamente capazes. O art. 610 do CPC é claro nesse sentido, afirmando, em seu § 1º, que o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública "se todos forem capazes e concordes". Essa exigência complementa o disposto no caput, segundo o qual impõe-se a via judicial se houver testamento ou interessado incapaz. Do referido caput, se depreende o outro pressuposto do inventário extrajudicial, qual seja, a inexistência de testamento válido e eficaz do falecido. Visando operacionalizar essa exigência, o provimento 56/2016 do Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatório, para a lavratura de escrituras públicas de inventário extrajudicial, a juntada de certidão acerca da inexistência de testamento deixado pelo autor da herança. Tal certidão é expedida, a pedido de interessado e mediante apresentação da certidão de óbito, pela CENSEC - Central Notarial de Serviços Compartilhados, que engloba, dentre seus módulos de informação, o Registro Central de Testamentos OnLine (RCTO), responsável por recepcionar informações sobre a lavratura de testamentos públicos e instrumentos de aprovação de testamentos cerrados em todo o Brasil5. Flexibilização da exigência: precedentes A regra do caput do art. 610 do Código de Processo Civil, no que diz respeito à imposição da via judicial ante a existência de testamento, não foi considerada absoluta pela doutrina nem pela jurisprudência. Cite-se, por exemplo, o Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil do CJF, segundo qual "após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial". Também nessa linha se posicionaram as Corregedorias das Justiças dos diversos estados, editando normas que igualmente excepcionam a referida exigência. É o caso das normas extrajudiciais paulistas, que, com a edição do Provimento 37/20166, passaram a permitir o processamento do inventário, pela via administrativa, quando houver expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento do testamento, com todos os interessados capazes e concordes7. Regra idêntica foi incorporada à Consolidação Normativa do Rio de Janeiro8, a partir do Provimento 24/2017. As normas paulistas também admitiram o inventário extrajudicial nas hipóteses de testamento revogado ou caduco ou, ainda, quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros9. Porém, nesse caso, cabe ao notário, de forma prévia, solicitar a certidão do testamento, a fim de constatar a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração de caráter irrevogável, caso em que a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, processando-se o inventário exclusivamente pela via judicial10. De forma semelhante determinou o Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, tanto ao permitir o inventário por escritura pública na hipótese de testamento revogado, caduco ou invalidado por decisão judicial transitada em julgado11, quanto ao admiti-lo se já ocorrida a abertura do testamento em juízo e o cumprimento de todas as disposições testamentárias12. Posicionamento do STJ A questão da compatibilidade entre o processamento extrajudicial do inventário e a preexistência de testamento foi recentemente abordada pela 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.808.767/RJ, ocorrido em 15/10/2019 e relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão. A Corte concluiu, de forma unânime, pela possibilidade de inventário extrajudicial mesmo havendo testamento do falecido, desde que este tenha sido previamente registrado judicialmente ou se tenha a expressa autorização do juízo competente. Isso se, atendendo à exigência da lei, os interessados forem capazes e concordes e estiverem devidamente assistidos por advogados. No caso analisado, a autora da herança falecera em 2015, deixando testamento público que atribuía a parte disponível da herança ao viúvo. O referido testamento foi aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, com a plena concordância dos herdeiros - todos maiores e capazes - bem como da Procuradoria do Estado. Muito embora o inventário tenha sido iniciado na via judicial, os interessados solicitaram a extinção do feito e a autorização para o proceder pela via administrativa. Tal pedido foi indeferido em primeiro grau - decisão confirmada posteriormente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - com fundamento no art. 610, caput, do CPC/2015. Argumentou-se que, de acordo com o dispositivo, a existência de testamento impõe o processamento judicial do inventário e da partilha, obstaculizando, consequentemente, a via extrajudicial. Em recurso ao STJ, os recorrentes invocaram o disposto no § 1º do mesmo art. 610, alegando que o preceito, ao permitir o inventário extrajudicial na hipótese de herdeiros capazes e concordes, excepcionaria o caput, de modo que a existência de testamento não seria, por si só, um empecilho à via administrativa. No julgamento do Recurso Especial, tal argumento foi confirmado pelo relator, que deu uma interpretação sistemática ao § 1º, considerando-o uma exceção ao caput. Ou seja, muito embora a regra do caput estabeleça que tanto a existência de testamento como de interessado incapaz impõem a via judicial, o § 1º, ao exigir tão somente a capacidade e concordância dos envolvidos para autorizar o processamento extrajudicial do inventário, estaria restringindo a hipótese de incidência do caput. Vale dizer, a existência de testamento em princípio impede a via extrajudicial, salvo na situação de interessados plenamente capazes e concordes. Reforçando essa possibilidade, argumentou o relator que o inventário extrajudicial é fomentado pela legislação hodierna, pois representa uma redução na carga burocrática - e consequentemente de tempo e custos - de modo a facilitar a operacionalização da transmissão hereditária. Essa finalidade social é endossada, segundo o ministro, pelos arts. 5º da LINDB e 3º, 4º e 8º do CPC. Afirmou, ainda, que sendo todos os herdeiros e interessados maiores, capazes e plenamente concordes quanto à destinação e à partilha de bens, inexiste conflito de interesses, e por isso não seria razoável impor a judicialização do inventário para efetivar um testamento inclusive já tido como válido pela Justiça. __________ 1 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK Editora, 2017, pp. 918-919. 2 Note-se que a matéria foi também regulamentada pela Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça. Deve-se também considerar as normas editadas pelas Corregedorias da Justiça dos Estados atinentes à atividade notarial. No Estado de São Paulo, por exemplo, a matéria é regida pelos itens 105 e seguintes do Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP. 3 Ressalte-se o caráter facultativo do inventário e partilha extrajudiciais. Disso decorre ser possível optar pela via judicial, ainda que presentes todos os requisitos legais para o processamento administrativo. Essa natureza facultativa deriva da própria dicção legal, haja vista ter a lei utilizado o vocábulo "poderão" no § 1º, do art. 610 do CPC/2015. Fica claro, pois, o objetivo do legislador de criar uma alternativa aos interessados, sem obrigá-los e sem prejudicar o direito de ação das partes. O art. 2° da Resolução nº 35/2007 é ainda mais claro nesse sentido, determinando: "é facultada aos interessados a opção pela via judicial ou extrajudicial; podendo ser solicitada, a qualquer momento, a suspensão, pelo prazo de 30 dias, ou a desistência da via judicial, para promoção da via extrajudicial". Não obstante, até por um imperativo de segurança jurídica, não se deve admitir a tramitação simultânea dos dois procedimentos, judicial e extrajudicial. 4 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK Editora, 2017, pp. 918-919. 5 Art. 2º do Provimento nº CNJ 56/2016. 6 O provimento teve fundamento no parecer 133/2016-E, emitido no Processo nº 2016/52695, relatado pelo então juiz assessor da Corregedoria, Swarai Cervone de Oliveira. 7 Item 129, Cap. XIV, Tomo II. 8 Art. 286, § 1º, II. 9 Item 129.1, Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP. 10 Item 129.2, Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP. 11 Art. 814-A, caput, acrescido pelo Provimento n. 18, de 23 de novembro de 2017. 12 Art. 814-A, § 1º.
Mais um passo no combate aos crimes de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo foi dado com a regulamentação, pelo CNJ, dos dispositivos das leis 9.613, de 3 de março de 1998 e lei 13.260, de 16 de março de 2016 aplicáveis às serventias extrajudiciais, por meio do Provimento n. 88, que entrará em vigor em 3 de fevereiro de 20201. Ao dispor sobre o crime de lavagem de dinheiro, a lei 9.613/1998, com as alterações da lei 12.683/2012, sujeitou diversas atividades aos mecanismos de controle, dentre as quais os registros públicos (art. 9º, XIII) bem como as pessoas físicas que prestem serviços de assessoria, consultoria, aconselhamento ou assistência em operações de compra e venda de imóveis (art. 9º, XIV, "a"). Esses mecanismos, que implicam uma série de obrigações às pessoas abrangidas, foram elencados sobretudo nos arts. 10 e 11, mas careciam de regulamentação específica no âmbito das serventias notariais e registrais. Assim, dando concretude às diretrizes fixadas pelas referidas leis, o Provimento n. 88 do CNJ dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando a prevenção desses crimes. Note-se que a edição do Provimento n. 88 se alinha à Ação n. 12/2019 da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), cujo objetivo é integrar notários e registradores no combate e prevenção aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Essa meta é compartilhada pelo CNJ, cuja atuação nos últimos anos faz transparecer um esforço institucional no combate à corrupção, à lavagem de capitais e financiamento do terrorismo2. No presente artigo, serão esplanadas as disposições gerais do Provimento 88, e esmiuçados os aspectos específicos concernentes ao registro de imóveis. Confira a íntegra da coluna. __________ 1 Art. 45 do Provimento CNJ 88/2019. 2 "Segundo o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, o provimento se alinha ao esforço institucional promovido do CNJ nos últimos anos para combater a corrupção. "A edição do Provimento n. 88, pela Corregedoria Nacional de Justiça, em conjunto com outras ações adotadas na atual gestão - como a instituição, em dezembro de 2018, do Ranking da Transparência, em compasso com a Ação da Enccla nº 4/2015 - simboliza o resgate do protagonismo do Judiciário no combate à corrupção, à lavagem de capitais e financiamento do terrorismo", disse, na solenidade de assinatura do Provimento n. 88". Acesso em 28-10-2019.
