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Momento da transferência da propriedade na desapropriação e natureza jurídica da imissão provisória na posse

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Atualizado às 09:59

No procedimento judicial de desapropriação, a imissão provisória na posse tem por objetivo transferir a poderes dominiais do bem ao ente público, uma vez efetivado o pagamento em favor do antigo titular e quando alegada urgência, nos termos do art. 15 do decreto-lei 3.365/19411, sobre desapropriação para utilidade pública.

Assim, realizado o pagamento pelo ente público e comprovada a urgência no pedido, ele poderá ser imitido provisoriamente na posse do bem durante o processo judicial de desapropriação e tal imissão será levada a registro, em sentido estrito, na matrícula do imóvel, conforme determinação da lei 11.977/2009.

Recentemente, a lei 14.620/2023 introduziu essa imissão provisória na posse no rol dos direitos reais do Código Civil, elencando-a no inciso XIV do art. 1.2252. Além disso, permitiu que o mesmo direito se torne objeto tanto de hipoteca, pelo art. 1.473, XI, do Código Civil3, quanto de alienação fiduciária em garantia, nos termos do art. 22, §1º, V da lei 9.514/19974, gerando um ativo econômico. Assim, a imissão provisória na posse passou a poder configurar direito real e estar apto a ser hipotecado ou alienado fiduciariamente em garantia pelo ente público.

Verifica-se, ainda, que a lei 14.620/2023 alterou igualmente a Lei dos Registro Públicos em seu art. 176-A, que dispõe sobre a abertura de matrícula decorrente de aquisição originária da propriedade, prevendo expressamente tal abertura para o registro da imissão provisória na posse em procedimento de desapropriação5.

Com todas essas alterações, questiona-se, então: seria tal imissão na posse realmente provisória, como indicado na terminologia legal do decreto-lei 3.365/1941? A controvérsia surge pela necessidade de verificação do momento da transmissão da propriedade para o Poder Público.

Parte da doutrina administrativista entende que, no processo judicial de desapropriação, o bem só se transmite após a condenação no valor a ser pago na sentença e com a integralização desse pagamento, podendo o ente público desistir da desapropriação até o término do processo6.

Parece, nesse sentido, que o decreto-lei 3.365/1941 trata a imissão na posse concedida ao ente público como provisória sob a ótica de que a transferência da propriedade na desapropriação ocorreria apenas após o término do procedimento com a sentença judicial; uma vez efetivada a transferência do bem, a imissão tornar-se-ia definitiva.

Outra corrente, em sentido oposto, afirma que a transmissão do bem ocorre, na verdade, já no momento do pagamento pelo ente expropriante, sendo a sentença do término do processo apenas título hábil para mais um registro da desapropriação no Registro de Imóveis (com efeito, portanto, declaratório)7.

Com as alterações promovidas pela lei 14.620/2023, a última posição parece, de fato, mais adequada. A saber.

O fundamento inicial para a transferência da propriedade ocorrer com o pagamento é o próprio art. 5º, XXIV da CF, que estabelece que a desapropriação se dará, em regra, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, assim, uma vez realizada essa indenização, o texto constitucional já autoriza a efetivação da desapropriação. Ademais, a lei 14.620/2023 possibilitou que a imissão provisória na posse se constitua como direito real e seja objeto de hipoteca e alienação fiduciária em garantia.

O direito real é aquele exercido por seu titular diretamente sobre um bem determinado, que pode gozar e fruir da coisa. Esse direito é oponível erga omnes, de forma que os terceiros são obrigados a respeitar os poderes conferidos pela titularidade do direito real. Existe, portanto, a atribuição de titularidade de um bem a um sujeito, criando-se um vínculo entre a coisa e a pessoa e que poderá ser imposto a uma coletividade indeterminada8.

Os direitos reais (elencados no art. 1.225 do CC), portanto, pressupõem a existência de domínio pelo titular de forma que só detém um direito real quem tiver a titularidade da propriedade ou tiver recebido um direito real por um titular que tenha poder para realizar a oneração do bem.

