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Sistemas de transmissão da propriedade imobiliária - Parte V

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Atualizado às 08:34

Sistema alemão 

A Alemanha adota, em seu modelo de transmissão da propriedade, três princípios: o da separação (Trennungsprinzip), o da abstração (Abstraktionsprinzip), e o da tradição ou inscrição (Traditions- oder Eintragungsprinzip).1

A separação nada tem a ver com a exigência de um ato real para a transmissão, isto é, com a tradição ou com o registro. A separação do Trennungsprinzip se dá, na verdade, entre os negócios jurídicos de obrigação (Verpflichtungsgeschäft) e de disposição (Verfügungsgeschäft)2. Significa, portanto, que haverá manifestações de vontades distintas, uma direcionada à criação da relação jurídica obrigacional, e a outra à mutação jurídico-real propriamente dita.

É bem possível, assim, que a separação seja combinada em determinados ordenamentos jurídicos com o princípio do consenso - e não apenas com o da tradição, caso em que o mero negócio jurídico efetivará a transmissão da propriedade independentemente de ato real. Esse negócio jurídico, no entanto, não será o obrigacional - como a compra e venda, por exemplo -, mas o de disposição, que pode ser simultânea ou posteriormente celebrado pelas partes3. Não é incomum, mesmo na literatura alemã, o tratamento dos três princípios (separação, abstração e tradição) de maneira imprecisa, seja pela indistinção feita, por alguns, entre separação e abstração; seja pela confusão entre separação e tradição.4

Dessa maneira, é necessário que seja estabelecida a diferença entre eles. Na Alemanha, em decorrência da adoção expressa da separação, há uma distinção entre o negócio próprio do direito das obrigações e aquele do direito das coisas. Ademais, além do negócio de disposição, exige-se para a transmissão da propriedade um ato real - tradição para bens móveis, § 929 Abs. 1 BGB; e inscrição para bens imóveis (§§ 873 Abs. 1, 925 Abs. 1 BGB); daí porque falar-se em um terceiro princípio, o da tradição ou do registro.5

A ideia geral do sistema fica clara no seguinte exemplo prático: C se dirige à padaria de V para comprar um suco de laranja pelo valor de R$ 5,00; entrega a quantia em dinheiro e recebe a respectiva mercadoria. Nesse caso, são três os negócios jurídicos celebrados entre C e V: um obrigacional (contrato de compra e venda - § 433 BGB), dois de disposição (Einigung sobre a transmissão da propriedade dos bens - § 929 Abs. 1 BGB; e Einigung sobre a transmissão da propriedade do dinheiro - § 929 Abs. 1 BGB), além de dois atos reais (tradição dos bens e tradição do dinheiro).

O negócio obrigacional pode ser definido como aquele por meio do qual uma pessoa (devedor) se obriga perante outra (credor) à realização de uma prestação (ação ou omissão). Diz-se, assim, que sua função primária é a criação de um dever de prestar ("Begründung einer Leistungspflicht") e, portanto, de uma relação obrigacional (Schuldverhältnis) entre credor e devedor.6

O credor tem, nos termos do § 241 Abs. 1 BGB - dispositivo que trata das obrigações decorrentes da relação obrigacional -, direito de exigir do devedor determinada prestação, inclusive a de se abster de determinada conduta (§ 241 Abs. 1 S. 2 BGB), em virtude da relação oriunda do negócio jurídico obrigacional celebrado entre as partes. O adimplemento, por sua vez, a depender do conteúdo do negócio obrigacional, poderá ser o próprio negócio de disposição combinado com o ato real - nas hipóteses dos denominados negócios de alienação (Veräußerungsgeschäfte7), como da compra e venda, da permuta e da doação, por exemplo, em que há obrigação de se transferir a propriedade de uma coisa8 - ou determinado comportamento de fato, se o negócio obrigacional é uma prestação de serviço.