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana I) Introdução A Medida Provisória 897, de 1º de outubro de 2019, instituiu o Fundo de Aval Fraterno e, dentre outras providências, dispôs sobre o patrimônio de afetação de propriedades rurais e instituiu a Cédula Imobiliária Rural. No que diz respeito ao patrimônio de afetação - ao qual a MP 897/2019 dedicou todo o seu Capítulo II (arts. 6º ao 13) - ficou estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá submeter seu imóvel rural ou fração dele a este regime1. Ou seja, ao proprietário fica reconhecido o direito de constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação. Esse patrimônio de afetação poderá ser vinculado à chamada Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinada no Capítulo III da MP 897/2019 (arts. 14 a 25). No presente artigo, serão analisados os principais aspectos desses novos institutos, como eles se associam a outras figuras jurídicas já existentes e como se relacionam entre si na sistemática inaugurada pela MP 897/2019. II) Teoria da Afetação2 A teoria da afetação diz respeito à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica. De acordo com essa teoria, admite-se a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração determinada econômica3. A afetação, nesse sentido, significa "prender ou ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso, não se liberando enquanto perdura a relação criada entre aquele que se obriga e os credores da obrigação"4. Assim, ela não retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém apartado5, de modo que não se comunique com o restante do patrimônio. Vale dizer, não há uma quebra na titularidade da propriedade, que permanece em nome daquele em cujo nome está registrada6. Isto porque na afetação não há a saída daquela parcela de bens e direitos do patrimônio geral, mas apenas a sua indisponibilidade, tornando nula eventual alienação e assegurando ao beneficiário o direito de sequela, em caso de transferência total ou parcial do bem para patrimônio alheio7. O patrimônio de afetação, em suma, pode ser definido como um regime especial da propriedade, sendo considerado uma garantia em favor dos credores, especialmente dos adquirentes8. Sob esse viés, pode-se afirmar que tem natureza jurídica de garantia real9. Sob outro viés, partindo da definição jurídica de patrimônio, tem-se que o patrimônio de afetação constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional. É, assim, uma massa de bens que constitui, no bojo de um patrimônio geral, uma universalidade de direito, dotada de autonomia funcional10. De toda forma, importa ressaltar que o traço característico do patrimônio de afetação - e o que permite que cumpra sua finalidade social e econômica - é a incomunicabilidade. Por meio desta, os bens afetados ficam a salvo dos eventuais efeitos negativos de negócios estranhos ao objeto da afetação11. III) Regime de afetação da MP nº 897/2019 Optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação da MP nº 897/2019, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras12. Esse patrimônio de afetação, então, poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, hipótese na qual os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos. Ressalte-se, ainda, que essa incomunicabilidade é limitada às garantias vinculadas à Cédula Imobiliária Rural13. Percebe-se que conceito dado pela MP 897/2019 ao patrimônio de afetação é o mesmo empregado pela lei 4.591/1964, para o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária. Com efeito, ao submeter a incorporação imobiliária ao regime da afetação, o acervo patrimonial que a compõe (o terreno, as acessões e os demais bens e direitos vinculados à incorporação) fica apartado do patrimônio geral do incorporador, assumindo como destinação exclusiva a construção do empreendimento e entrega das unidades aos adquirentes14. A grande diferença em relação ao patrimônio de afetação da MP nº 897/2019 é, naturalmente, a destinação, sendo o último destinado a prestar garantias em operações de crédito junto a instituições financeiras. IV) A Cédula Imobiliária Rural - CIR No que diz respeito à Cédula Imobiliária Rural - CIR, a MP 897/2019 a conceitua como um título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, representativo de15: a) promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, contratada com instituição financeira; e b) obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio de afetação, e que seja garantia da operação de crédito de acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito. A CIR, assim definida, é título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível correspondente ao valor nela indicado ou ao saldo devedor da operação de crédito que representa16. A legitimidade para emissão da CIR tem como pressuposto a constituição do patrimônio de afetação. Disso decorre que essa emissão é balizada pelos limites da garantia representada pelo imóvel afetado ou fração deste, como a própria MP nº 897/2019 esclarece17. Por outro lado, nada impede que a CIR seja garantida por apenas parte do patrimônio afetado, desde que devidamente identificada18. V) Limites objetivos A MP 897/2019 previu alguns limites objetivos à possibilidade de constituição de patrimônio de afetação sobre imóveis rurais. Assim, tal regime não poderá incidir sobre19: c) imóvel já gravado por ônus real (como hipoteca, alienação fiduciária etc.); d) imóvel em cuja matrícula tenha sido registrada ou averbada qualquer uma das informações arroladas no art. 54 da lei 13.097/201520; e) a pequena propriedade rural21; f) área de tamanho inferior ao módulo rural ou à fração mínima de parcelamento, o que for menor22; g) o bem de família. VI) Efeitos Embora a constituição do patrimônio de afetação não altere a titularidade do imóvel, impõe restrições à sua disponibilidade pelo proprietário. Primeiramente, não poderá constituir sobre o ele nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR23. Além disso, não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, ou qualquer outro ato translativo por iniciativa do proprietário24. O patrimônio de afetação vinculado à CIR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial25. Ainda, tem-se que não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela a qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural26. A MP 897/2019 prossegue afirmando que o patrimônio de afetação (ou a fração dele) vinculado a Cédula Imobiliária Rural, não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural27, nem integrará a massa concursal28. Por fim, ressalva que esses atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural29. No que diz respeito ao proprietário, a constituição do patrimônio de afetação não apenas implica limitações (como as acima tratadas) mas também gera deveres. Com efeito, ficará obrigado a30: a) promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais; e b) manter-se adimplente com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais. VII) Natureza do ato registral Questão delicada diz respeito à forma de constituição desse patrimônio de afetação. Segundo a MP 897/2019, será constituído "por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis"31. Sucede que o termo "inscrição" não esclarece o ato registral que deverá ser praticado, haja vista abranger, em tese, tanto o registro em sentido estrito, quanto a averbação. Embora a MP 897/2019 não tenha especificado a natureza dessa inscrição, o mais correto é entender que o ato praticável é a averbação. Em primeiro lugar, porque o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da LRP) é taxativo ou numerus clausus, e não foi ampliado pela MP 897/2019 para acomodar o patrimônio de afetação de imóvel rural. Em segundo lugar, por um motivo de ordem material: a constituição desse patrimônio de afetação não importa mutação júri-real. Apenas haverá a transmutação da propriedade em caso de inadimplemento, ocasião em que o imóvel será levado a leilão, como se verá adiante. Lembrando que o registro em sentido estrito é o ato que constitui, modifica ou declara determinada posição jurídico-real na matrícula, conferindo-lhe eficácia e publicidade erga omnes32. Tal assentamento reserva-se, em regra, a atos de oneração ou constituição de direitos reais, abarcando, por extensão, outros atos de natureza diversa, desde que respaldados em expressa previsão legal33. Além disso, é possível traçar uma analogia com o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária, que ingressa no registro de imóveis por ato de averbação34. Observe-se que, apesar das aproximações entre os institutos, neste aspecto o patrimônio de afetação difere da alienação fiduciária. Com efeito, conforme o art. 22 da lei 9.514/1997, a alienação fiduciária importa na transferência da propriedade resolúvel do imóvel ao credor, com o escopo de garantia. Daí ser efetivada por ato de registro em sentido estrito35. Pode-se afirmar, inclusive, que o regime estabelecido pela MP 897/2019 foi uma evolução em relação àquele da lei 9.514/1997, que também é um regime de afetação. Neste, é primeiro efetuado o registro da alienação fiduciária, depois a averbação da consolidação da propriedade ao credor, em caso de inadimplemento e, finalmente, os registros das eventuais arrematações. Já pelo regime da MP 897/2019, o patrimônio afetado continua na titularidade do devedor, embora vinculado à dívida garantida pela CIR. VIII) Procedimento registral A constituição do patrimônio de afetação sobre o imóvel rural dependerá de rogação pelo proprietário, que deverá instruir sua solicitação com