Não se vislumbra, a princípio, no sistema, a constituição de um direito real em razão de mera "imissão provisória na posse": inicialmente porque a posse por si só não gera direitos reais, constituindo-se uma situação de fato; ademais, a instituição de um direito real em favor de terceiros (fruição, garantia ou aquisição) depende do titular da propriedade.

Assim, tornando-se os direitos oriundos da imissão provisória na posse concedidos em favor de entes públicos direitos reais inseridos no rol taxativo do Código Civil, parece necessário - em alinhamento ao sistema dos direitos reais - que esses entes tenham adquirido, já no momento da imissão provisória na posse, também a propriedade (plena ou onerada)9.

Outra questão que se coloca para a possibilidade de alienação desses direitos em garantia é a segurança do crédito. O objetivo da hipoteca ou da AFG é a concessão de um crédito pelo titular de direitos ou fiduciário, recebendo em garantia pelo devedor ou fiduciante uma propriedade.

Em regra, a propriedade alienada fiduciariamente é a do próprio bem a ser adquirido com o crédito, mas, nos termos do art. 22, §1º, da lei 9.514/1997, outros direitos podem servir como garantia além da propriedade plena, tais como a superfície, o direito real de uso, pertenças e, agora, os direitos decorrentes da imissão provisória na posse em favor de entes públicos. Muito embora a lei permita que alguns direitos sejam alienados fiduciariamente (além da propriedade plena), esses direitos pressupõem uma segurança mínima ao fiduciário.

O grande sentido da concessão do crédito é que a instituição financeira tenha uma garantia para a hipótese de inadimplemento por parte do devedor, a qual será executada para fins de quitação do crédito.

Assim, se considerar-se a possibilidade de desistência da desapropriação pelo ente público entre o período da concessão de imissão provisória na posse e a sentença do processo judicial, esses direitos hipotecados ou alienados fiduciariamente poderiam ser perdidos e, consequentemente, inexistira a garantia dada na hipoteca ou na alienação fiduciária. Em outras palavras, se a propriedade do bem expropriado se transmite apenas ao fim do processo judicial e se permite ao ente público a possibilidade de desistência da desapropriação após a imissão provisória na posse, a alienação desses direitos decorrentes da imissão poderia ser desconstituída com a desistência.

Eventual desistência e desconstituição dos direitos da imissão na posse faria com que, consequentemente, se desconstituísse também a garantia da hipoteca ou da alienação fiduciária; assim, novamente ocorreria uma incongruência no sistema, fugindo-se do objetivo do instituto de concessão de crédito com garantia para a instituição financeira.

Por fim, questiona-se a alteração do art. 176-A da lei 6.015/1973, que possibilitou a abertura de matrícula nova para registrar a imissão provisória na posse decorrente do processo de desapropriação. Teria sentido a abertura de uma matrícula (que pressupõe o direito de propriedade - plena ou onerada) se ainda não tiver ocorrido a transferência do bem?

É igualmente ilógico no sistema realizar a abertura de uma matrícula por aquisição originária de propriedade se essa propriedade ainda não houver sido efetivamente transmitida, correndo-se o risco, inclusive, da necessidade de cancelamento do novo assento, caso o ente público desista da desapropriação no curso do processo.

Pela própria redação do art. 176-A, é o registro de aquisição originária que ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel expropriado, ou seja, o novo assento só será criado por ocorrência da aquisição originária da propriedade pela desapropriação.

Analisando-se ainda mais a fundo o mesmo artigo, tem-se a seguinte redação:

Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando

§ 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023)

I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência

II - carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência

III - escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência

IV - aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela lei 14.620, de 2023)

V - sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Incluído pela lei 14.620, de 2023)

O artigo não só prevê a abertura da matrícula originária pela imissão provisória na posse, como também pela carta de adjudicação ou pela sentença no processo expropriatório específico do art. 1.228 do CC, além da escritura pública no caso de procedimento extrajudicial.

A abertura da matrícula por conta da desapropriação, portanto, pode ocorrer em razão de diversos títulos, podendo-se, por interpretação lógica, deduzir que não é nenhum deles especificamente que enseja a transmissão da propriedade. Se fossem, haveria contradição para a abertura da matrícula, na medida em que o caput prevê que a aquisição originária ensejará a criação do novo assento.