O negócio obrigacional constitui, além disso, a causa jurídica para que as partes possam manter a prestação já efetivada ("Rechtsgrund für das Behaltendürfen der Leistung"9). Aqui é preciso cuidado para se evitar confusões: grosso modo, muito embora a transmissão da propriedade, em razão do princípio da abstração, independa da validade do negócio obrigacional - em outras palavras, a nulidade ou anulação da compra e venda, por exemplo, em nada afeta a mutação jurídico-real -, se o negócio obrigacional é nulo ou anulado, há pretensão das partes à retransmissão da coisa com base no direito do enriquecimento sem causa (§ 812 BGB).10 Daí a importância desse instituto no direito alemão. A abstração não significa, assim, que alterações jurídico-reais realizadas sem causa jurídica devam ser toleradas.11 Tome-se a compra e venda como exemplo: se apenas o negócio obrigacional é nulo, o vendedor não tem direito à reivindicatória, pois a transmissão da propriedade ao comprador é válida (princípio da abstração). No entanto, poderá exigir que a propriedade do bem lhe seja retransmitida pelo comprador (Leistungskondiktion12), com base no instituto do enriquecimento sem causa.13

O negócio jurídico de disposição é previsto expressamente no direito alemão nos §§ 873 I e 929 I BGB. Tais dispositivos têm aplicação apenas aos casos de constituição, transmissão e extinção de direitos sobre uma coisa em razão de negócio jurídico, estando, portanto, fora de seu alcance aquela decorrentes da lei, como a transmissão causa mortis e o regime da comunhão universal no direito de família, por exemplo.14

Para a transmissão da propriedade sobre bens imóveis, dispõe o § 873 I BGB que, além do registro, será necessário o acordo sobre a alteração jurídico-real entre o titular do direito real e a outra parte: "(...) ist die Einigung des Berechtigten und des anderen Teils über den Eintritt der Rechtsänderung (...) erforderlich". No mesmo sentido, estabelece o § 929 I BGB, em relação aos bens móveis, as partes deverão estar de acordo que a propriedade seja transferida com a entrega: "(...) und beide [ambas as partes] darüber einig sind, dass das Eigentum übergehen soll".

A exigência de um acordo de vontades diferente daquele que fundamentou a criação da relação obrigacional é, portanto, expressa no ordenamento jurídico alemão. A regra difere, assim, daquela contida nos arts. 1.226, 1.227, 1.24515 e 1.26716 do Código Civil brasileiro, que exigem apenas o ato real para a transmissão, sendo o título o próprio negócio jurídico obrigacional.

O termo Einigung, no contexto dos §§ 873 Abs. 1, 929 Abs. 1 BGB, significa, portanto, o acordo da alteração jurídico-real sobre o bem (móvel ou imóvel).17 Quando a transmissão é, especificamente, do direito de propriedade sobre um bem imóvel, o negócio de disposição recebe o nome de Auflassung (§ 925 Abs.1 BGB), com especificidades relativas à sua forma (§ 925 Abs. 1 BGB), à impossibilidade de ter seus efeitos condicionados ou colocados a termo (§ 925 Abs. 2 BGB), bem como aos requisitos para registro (§ 20 GBO).

Conforme estabeleceu o legislador nos Motivos do BGB, o escopo do negócio jurídico de disposição não é a criação de uma relação jurídico-obrigacional, mas a constituição de um direito real sobre um coisa ou, no caso de direito já constituído, sua respectiva alteração, oneração ou transmissão.18 O negócio jurídico de disposição, por esta razão, pode ser definido como o acordo de vontades direcionado à constituição, modificação, oneração, transmissão ou extinção de um direito real sobre uma coisa. Seu objeto não é a prestação em si (dar, fazer ou não fazer), mas o direito real sobre o qual a disposição latu sensu opera.19

O negócio jurídico de disposição, via de regra, não tem forma predeterminada em lei, mesmo no caso de constituição de direitos reais sobre bens imóveis. A utilização de certificação notarial, no entanto, tem importantes consequências para vinculação das partes à declaração de vontade de disposição.20

Cabe ressaltar, no entanto, que apenas a declaração da Einigung (ou Auflassung) não é suficiente para a constituição ou alteração de direito real sobre bem imóvel. Vale lembrar que a Alemanha, além dos princípios da separação e da abstração, também adota o princípio da tradição ou do registro.21 Logo, a alteração jurídico-real só opera efeitos com a combinação de negócio jurídico de disposição e ato real: tradição para bens móveis (§ 929 Abs. 1 BGB) e registro para bens imóveis (§ 873 Abs. 1 BGB).

Se o objeto do negócio real, no entanto, for a transferência da propriedade de bem imóvel - e não sua mera gravação como direito real de garantia ou direito real sobre coisa alheia - o acordo de vontade recebe o nome de Auflassung. Assim, estabelece o § 925 I BGB que: "O acordo de vontade entre alienante e adquirente, conforme estabelece o § 873, necessário para a transmissão de propriedade de bem imóvel (Auflassung), precisa ser declarado na presença simultânea das duas partes, perante a autoridade competente. Todo notário será competente para recebimento da Auflassung, sem prejuízo da competência de outras autoridades. A Auflassung também poderá ser declarada em um acordo judicial ou em plano de insolvência aprovado".