os documentos elencados no art. 11 da MP 897/2019. O pedido, juntamente com os documentos vinculados, serão então protocolados e autuados pelo oficial de registro de imóveis36. Qualificado negativamente o pedido - ou seja, caso o registrador o considere em desacordo com o disposto na MP 897/2019 - o interessado fará jus ao prazo de 30 dias, contado da data da decisão, para promover as correções necessárias, sob pena de indeferimento da solicitação37. Em todo caso, o interessado poderá solicitar a reconsideração da decisão do oficial de registro de imóveis38. IX) Consequências do inadimplemento A MP 897/2019 dispõe que, uma vez vencida a CIR, e não tendo sido liquidado o crédito por ela representado, poderá o credor exercer de imediato, no cartório de registro de imóveis correspondente, o direito à transferência, para sua titularidade, do registro da propriedade da área rural que constitui o patrimônio de afetação ou de sua parte vinculado à Cédula39. Como mencionado, é possível que o proprietário constitua o patrimônio de afetação sobre uma parte do imóvel rural (desde que observado o módulo rural ou a FMP, já que essa área poderá ser futuramente alienada em caso de inadimplemento da CIR). Também é possível que, uma vez constituído o patrimônio de afetação sobre a totalidade ou parte do imóvel rural, o proprietário vincula apenas uma parte desse patrimônio à CIR. Em ambos os casos, verificado o inadimplemento da CIR, será necessário o desmembramento do imóvel, para permitir a abertura de matrícula e alteração da titularidade apenas da fração efetivamente afetada e vinculada à Cédula40. Embora haja a transmutação imediata da propriedade afetada e vinculada à CIR para o credor, este fica obrigado a promover leilão público para a alienação do imóvel, a exemplo do que ocorre na alienação fiduciária de coisa imóvel em garantia. Aliás, a MP nº 897/2019 inclusive prevê a aplicação subsidiária do procedimento dos art. 26 e art. 27 da lei 9.514/199741. Não obstante, a MP nº 897/2019 traz uma peculiaridade em relação ao procedimento da lei 9.514/1997. Com efeito, dispõe que se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida, somado ao das despesas, dos prêmios de seguro e dos encargos legais, incluídos os tributos, o credor poderá cobrar do devedor, por via executiva, o valor remanescente de seu crédito42. Assim, não se aplica a regra do art. 27, ­§ 5º, da lei 9.514/1997, segundo o qual, nessa hipótese, considerar-se-á extinta a dívida. Em todo caso, ressalte-se que nessa situação o credor não terá direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado. __________ 1 Art. 6º, caput, da MP 897/2019. 2 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 2, São Paulo, YK Editora, 2019 [no prelo]. 3 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 4 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 360. 5 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 6 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 361. 7 Mauro Antônio Rocha, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária. Acesso em 5/6/2019. 8 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 360. 9 Flauzilino Araújo dos Santos, Condomínios e Incorporações no Registro de Imóveis - teoria e prática, São Paulo, Mirante, 2012, p. 274. 10 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, pp. 83-84. 11 M. N. Chalhub, A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, 7 (2016), pp. 147-183. 12 Art. 6º, parágrafo único, da MP 897/2019. 13 Art. 9º, caput, da MP 897/2019. 14 Art. 31-A, caput, da lei 4.591/1964. 15 Art. 14 da MP 897/2019. 16 Art. 18, caput, da MP 897/2019. 17 Art. 15, caput, da MP 897/2019. 18 Art. 15, parágrafo único, da MP 897/2019. 19 Art. 7º da MP 897/2019. 20 O art. 54 da lei 13.097/2015 considera eficazes, em relação a atos jurídicos precedentes, os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, caso não tenham sido registradas ou averbadas, na matrícula do imóvel, as citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, averbação premonitória, constrição judicial (penhora, arresto, sequestro), restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, indisponibilidade de bens ou de outros ônus quando previstos em lei, e decisão judicial de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. 21 O art. 5º, caput, inciso XXVI, da Constituição Federal dispõe que "a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento". O conceito de pequena propriedade rural foi dada pela Lei 8.626/1993, que a define como o imóvel rural de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento (art. 4º, II, "a"). 22 A MP 897/2019 remete ao art. 8º da lei 5.868/1972, cujo caput dispõe: "Para fins de transmissão, a qualquer título, na forma do Art. 65 da Lei número 4.504, de 30 de novembro de 1964, nenhum imóvel rural poderá ser desmembrado ou dividido em área de tamanho inferior à do módulo calculado para o imóvel ou da fração mínima de parcelamento fixado no § 1º deste artigo, prevalecendo a de menor área". 23 Art. 9º, § 1º, da MP 897/2019. 24 Art. 9º, § 2º, da MP 897/2019. 25 Art. 9º, § 3º, II, da MP 897/2019. 26 Art. 9º, § 3º, I, da MP 897/2019. 27 Art. 9º, § 4º, I, da MP 897/2019. 28 Art. 9º, § 4º, II, da MP 897/2019. 29 Art. 9º, § 5, da MP 897/2019. 30 Art. 13 da MP 897/2019. 31 Art. 8º da MP 897/2019. 32 Nas palavras de Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 236: "(...) o registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real, como os constantes da enumeração da nova Lei do Registro (art. 167)". 33 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, São Paulo, YK Editora, 2019 [no prelo]. 34 Segundo o art. 31-B, caput, da lei 4.591/1964, "Considera-se constituído o patrimônio de afetação mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis, de termo firmado pelo incorporador e, quando for o caso, também pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno". 35 Dispõe o art. 23, caput, da lei 9.514/1997 que "Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título". Ainda, a referida lei acresceu o item "35" ao art. 167, I, da LRP, incluindo a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel no rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito. 36 Art. 10 da MP 897/2019. 37 Art. 12, caput, da MP 897/2019. 38 Art. 12, parágrafo único, da MP 897/2019. 39 Art. 24, caput, da MP 897/2019. 40 Art. 24, § 1º, da MP 897/2019. 41 Art. 24, § 2º, da MP 897/2019. 42 Art. 24, § 3º, da MP 897/2019.
quarta-feira, 22 de maio de 2019

Divórcio impositivo

Foi editado recentemente o Provimento 06/2019, da Corregedoria Geral da Justiça do estado de Pernambuco, no último dia 29 de abril, instituindo o divórcio impositivo. O referido provimento é inovador e autoriza, exclusivamente no Estado de Pernambuco, qualquer dos cônjuges a pleitear, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, onde esteja lançado o assento de casamento, a averbação do divórcio, bastando para tal preencher o formulário anexo "REQUERIMENTO DE AVERBAÇÃO DO DIVÓRCIO IMPOSITIVO". Segundo o provimento, ainda, faz-se necessário que o interessado não tenha filhos menores, incapazes ou nascituro, bastando que o requerimento seja assinado por advogado ou defensor público. O mais interessante é a dispensa da presença ou ciência do outro cônjuge, que poderá ser notificado pessoalmente ou por edital, após esgotadas as diligências para a sua localização. É possível que questões como alimentos e eventual partilha de bens remanesça para discussão superveniente. Apesar de a medida ser inovadora, aliás, uma das marcas da Corregedoria da Justiça do Estado de Pernambuco - lembrando que foi pioneira ao autorizar a exclusão da súmula 377 por escritura antenupcial, convertendo a separação obrigatória em consensual, tema analisado em Registralhas já antiga -, algumas considerações devem ser feitas nesta oportunidade. Em primeiro lugar, é bom relembrar que o nosso sistema registral civil, imobiliário, etc, é do "título e modo", de forma que o ato de registro exige a presença de um título formal. No presente caso, não nos parece que um mero requerimento potestativo configura um título idôneo a admitir um ato averbatório que rompe a sociedade conjugal e o vínculo matrimonial. Tanto isso é verdade que o próprio CNJ, na resolução 35/2007, por força da lei 11.441 do mesmo ano, passou a admitir as escrituras de separação e divórcio, desde que observada uma série de requisitos. Verifica-se, inclusive, que a Resolução n. 220, de 26 de abril de 2016, ampliou os requisitos para a lavratura de escritura de separação consensual, na medida em que o próprio CPC atual exige a inexistência de gravidez do cônjuge virago. O nosso CPC, lei 13.105, de 16 de março de 2015, indica em seu art. 733 a escritura pública de divórcio consensual, separação consensual, independentemente de homologação judicial, como título hábil a ser averbado junto ao Registro Civil das Pessoas Naturais. Por mais louvável que seja, não pode o Provimento "revogar" o Código de Processo Civil e criar um título que parece inábil, já em relação à sua forma constitutiva. Em resumo, dois são os títulos hábeis de averbação junto ao RCPN: a escritura pública e a sentença judicial, nenhum outro. Em segundo lugar, os modelos de separação e divórcio existentes no sistema são os litigiosos, com caráter resilitivo (art. 1.572 e §§), e os consensuais. Para que haja consenso, é necessária a clara manifestação e vontade de ambas as partes, não havendo em nenhum dispositivo da legislação pátria qualquer autorização para um divórcio potestativo, na medida em que, inclusive, a potestatividade só pode ser reconhecida por ato da jurisdição. Em terceiro lugar, é bom sopesar que o casamento exige uma série de liturgias constitutivas e a sua extinção por divórcio também exige cautela e até uma certa simetria com a sua constituição, para não gerar uma banalização e um ato, muitas vezes, emocional e impensado por parte de qualquer dos consortes. Tanto isso é verdade, que a resolução 35 do CNJ exige grande cautela por parte do tabelião, a começar pelo fato de ser necessário um ambiente próprio e isolado para que ocorra a profilaxia notarial. A questão é tão complexa que o art. 46 da mesma Resolução autoriza o tabelião a se negar a lavrar a escritura de separação e divórcio quando aferir prejuízo para qualquer uma das partes ou em caso de dúvida sobre a declaração de vontade. Como dito acima, não é desarrazoado imaginar a hipótese de o casal discutir, se separar de fato e algum deles, até para chamar a atenção do outro, comparecer no RCPN e dar início ao requerimento, usando do ofício de Registro Civil como meio de fomentar uma reaproximação ou a dissolução. Também não é desarrazoado apresentar um endereço não verdadeiro, o que implicará na publicação de edital, e se apresentar divorciado perante outro contraente. Em quarto lugar, o Provimento nada fala a respeito de emolumentos no ofício de Registro Civil. Além de suprimir a escritura do tabelião de notas, tudo faz crer que ou aplicar-se-á a gratuidade ou será remunerado apenas um ato de averbação de divórcio impositivo. Não haverá qualquer remuneração pela prática de procedimento desgastante para o oficial, que será obrigado a notificar o outro contraente ou expedir edital, além de ter que diligenciar, caso o outro cônjuge não seja encontrado (art. 2º, parágrafo único). Dessa sorte, tanto a averbação do divórcio quanto as anotações e eventuais averbações de retificação de nome, são atos gratuitos a onerar ainda mais serventia tão importante e tão mal remunerada como é o RCPN. O Direito de Família, para muitos estudiosos, e já faz algum tempo, deixou de ser ciência e está, aos poucos, deixando também de ser técnica. É louvável que ocorram algumas mudanças e que os serviços prestados pelas serventias extrajudiciais sejam os mais adequados e céleres possíveis, porém, com parcimônia e fulcrado em lei. É o mínimo que se espera. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
terça-feira, 2 de abril de 2019

Lei do Distrato - Considerações históricas

Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller O Brasil colonial, no período de vigência das Ordenações, principalmente das Filipinas (1603-1916 a. d.), seguindo o modelo português, adotava o sistema registral do título, o que significa dizer que a propriedade dos bens imóveis era transmitida pelo contrato (título)1, até porque nesse período o registro imobiliário estava engatinhando no seu berço germânico (nasceu por volta de 1480 a. d.). O sistema registral do título tem por base o princípio do consenso, também chamado de consensualidade, estando a prova da transmissão dominial no próprio contrato (escritura pública), sendo esse o instrumento e a celebração, o momento da mutação dominial. Esse sistema, no Brasil, mesmo com o advento da Lei de Terras de 1850 (lei 601 que estabeleceu o registro paroquial) e da lei 1.237/1864 (pela qual o registro deixa de ser paroquial e passa aos tabeliães de notas), continuou a vigorar. Apesar de todo o respeito que deve ser nutrido pela grandiosa figura de Clóvis Bevilaqua, com a vigência do primeiro Código Civil brasileiro, a partir de 1º de janeiro de 1917, foi revogado o sistema do título, passando a incidir o complexo sistema do título e modo (art. 530, I2). Bevilaqua importou da Alemanha, em parte, o modelo registral e com uma única canetada passou a tornar obrigatório o registro, porém, ao contrário da Alemanha, manteve uma causação entre o contrato (título) e o registro (modo). O sistema do título e modo exige que, em um primeiro momento, as partes realizem um negócio jurídico obrigacional entre si, do qual extrair-se-á um título e, para que tal negócio produza efeitos, apresentem o título para registro, que constituirá o direito real negociado. Dessa forma, a transmissão da propriedade ou de direitos reais apenas terá efeitos após o registro do título (fruto da negociação entre as partes) no ofício de registro de imóveis. Esse novo modelo passou a gerar problemas absolutos, notadamente na transmissão imobiliária decorrente de aquisições em prestações periódicas. O Código Civil de 1916 foi incapaz de criar um mecanismo adequado para a grande massa da população brasileira da época, inclusive, que não tinha capacidade econômica para lavrar uma escritura de compra e venda à vista e imediatamente encaminha-la ao registro imobiliário para a transmissão da propriedade (transcrição, à época). Os imóveis precisavam ser comercializados por meio de uma promessa de compra e venda, na medida em que nenhum vendedor iria outorgar uma escritura para um comprador não quitado. Note-se, contudo, que o instituto da promessa de compra e venda tal como temos hoje ainda não era previsto no Ordenamento, de forma que o contrato era feito com base no art. 1.088 do Código Civil de 19163. Tendo em vista que a escritura pública (título registrável) somente seria lavrada após o pagamento integral da dívida, isso causava uma insegurança jurídica ao negócio, na medida em que quaisquer das partes podia se arrepender a qualquer momento, bastando, para isso, restituir o valor e reter ou restituir o sinal (Súmula n. 412 do STF4). Essa angústia afligia muito mais os compromissários compradores do que os promitentes vendedores. Isso porque a promessa não tinha qualquer ingresso no Registro Imobiliário, de forma que os promitentes vendedores alienavam a coisa a mais de um titular ou simplesmente se arrependiam por força do crescente mercado imobiliário, restituindo as quantias recebidas e até o sinal em dobro, para que pudessem reinserir o imóvel no mercado a preços mais altos. Isso era plenamente possível, na medida em que o título por si só não transferia nem garantia a aquisição da propriedade e inexistia publicidade da venda aos demais interessados no bem por conta da ausência do registro na matrícula do imóvel. Esse problema terrível gerado pela mudança de sistema só foi, em parte, solucionado com o advento do decreto-lei 58, em 1937, portanto, passados 20 anos de angústia e de vigência do CC/1916. O referido Decreto-Lei fez nascer o compromisso irretratável de compra e venda, modificado por várias legislações supervenientes, inclusive pela lei 6.766/79. Não sem razão, as legislações acima mencionadas prestigiaram o compromissário comprador, garantindo ao contrato de compromisso de compra e venda o direito à adjudicação compulsória e a irretratabilidade por parte do promitente vendedor (súmulas 239 do STJ5 e n. 166 do STF6). Aliás, o decreto-lei 58 criou um novo direito real chamado "direito real de aquisição" ou "direito real sobre coisa alheia sui generis", de forma que o próprio compromisso de compra e venda também poderia ingressar no Registro de Imóveis para fins de publicidade. Passados mais de 80 anos da existência do compromisso de compra e venda, o mundo mudou. Daquela sociedade quase agropastoril, passou-se a uma sociedade de massa, em que a incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e os loteamentos (lei 6.766/79) reinam em termos de empreendimentos imobiliários. Agora, já no final da segunda década do século XXI, além da proteção aos compromissários compradores, tornou-se necessária a proteção aos promitentes vendedores. Com a crise que assola o país e com o índice absurdo de desemprego que de forma epidêmica atinge a mais de 13 milhões de pessoas aptas a trabalhar7, não é possível que o compromissário comprador simplesmente resolva inadvertidamente o contrato com o promitente vendedor e tenha a restituição integral e imediata do que desembolsou, com a retenção pelo promitente vendedor tão somente do sinal e eventualmente de alguma parcela do período de posse sobre a coisa (nos casos de empreendimento já concluído). Ora, garantir ao compromissário comprador a restituição quase integral das quantias pagas retira do promitente vendedor os recursos financeiros que estavam garantidos pelo contrato e pelo direito real de aquisição. Sem o investimento da compra das unidades imobiliárias, torna-se inviável ao empreendedor a conclusão da obra, pois fica ele obrigado a restituir valores que seriam destinados não só a seu lucro, mas também a cobrir as despesas da construção. Com toda a crítica que tem sido feita, a lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, veio em boa hora, a fim de proteger o promitente vendedor de falência ou de recuperação judicial por resolução contratual decorrente do inadimplemento por parte dos compromissários compradores. A crise no mercado imobiliário não pode ser agravada pelo desprestígio ao empreendedor, que encadeia, por força de seu inadimplemento, crise em todo o sistema habitacional. A lei procura ser equilibrada ao estabelecer regras e sanções tanto para o atraso na conclusão de obra quanto nas hipóteses de inadimplemento por parte do comprador, buscando um equilíbrio e visando retirar do Poder Judiciário a incumbência de solucionar o inadimplemento de ambas as partes. Pensando na ótica do inadimplemento do comprador e, neste artigo, focando na incorporação imobiliária, passou-se a considerar o seguinte recorte: em empreendimentos sem o regime do patrimônio de afetação, o incorporador pode reter até 25% da quantia paga e a integralidade da comissão de