Bibliografia 

BAUR, Fritz - BAUR, Jürgen F. - STÜRNER, Rolf, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009. 

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JOOST, Detlev, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb - U. Noack - H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln-Berlin-Bonn-München, Carl Heymanns Verlag, 1998. 

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1 D. Joost, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb - U. Noack - H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln-Berlin-Bonn-München, Carl Heymanns Verlag, 1998, p. 1163.

2 O. Jauernig, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, JuS 1994, p. 721; J. Petersen, Das Abstraktionsprinzip, Jura 2004, p. 99, sobre a distinção entre separação e abstração. Também D. Joost, Trennungsprinzip cit., pp. 1163-1164, aponta para a distinção entre a "transmissão" e o "contrato causal", como ato jurídico próprio. Quanto ao negócio de disposição adota a nomenclatura "contrato real" ("dinglicher Vertrag"), que remonta à doutrina de Savigny (cf. F. C. von Savigny, System des heutigen Römischen Rechts, vol. III, Berlin, Veit, 1840, p. 313).

3 Veja, dentre as várias possíveis combinações possíveis, a descrita por M. Pietrek, Konsens über Tradition: Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 44-45. Também sobre o tema: F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, pp. 113 e seguintes.

4 S. Habermeier, Das Trennungsdenken - Ein Beitrag zur europäischen Privatrechtstheorie, AcP 195 (1995), p. 283, sobretudo referências na nota de rodapé n. 1. Também D. Joost, Trennungsprinzip cit., p. 1163, com referências na nota de rodapé n. 14.

5 K. Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts - Zweiter Band - Besonderer Teil, 1. Halbband, 13ª ed., München, Beck, 1986, p. 10, tratando do contrato de compra e venda. 

6 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10ª ed., München, Beck, 2012, p. 325.

7 K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 212, ao diferenciar os contratos de alienação (Veräußerungsverträge) dos de transferência de um bem para utilização (Verträge über Gebrauchsüberlassung), como a locação. Os contratos de alienação são aqueles direcionados à transmissão definitiva de uma coisa do patrimônio de uma pessoa ao de outra, isto é, alteração da alocação de bens ("Wechsel in der Güterzuordnung").

8 Cf. §§ 433 I; 489 c.c. 433 I; 516 BGB.

9 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil cit., p. 326.

10 M. Wandt, Gesetzliche Schuldverhältnisse: Deliktsrecht, Schadensrecht, Bereicherungsrecht, GoA, 9ª ed., München, Franz Vahlen, 2019, p. 123. Também: K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 21.

11 F. Baur - J. F. Baur - R. Stürner, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009, p. 57. Cf. K. Larenz, Lehrbuch cit., p. 21.

12 Para breve distinção entre Leistungskondiktion e Nichtleistungskondiktion, cf. por todos: M. Wandt, Gesetzliche cit., pp. 120-122.

13 F. Baur - J. F. Baur - R. Stürner, Sachenrecht, 18ª ed., München, Beck, 2009, p. 57.

14 R. Stürner, in T. Soergel (fundador), Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 14, 13ª ed., Stuttgart, W. Kohlhammer, 2002, p. 105.

15 Como apontou-se em ponto próprio, o registro é do negócio translativo (negócio obrigacional) e não de um acordo próprio do direito das coisas, como ocorre na Alemanha; lá o registro é da Auflassung (acordo para a transmissão de bens imóveis, conforme § 925 Abs. 1 BGB). Sobre a questão específica do princípio do consenso formal (§ 19 GBO) e material (§ 20 GBO).

16 Como já se discutiu anteriormente, a expressão "pelos negocios jurídicos", contida no art. 1.267 caput CC, não faz referência à existência de um negócio jurídico de disposição no direito brasileiro. O plural está direcionado a abranger todos os negócios jurídicos obrigacionais que visam à transmissão da propriedade de bens móveis (e.g. compra e venda, doação, permuta, etc.).

17 J. Kohler, in Münchner Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 8, 8ª ed., München, Beck, 2020, p. 114.

18 Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich, vol. III: Sachenrecht, 2a ed., Berlin/Leipzig, J. Guttentag, 1896, p. 8.

19 M. Wolf - J. Neuner, Allgemeiner Teil cit., p. 326.

20 R. Stürner, in T. Soergel (fundador), Kommentar cit., p. 110.

21 Para crítica à imprecisão conceitual na Alemanha: S. Habermeier, Das Trennungsdenken cit., p. 283.