corretagem, nos imóveis em que não ocorreu imissão na posse. Caso tenha sido instituído o regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A a 31-F da lei n. 4591/1964), o incorporador, em caso de inadimplemento do compromissário comprador, poderá reter até 50% da quantia paga, além da integralidade da comissão de corretagem, a mesma hipótese em que não houve imissão na posse. Muitos podem pensar ser um absurdo a retenção de metade do valor pago. Porém, o legislador certamente quis estimular o importantíssimo instituto do patrimônio de afetação. O patrimônio de afetação é uma garantia e proteção imensa ao comprador consumidor, na medida em que nenhuma dívida do incorporador, salvo do próprio empreendimento, recai no imóvel que está sendo edificado. Isso significa que o empreendimento fica blindado de eventual falência ou insolvência do incorporador. Para estimular esse instituto, o legislador autorizou a retenção de até 50%. Muito embora haja um ou outro probleminha terminológico na lei, sendo que os termos rescisão, resilição e resolução são muitas vezes utilizados de forma incorreta ou inadequada, o nome da lei "Lei do Distrato" parece perfeito, porque a ideia é que, mesmo diante da mora ou inadimplemento de qualquer das partes, com a existência da lei, essas cheguem em um consenso e, caso não optem pela permanência e vigência do contrato, escolham a via consensual do distrato, valendo-se de meio alternativo de solução de conflito e desfaçam amigavelmente o vínculo contratual, trazendo menos custo ao Estado e mais benefícios para ambas as partes. Em outra oportunidade abordar-se-ão outros aspectos relevantíssimos da referida lei que, não obstante críticas, merece aplausos num ano tão complicado como tem sido este de 2019. Sejam felizes! Continuem conosco. __________ 1 Art. 257 do Decreto n. 3.453/1865: Até a transcripção, os referidos actos são simples contractos que só obrigão as partes contractantes. Art. 258 do Decreto n. 3.453/1865: Todavia a transcripção não induz a prova do dominio que fica salvo á quem fôr. 2 Art. 530 do Código Civil de 1916: Adquire-se a propriedade imóvel: I - Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel [...]. 3 Art. 1.088 do Código Civil de 1916: Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097. 4 Súmula 412 do STF: No compromisso de compra e venda com cláusula de arrependimento, a devolução do sinal, por quem o deu, ou a sua restituição em dôbro, por quem o recebeu, exclui indenização maior, a título de perdas e danos, salvo os juros moratórios e os encargos do processo. 5 Súmula n. 239 do STJ: o direito a adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. 6 Súmula 166 do STF: É inadmissível o arrependimento no compromisso de compra e venda sujeito ao regime do Decreto-Lei 58, de 10-12-1937. 7 L. Naime, Desemprego sobe para 12,4% em fevereiro, diz IBGE, disponível in 29/3/2019.
terça-feira, 19 de março de 2019

Considerações iniciais sobre a lei 13.811/2019

Entrou em vigor, no dia 12 de março de 2019, a lei 13.811, com um único dispositivo legal, sendo que o art. 2º determina a imediata entrada em vigor da referida lei. De acordo com o art. 1º, que altera o art. 1.520 do CC, "não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste código". O supratranscrito dispositivo sepulta o antigo art. 1.520 que excepcionava o casamento da menor ou do menor de idade, para evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal, ou em caso de gravidez. A capacidade matrimonial ocorre aos 16 anos de idade, sendo necessária a autorização de ambos os pais ou emancipação até ser atingida a maioridade civil. Caso qualquer do pais não dê ou denegue o consentimento, é possível o suprimento judicial desse consentimento, promovido pelo interessado, aplicando-se o procedimento de jurisdição voluntária. Existia, até a entrada em vigor da lei em comento, o suprimento de idade para fins de casamento, ocasião em que o juiz verificava a presença de qualquer das duas excepcionalidades (imposição ao cumprimento de pena criminal ou gravidez) e autorizava o matrimônio, podendo na mesma oportunidade suprir, de forma concomitante, o consentimento. Tive o privilégio de judicar em ambas as demandas, sempre realizando audiência de instrução para melhor entender o desejo das partes e bem enquadrá-la na lei. Com o advento da lei 11.106 de 28 de março de 2005 houve a revogação do art. 107, VII do Código Penal. Naquela ocasião, o casamento passou a evitar a imposição ao cumprimento de pena criminal nos, então, "crimes contra os costumes", nas hipóteses de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação. Porém, nos "crimes contra os costumes" de ação penal privada continua a persistir a possibilidade de extinção da punibilidade pelo perdão do ofendido ou pela renúncia do direito de queixa, conforme dicção do art. 107, V do Código Penal. O casamento da vítima com o agente causador do dano era considerado uma renúncia tácita (exercido antes da propositura da ação penal) ou perdão tácito (exercido depois da propositura da ação penal), de forma a persistir, até o advento da atual lei, a possibilidade de incidência da norma civil. A questão da gravidez também autorizava o casamento da menor ou do menor de 16 anos, porque denotava a maturidade sexual que é um dos bens jurídicos tutelados em sede de capacidade matrimonial, lembrando que o Estatuto do Deficiente alberga a capacidade civil plena a qualquer deficiente mental para se casar (art. 6º). Tentei meditar sobre as razões da nova lei e tive grande dificuldade em entender por que o art. 1.520 sofreu a referida modificação, lembrando que nenhuma mudança houve no art. 1.551 que estabelece "não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez". Se tal artigo continua em vigor, significa que se o oficial de registro civil se equivocar e casar pessoa grávida com 15 anos, tal casamento remanescerá válido e eficaz. A norma apenas desautoriza que o juiz torne válido o casamento de menor de 16 anos em qualquer hipótese. A pergunta importante é: caso um casal resolva viver junto, tendo ambos 15 anos de idade e um filho, qual o status jurídico desse casal? A resposta antes da entrada em vigor da lei era simples. Estão em união estável, aplicando-se todos os benefícios da entidade familiar, inclusive com o direito de se casar ou de converter a união estável em casamento. Após a entrada da referida lei, o casal em questão está em concubinato, na medida em que o art. 1.727 do Código Civil é bastante claro ao afirmar que as relações não eventuais, de pessoas impedidas de casar, constituem concubinato, sem proteção legal. Em matéria de família, seria interessante o legislador* (começar a pensar que a alteração legislativa não implica em automática alteração das relações sociais e que, muitas vezes, ideias tidas por benéficas trazem resultados funestos, para não falar outra coisa.) Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
Vitor Frederico Kümpel Bruno de Ávila Borgarelli No último Registralhas abordamos o importante provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça (de 6/12/2018), que dispõe sobre a renda mínima do Registrador Civil de Pessoas Naturais1. Atendendo às solicitações de alguns leitores - aos quais se dirigem sinceros agradecimentos -, voltamos ao tema para esclarecer um ponto ainda um pouco obscuro, que é o chamado "excedente de interinidade", abordado na coluna anterior sem maior aprofundamento. Antes, retomem-se certos aspectos. Como se disse, o provimento 81 atende a uma demanda antiga e estritamente necessária para a preservação da saúde financeira do RCPN, a mais importante das serventias extrajudiciais. Para que se mantenha esse serviço essencial - o "ofício da cidadania" -, é preciso corrigir as deficiências remuneratórias e garantir um retorno emolumentar adequado à estruturação da atividade. Como também se afirmou, "um mínimo remuneratório é efetivamente necessário ao equilíbrio e à manutenção da própria serventia, cujo bom preparo refletirá, evidentemente, na eficiência, imposição à administração pública (CF/88, art. 37)"2. Além disso, o ato normativo abre a oportunidade para a discussão sobre os desequilíbrios verificados no conjunto da atividade registral. É que existe um verdadeiro abismo entre Registro Civil e Registro de Imóveis em quase todos os Estados do país. O ato chama a atenção, assim, para esses desequilíbrios e para a existência de muitas serventias deficitárias e com sérias dificuldades na continuidade do serviço. De acordo com o art. 2º do Provimento, "Os Tribunais de Justiça devem estabelecer uma renda mínima para os registradores de pessoas naturais com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante". Há Estados - como São Paulo - nos quais já existe lei prevendo renda mínima e fixando seu valor e meios de cálculo e repasse. Acredita-se, conforme recente decisão da Corregedoria Geral de Justiça de SP, não haver necessidade de adequação pelos Tribunais nessas hipóteses. Nos casos em que isso não há norma, contudo, é estritamente necessário observar o Provimento, estabelecendo renda mínima e direcionando os mecanismos para sua efetivação. Pois bem. Nos "Considerandos", o Provimento recorda que existem os fundos financeiros estaduais vinculados aos Tribunais de Justiça, destinados a complementar a renda dos registradores civis. Sem desatentar-se aos limites constitucionais de sua competência, a Corregedoria Nacional de Justiça estabelece, a partir disso, no art. 3º do Provimento, os recursos para alimentação dos fundos. É o texto: "Além de outras fontes de recursos, devem ser utilizadas para o pagamento da renda mínima a que se refere o artigo anterior, as receitas originadas do recolhimento, efetuado pelos interinos de qualquer serventia extrajudicial, aos tribunais ou aos respectivos fundos financeiros, relativamente aos valores excedentes a 90,25% do teto constitucional". Esse é o aspecto mais importante do Provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça. E é também uma das mais relevantes diretrizes já promulgadas pelo órgão, por duas principais razões. Em primeiro lugar, porque vai além da mera indicação de necessidade de renda mínima do registrador civil, preocupando-se na verdade em fornecer caminhos para a superação do estado de déficit, por meio do incremento dos fundos estaduais. Em segundo lugar, porque, ao prever os recursos para efetivo pagamento do valor mínimo, o ato faz expressa menção ao que se pode chamar de "excedente de interinidade". Esse excedente corresponde àquela parcela que excede o limite de 90,25% do teto constitucional (remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal) e que não pode ser retido por quem não seja o titular delegatário do serviço extrajudicial. Em outros termos, há um valor limite a ser retido pelo interino da serventia. O que "sobra", segundo o provimento, deve ser usado como receita para os fundos destinados ao pagamento da renda mínima do Registrador Civil. Está aí a chave compreensiva do Provimento, que se soma ao também relevante Provimento 76 (a ser comentado na próxima coluna). O excedente de interinidade das serventias extrajudiciais deve ser destinado à correção dos desequilíbrios do próprio serviço, uma vez que é seu próprio numerário. A Corregedoria, muito bem assessorada, sabe que há Estados em que esse valor é recolhido e utilizado para outros fins. Dissemos na última coluna que essa situação (o não aproveitamento do excedente para investimento no próprio serviço, mas para outros) acaba gerando estagnação estadual em termos de concursos públicos para outorga de delegações. E por quê? A razão é simples: se houver muita interinidade nos cartórios, grande será a arrecadação a título de excedente dessa mesma interinidade, o que acaba estimulando os Estados a não realizarem os concursos para provimento de titulares (os quais, por óbvio, não estão sujeitos ao teto). É dizer, se houver muitos interinos, muito será o excedente. Quando o provimento 81 estabelecer que o excedente reverterá em benefício de sua atividade geratriz, "corta" a possibilidade de maior aproveitamento para outros atos do Tribunal. Com isso não há muito sentido em "segurar" os concursos. Além de oxigenar a atividade, esse direcionamento estimula a autogestão da atividade registral. Eis a explicação para quanto se expôs no último texto. Por último, é bom anotar que com essas colocações não pretendemos condenar os Tribunais que aproveitam o excedente de interinidade para outros atos. Isso, muitas vezes, acaba sendo necessário para a mantença desses atos, igualmente submetidos ao risco da insuficiência financeira e, assim, da não continuidade. Tal problema descarna uma outra realidade, tipicamente brasileira, com a qual padecem muitos Estados. Mas isso é tema para outra ocasião. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Da renda mínima do registrador civil de pessoas naturais: Breve anotação sobre o provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça. Registralhas, 12/2/2019. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Op. cit.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Publicado em 06 de dezembro de 2018, o provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça volta-se ao tratamento de uma importante questão: a renda do registrador civil das Pessoas Naturais. Esse ato normativo dispõe sobre a renda mínima do Oficial. Trata-se do atendimento a uma demanda relativamente antiga (e necessária) para a saúde financeira dessas serventias inegavelmente relevantes para a cidadania, e que tantas e tantas vezes caem no déficit. Além disso, o Provimento cria mais uma oportunidade, não se há de negar, para a discussão a respeito da estrutura remuneratória da atividade. É que, em face de desequilíbrios identificáveis entre os diferentes ofícios e, mais especialmente, entre unidades específicas a depender da região, abre-se aquela que talvez seja, presentemente, a mais polêmica face do universo notarial e registral. Sua observação exige atenção e cautela, devendo ficar para outra ocasião. No que toca aos emolumentos, da matriz constitucional tem-se o art. 236, §2º da CF/88, segundo o qual "Lei Federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro". A regulação desse preceito veio com a lei 10.169/2000, que estabelece as tais normas gerais. O valor dos emolumentos, segundo o art. 1º dessa normativa, deve ser fixado pelos Estados, apresentado então em tabelas (art. 2º, I). A lei não faz previsões a respeito da renda mínima do Oficial ou da situação de serventias deficitárias. Mas, como considera muito acertadamente o provimento 81 CNJ, existe a "necessidade de proporcionar a melhor prestação de serviço à população, de garantir a presença do serviço registral de pessoas naturais em todos os locais exigidos por lei, bem como de garantir a economicidade, a moralidade e a proporcionalidade na remuneração dos registradores civis de pessoas naturais (...)". Realmente, há na regulação dos emolumentos um aspecto elementar para a continuidade do serviço, o que se apresenta tanto mais relevante em se tratando do RCPN, ofício que, como se sabe, nada obstante integre o gênero "Registros Públicos"1, tem na grande singularidade de seu objeto o gatilho para toda a uma diferenciação em termos de regulamentação e, inclusive, de funcionamento cotidiano2. A esse propósito, vale recordar que a lei 8.935/1994 (art. 44) determina a presença de no mínimo um registrador de pessoas naturais em cada sede municipal, ou ainda um em cada sede distrital nos municípios de significativa extensão territorial. Por outro lado, incidem regras específicas quanto ao expediente ao público e à acessibilidade3. É o RCPN tido por muitos - com o que concordamos - como a mais relevante das serventias. Nele "se resguardam, de forma pública e perene, os status jurídicos assumidos pela pessoa natural ao longo de sua vida"4. Assentos como o de nascimento permitem "amplo acesso aos serviços públicos mais essenciais"5. Mais precisamente, tal repositório de informações "garante a oponibilidade do estado civil perante terceiros; assegura o pleno exercício da cidadania; oferece um referencial seguro para fins de imputação e direitos e obrigações; representa uma fonte precisa de dados estatísticos", dentre outros desdobramentos6. Não se pode negar, portanto, a relevância da prestação desse serviço público e a conexão existente entre sua qualidade a percepção razoável de emolumentos pelos delegatários. Um mínimo remuneratório é efetivamente necessário ao equilíbrio e à manutenção da própria serventia, cujo bom preparo refletirá, evidentemente, na eficiência, imposição à administração pública (CF/88, art. 37). Apenas julgamos interessante anotar a perplexidade quanto a certa insistência na correlação entre "moralidade" e percepção emolumentar. Há quem erroneamente derive dessa relação (feita inclusive pelo Provimento, em seus "Considerandos") a ideia de que um aporte equilibrado de recursos financeiros evita a corrupção, o que é francamente absurdo: tal afirmação, ela sim, leva a marca da imoralidade. De todo modo, ainda que nos pareça interessante uma aferição empírica mais precisa, que venha a demonstrar a medida da correlação entre o faturamento e o desenvolvimento dos serviços - o que tanto mais é necessário para que se possa traçar um planejamento adequado dessa prestação pública - o fato é que existe tal correspondência. A exigir, pois, uma normatização bem acabada. Assim, o provimento 81 determina, em seu nuclear art. 2º, que "Os Tribunais de Justiça devem estabelecer uma renda mínima para os registradores de pessoas naturais com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante" (grifou-se). Em outros termos, esse dispositivo atrela a garantia do serviço - e da efetividade do já citado art. 44 da Lei dos Notários e Registradores - à renda mínima. É a finalidade desta última, assim, como expressamente se declara. Importante sublinhar esse aspecto, porque a norma escolheu, dentre os muitos elementos assegurados pela remuneração adequada, o elemento finalístico relacionado à efetiva presença do serviço em todas as sedes municipais e, quando o caso, também distritais. Essa disposição, bem como as demais do Provimento, escora-se também no fato (recordado nos "Considerandos") de que existem os conhecidos fundos financeiros estaduais vinculados aos Tribunais de Justiça, voltados à complementação de renda dos registradores civis para garantia do serviço. Volta-se então o Provimento, aparentemente, a pacificar ou até mesmo reforçar a necessidade de se estipular um valor de renda mínima a ser alimentado pelos fundos. Mais ainda, quer o provimento assentar - dentro dos limites constitucionalmente assegurados ao CNJ e à Corregedoria Nacional - as fontes de recursos a utilizar para o pagamento da renda mínima. É o objeto de seu art. 3º: devem-se usar, "além de outras fontes de recursos", as receitas oriundas do recolhimento, "efetuado pelos interinos de qualquer serventia extrajudicial, aos tribunais ou aos respectivos fundos financeiros, relativamente aos valores excedentes a 90,25% do teto constitucional". O ato merece assim elogios, não só porque se preocupa com o principal ofício extrajudicial (o RCPN), mas porque, além de apontar a criação da renda mínima, estabelece o meio pelo qual esta pode ser implementada, a saber o fundo decorrente do excedente da interinidade. Hoje, muitos Tribunais estaduais usam tal excedente da interinidade, ou seja, valores que ultrapassam em muito os 90,25% do teto constitucional, que podem ser retidos pelos escreventes interinos para custear seus serviços. O fenômeno faz com que muitos Estados não abram concurso, pois se valem dessa receita para a manutenção dos atos do Tribunal. Com o Provimento, esse fundo excedente reverterá em benefício do próprio serviço extrajudicial, na medida em que é numerário que decorre desse próprio serviço. Por essa medida, assim, o CNJ não só volta a "estimular" concursos em Estados estagnados, como faz a atividade extrajudicial se autogerir e equilibrar serventias muito díspares (há um "fosso" entre os Registros Imobiliários e os Registros Civis em qualquer Estado da federação). Pois bem. Apesar dessas importantes determinações, não acreditamos que a eficácia da normativa em questão resida propriamente no potencial de novidade que apresenta, mas, isto sim, no mérito que tem de chamar a atenção para o fato do déficit, do desequilíbrio econômicos das serventias e, em larga medida, dos próprios fundos estaduais, oferecendo caminhos para a superação dessa situação naquelas unidades que já não a normatizaram. É relevante dar destaque a isso. No Estado de São Paulo, por exemplo, existe previsão na lei estadual 11.331/2002 (que trata dos emolumentos) a respeito, justamente, da renda mínima das serventias que se encontrem em situação deficitária (o que não é nada incomum, como já se disse). Nesse Estado, e de acordo com o art. 25 da referida lei, tem-se por deficitária a serventia "cuja receita bruta não atingir o equivalente a 13 (treze) salários mínimos mensais". Também existe nessa norma o estabelecimento do modo de remuneração complementar. Quer-nos parecer assim, e em concordância com a recentíssima decisão proferida pela E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de SP, nos autos do Processo n. 2018/202971, acolhedora do parecer dos MM. Juízes Assessores, que nesse Estado "não haveria necessidade de providências do Tribunal de Justiça para instituição ou adequação da renda mínima das serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais na forma do provimento 81/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça, porquanto, no Estado de São Paulo, há adequada e eficaz previsão legal, bem como situação concreta, garantidora do equilíbrio econômico e financeiro das delegações de registro das Pessoas Naturais". De igual modo deve aplicar-se o entendimento em questão àquelas unidades federativas nas quais lei já se tenha dedicado à renda mínima das serventias extrajudiciais deficitárias. Seja como for, é de se aplaudir a boa atuação da Corregedoria Nacional de Justiça por meio não só do Ministro Corregedor Nacional, mas também de seus Juízes Assessores que, de forma sensível, buscam efetivar o ofício da cidadania alçando-o ao mesmo patamar dos demais serviços extrajudiciais. O Provimento n. 81, diga-se mais uma vez, abre os olhos da comunidade jurídica para um problema grave e gerador de desequilíbrios na prestação de um serviço indispensável. Cria um ambiente para discussões ainda mais férteis e mostra a sensibilidade desse órgão para, nos limites constitucionais de sua atuação, oferecer soluções efetivas e uniformizar a atuação dos Estados na correção de históricos problemas da atividade notarial e registral. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. Vol. 2. p. 338: "Em linhas gerais, são características comuns dos registros públicos, e aplicáveis, por consequência, aos registros civis: a) fé pública da função; b) conservação de documentos e informações constantes do acervo púbico; c) local de repositório de documentos; d) inércia do trabalho, configurada pela necessidade de provocação do interessado para a atuação registral, à luz do princípio da rogação; e) bloqueio de legitimação, de modo que somente realiza o que a lei autoriza (princípio da legalidade); f) independência na atuação, consubstanciada na autorização de interpretação razoável da lei e tomada de decisões relativas à aptidão, ou não, da registrabilidade do título apresentado, atuando sempre sob a fiscalização do judiciário". 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 338. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328. 5 SILVA, José Marcelo Tossi. Uma visão atual da prestação do serviço público de notas e de registros. in AHUALI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 37. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328.
terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O direito notarial e registral em 2018

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Surpreendentemente breve, 2018 foi um ano de mudanças importantes, marco histórico de novos rumos para o país e de cisões políticas cujo impacto ainda está por aferir - o que decerto ocorrerá nos próximos anos. Foi também um período de grande importância para o Direito brasileiro, e, no que aqui interessa, para o Direito Notarial e Registral. Mais uma vez comprovando sua vocação para inserir-se nas grandes questões relativas à organização do Estado, esse ramo jurídico vai sedimentando sua posição de ponta, e as discussões sobre a efetividade dos serviços de notas e registros vão saudavelmente envolvendo cada vez mais instituições e elementos da população. Passem-se em revista, diante disso, os principais eventos do notariado e dos registros públicos no ano que se encerra. Quanto ao campo legislativo, logo no começo de 2018 foi promulgada a lei 13.606, que estabeleceu a possibilidade de a Procuradoria da Fazenda Nacional bloquear bens sem ordem judicial, fazendo averbar a indisponibilidade de bem matriculado por meio da apresentação, ao Registro Imobiliário, da Certidão de Dívida Ativa. É a chamada "averbação pré-executória". Como se afirmou em artigo especificamente voltado a esse tema, "o ataque ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88) é evidente. Como também o é em relação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88). À PGFN abre-se a possibilidade de aplicar a constrição de bens sem o filtro jurisdicional, de cujo crivo o cidadão não poderia jamais ser privado"1. Recentemente promulgada, a lei 13.726/18, conhecida como "lei da desburocratização", trouxe algumas inovações importantes para o serviço notarial e registral. O aspecto central dessa normativa está na desnecessidade de exigências comuns em repartições públicas da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a exemplo dos documentos com firma reconhecida e das cópias autenticadas, dispensando-se a apresentação da certidão de nascimento, substituída por outros documentos. Além disso, para viagem de filhos menores, não se exige autorização com firma reconhecida, bastando que os pais os acompanhem ao embarque. Como já se afirmou, apesar do tom efusivo com que foi recebida, "não se concorda com a ideia de que essa normativa causará grande impacto econômico no notariado. Isso porque, além das (...) regras estaduais e municipais de dispensa de documentos, deve-se recordar que os tabeliães de notas praticam esses atos extraprotocolares em muito devido à vontade dos próprios particulares. Em outras palavras, muitas das autenticações e reconhecimentos de firmas dão-se no bojo de relação cidadão-cidadão, e não cidadão-poder público"2. Em 31 de outubro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 10.287/18, de autoria do Senador Wilder Morais, que regulamenta a multipropriedade imobiliária (time sharing), introduzindo diversos artigos no Código Civil de 2002 e modificando também a Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/73). O impacto no direito registral imobiliário é evidente e, ao que se crê, o debate deve ser ainda fomentado, para que não se corra o risco de uma regulamentação deficitária (apesar da extensão do projeto). Passou também pela CCJ o Substitutivo ao PLS 757/15, que busca corrigir diversos pontos do ordenamento atingidos pela má técnica do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Há partes que podem interessar ao notariado e aos registros, como o que diz respeito à necessidade de averbação da Tomada de Decisão Apoiada. Houve um número relativamente grande de concursos de outorga de delegação. São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná são Estados que realizaram certames em 2018. A jurisprudência também forneceu material relevante para as notas e registros. Em março, o STF reconheceu aos transgêneros a possibilidade de alteração no Registro Civil sem prévia mudança de sexo. Em abril, a Corte manteve a decisão do CNJ que veta a acumulação de cargo público com a titularidade de cartório. Nas instituições, mudanças de relevo. Em 13 de setembro, o ministro José Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Já o ministro do STJ, Humberto Martins, assumiu em 28 de agosto o cargo de Corregedor Nacional de Justiça. Quanto aos atos do CNJ, o ano foi bastante produtivo. O Provimento 66, de 25 de janeiro, "dispõe sobre a prestação de serviços pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais mediante convênio, credenciamento e matrícula com órgãos e entidades governamentais e privadas". Basicamente, a serventia poderá prestar serviços de biometria, fotografia, cadastro de pessoa física, entre outros, desde que exista prévia autorização das Corregedorias Estatuais, visando sempre auxiliar na emissão dos documentos. Em 26 de março veio o provimento 67, que dispõe sobre a conciliação e mediação a ser realizada nos serviços notariais e de registro. Trata-se de uma atividade de mediação e conciliação em sentido estrito. Segundo o art. 6º, "Somente poderão atuar como conciliadores ou mediadores aqueles que forem formados em curso para o desempenho das funções (...)", observadas diretrizes curriculares. O Provimento exige ainda autorização das Corregedorias Estaduais para o oferecimento, pelo cartório, do serviço de conciliação e mediação. As serventias que optarem pela adoção do serviço abrirão livros para o recebimento do pedido de conciliação e demais atos necessários, que serão remunerados através de emolumentos O provimento 70, de 12 de junho, "dispõe sobre abertura de matrícula e registro de terra indígena com demarcação homologada e averbação da existência de demarcação de área indígena homologada e registrada em matrículas de domínio privado incidentes em seus limites". O ato elenca os documentos necessários à apresentação do requerimento e traz as regras procedimentais para os casos de matrícula inexistente ou averbação em registro prévio. Além disso, impõe multa diária de R$ 1000,00 (mil reais) ao registrador que deixar de realizar o ato de maneira não fundamentada. Do dia 28 de junho data o provimento 73, sobre averbação de alteração de prenome e gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoas transgêneros. Não se vai entrar aqui nos veios polêmicos dessa normativa, de invulgar impacto no RCPN. O Provimento 74 (31 de julho) dispõe sobre medidas a serem adotas pelas serventias a fim de estabelecer parâmetros mínimos de tecnologia, segurança, integridade e disponibilidade de dados da atividade. Dentre tais medidas, é necessário que o titular tenha backups das informações armazenadas na serventia, com cópias na Internet, mídias digitais localizadas fora do cartório, trilha de auditoria própria, bem como formas de autenticação por certificado digital ou biometria. Já o provimento 76 (12 de setembro) altera o provimento 45 de 13/5/15, tornando trimestral a periodicidade do recolhimento da renda líquida superior a 90,25% dos subsídios de Ministro do Supremo Tribunal Federal, realizada pelos titulares ou responsáveis pelas serventias extrajudiciais. O provimento 77 (7 de novembro) dispõe sobre a nomeação de responsável interino pelas serventias vagas. Será chamado, em primeira opção, o substituto mais antigo que cumprir os requisitos elencados no provimento, seguido do titular de serventia com função semelhante localizada no mesmo município ou no município contíguo ou do substituto de outra serventia, graduado em direito, com no mínimo 10 de experiência na atividade notarial ou registral. Quanto ao provimento 78 (também de 7 de novembro), importante direcionamento sobre o exercício simultâneo de atividade notarial e registral e mandato eletivo. Há compatibilidade da atividade com mandato de vereador, desde que não haja prejuízo nos horários de trabalho, com direito à percepção integral dos emolumentos. Para os demais mandatos, o titular deverá afastar-se da atividade. O provimento 79 (8 de novembro) institui a política institucional de Metas Nacionais do Serviço Extrajudicial. A Corregedoria Nacional de Justiça definirá, anualmente, e fiscalizará as Metas Nacionais do Serviço Extrajudicial a serem cumpridas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados. A instituição do Fórum Nacional dos Corregedores-Gerais da Justiça, responsável pelos procedimentos de políticas pública nos temas de atuação das Corregedorias e por promover interação entre as Corregedorias, foi objeto do provimento 80, de 4 de dezembro. Por fim, em 6 de dezembro expediu-se o provimento 81, que dispõe sobre a renda mínima dos titulares do RCPN, a ser estabelecida pelo Tribunal de Justiça de cada Estado. O objetivo do provimento é que o serviço seja prestado em todos os municípios e os recursos destinados à renda terão como fonte o recolhimento dos valores superiores a 90,25% do teto constitucional. Importante por em destaque, também, a Recomendação 28, de 17 de agosto. Por ela, sugere-se que os Tribunais de Justiça celebrem convênios com os oficiais do notariado e dos registros para a instalação dos centros judiciários de solução de conflitos e cidadania, os CEJUSCs. Dentre as mais relevantes decisões do CNJ em 2018 está a vedação à lavratura das chamadas "escrituras de poliafetividade", ou, em linguagem mais clara, escrituras de poligamia. Atendendo ao pedido de providências apresentado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), o Conselho determinou que essas escrituras não devem ser lavradas. Trata-se, é claro, de acertadíssima decisão, uma vez que esses atos são gritantemente ilegais. Como também já se afirmou, "a lavratura das escrituras de poligamia é um atentado, antes de tudo, à própria atividade tabelioa. E torna o problema uma questão decisivamente institucional. Sem prudência e respeito à legalidade, o serviço extrajudicial perde credibilidade. O erro de poucos prejudica a todos"3. Eventos importantes tiveram lugar neste ano. Realizou-se o XX Congresso Brasileiro de Direito Notarial e de Registro, com importantes debates, a exemplo do relativo à usucapião e ao emprego de novas tecnologias na prestação dos serviços. O evento foi organizado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), em parceria com a Anoreg/SP. Em 11 de junho ocorreu o colóquio Direitos Reais versus Direitos Pessoais - A Eficácia Real de Direitos Pessoais, realizado na Faculdade de Direito da USP, com a participação da professora dra. Mónica Jardim, dos professores Celso Campilongo e Otavio Luiz Rodrigues Jr. e do dr. José Marcelo Tossi Silva. O âmbito das publicações também foi profícuo em 2018. Carlos Alberto Dabus Maluf, professor Titular da Faculdade de Direito da USP, lançou a nova edição de seu conhecido e imprescindível livro Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade4. A obra é a principal referência nesse tema no Brasil, e agora, além das atualizações legislativas e doutrinárias, conta com uma ampla coletânea de julgados brevemente comentados pelo autor. O desembargador Ricardo Dip, referência nos estudos em Direito Notarial e Registral, publicou o livro Notas sobre Notas (Tomo I)5, uma instigante coletânea de textos para uma reflexão crítica sobre as bases e os rumos da atividade. A ele as sinceras congratulações por mais um trabalho de indispensável leitura. Sobre o direito real de laje, uma das maiores inovações do Direito Civil brasileiro nos últimos anos, Eduardo C. Silveira Marchi, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, dedicou um importante trabalho monográfico6, defendendo a natureza de verdadeiro direito de propriedade desse instituto. Com uma pesquisa minuciosa de fontes, somada a uma clara percepção da realidade social subjacente à regulação da "laje", Eduardo Marchi acrescenta a esse debate um de seus mais importantes contributos. A atualização da obra mais aprofundada sobre a usucapião extrajudicial - de Henrique Ferraz Corrêa de Mello - finalmente veio a público7. Agora de acordo com a lei 13.465/17 e com o provimento 65/17 do CNJ, o livro mantém sua posição cimeira na literatura jurídica a respeito desse importante e polêmico tema. Sob a coordenação de Arthur Del Guércio Neto e Lucas Barelli Del Guércio, veio o terceiro volume da série O Direito Notarial e Registral em Artigos8, com ricas contribuições teóricas para esse campo. De Luis Paulo Germanos o público recebe a obra Condomínio de Terrenos, fruto da dissertação de mestrado defendida pelo autor na Faculdade de Direito da USP, sob orientação do prof. Dabus Maluf. É uma pesquisa aprofundada sobre um tema que está na ordem do dia, especialmente após a lei 13.465/17, que regulamentou o chamado "condomínio de lotes" (art. 1.358-A do CC/02). Maurício Zockun publicou um instigante trabalho intitulado Regime constitucional da atividade notarial e de registro9. Com profundidade de conteúdo e elegância de forma, o autor enfrenta, desde o prisma da regulação constitucional, os mais importantes aspectos da atividade notarial e registral. Obra de leitura necessária. Após anos de admirável trabalho, Leonardo Brandelli deixa a direção da Revista de Direito Imobiliário, cujo comando será assumido por Ivan Jacopetti do Lago. A ele os sinceros votos de uma gestão de sucesso à frente desse prestigioso veículo. Toda essa movimentação indica, mais uma vez, a vocação do Direito Notarial e Registral para inserir-se nas grandes questões do Estado, como a desburocratização, o emprego de tecnologia, a uniformização de serviços públicos e, é claro, alinhavando tudo, o respeito ao cidadão e ao bem comum. Sejam felizes! Até 2019! _______________ 1 BORGARELLI, Bruno de Ávila. O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Migalhas, 16/01/2018. Disponível em: clique aqui. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Lei da Desburocratização: um passo importante. Registralhas, 27/11/2018. Disponível em: clique aqui. 3 BORGARELLI, Bruno de Ávila. De Rolandino de Passeggeri à "escritura do poliamor": a atividade notarial em tempos difíceis. Migalhas, 28/07/2018. Disponível em: clique aqui. 4 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. São Paulo: YK, 2018. 5 São Paulo: Editorial Lepanto, 2018. 6 MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018. 7 MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião extrajudicial. 2.ed. São Paulo: YK, 2018. 8 São Paulo: YK, 2018. 9 ZOCKUN, Maurício. Regime constitucional da atividade notarial e de registro. São Paulo: Malheiros, 2018.