Explica-se: se a aquisição originária fosse efetivamente determinada por algum desses títulos, haveria uma contradição para o momento da transmissão da propriedade, visto que a redação permitiria o registro da aquisição pelo título de imissão provisória na posse, pela carta de adjudicação, pela sentença ou pela escritura pública - ocorrendo cada uma delas em momento diverso.

Assim, há mais sentido ainda no entendimento de que a propriedade (plena ou onerada) se transmite com o pagamento inicial, ocasião anterior a todos esses títulos, servindo os mesmos apenas para regularizar o ingresso da desapropriação no Registro Imobiliário (natureza declaratória).

Outro ponto a ser verificado é a previsão da lei 6.766/1979, sobre o parcelamento do solo urbano. O art. 2ª-A, c, permite que o parcelamento seja realizado por ente da administração pública direta ou indireta habilitado a promover o ato expropriatório com a finalidade de implantação de parcelamento habitacional ou de realização de regularização fundiária de interesse social, desde que tenha ocorrido sua regular imissão na posse.

Mais à frente, o art. 18 dispõe:

Art. 18. Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação, acompanhado dos seguintes documentos:

I - título de propriedade do imóvel ou certidão da matrícula, ressalvado o disposto nos §§ 4º e 5º; (Redação dada pela lei 9.785, de 1999)

§ 4o O título de propriedade será dispensado quando se tratar de parcelamento popular, destinado às classes de menor renda, em imóvel declarado de utilidade pública, com processo de desapropriação judicial em curso e imissão provisória na posse, desde que promovido pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, autorizadas por lei a implantar projetos de habitação. (Incluído pela lei 9.785, de 1999)

§ 5o No caso de que trata o § 4o, o pedido de registro do parcelamento, além dos documentos mencionados nos incisos V e VI deste artigo, será instruído com cópias autênticas da decisão que tenha concedido a imissão provisória na posse, do decreto de desapropriação, do comprovante de sua publicação na imprensa oficial e, quando formulado por entidades delegadas, da lei de criação e de seus atos constitutivos. (Incluído pela lei 9.785, de 1999)

Ocorre, portanto, uma dispensa expressa da apresentação do título de propriedade para que se efetive o registro do loteamento ou desmembramento promovido por ente público, quando ele já tiver sido imitido provisoriamente na posse do bem objeto do parcelamento que estiver em processo de desapropriação.

Novamente, parece pouco provável que o sistema permitiria a realização do parcelamento do solo de um bem ainda não adquirido efetivamente pela Administração Pública, cuja desapropriação fosse passível de desistência no curso do processo. O texto da lei 6.766/1979 se alinha com a ideia de que, efetivado o pagamento (motivo pelo qual foi imitido o ente público na posse do bem), a propriedade já se transfere na desapropriação. Assim, o título de propriedade é dispensado por ser meramente declaratório.

Diante das considerações e entendendo pelo posicionamento de que a transmissão da propriedade na desapropriação ocorre com o pagamento inicial pelo ente público, pode-se considerar que a imissão provisória na posse, na verdade, não tem natureza provisória.

Ocorrendo a transferência com o pagamento, autoriza-se a imissão do ente público na posse do bem, já de forma definitiva, visto que não haverá a possibilidade, por regra, de desistência da desapropriação, correndo em juízo apenas discussões posteriores sobre a complementação do pagamento ou outras questões, e não mais sobre a efetivação da desapropriação em si.

Parece que o termo "imissão provisória" foi mantido nas inserções realizadas pela lei 14.620/2023 por se alinhar ao texto do decreto-lei 3.365/1941, porém, os direitos dela oriundos já advêm da transmissão da propriedade efetivada com o pagamento.

Nesse sentido, o título de imissão na posse (que é definitivo) serve para permitir a regularização dos direitos para o ente público, antes de se aguardar a sentença final e a carta de adjudicação. Assim, o ente público não precisará aguardar o término do processo para ter um título hábil para ingresso no Registro de Imóveis, servindo já a imissão para possibilitar a constituição de direitos reais sobre o bem, sua hipoteca ou alienação em garantia, o parcelamento de solo, entre outros direitos decorrentes da propriedade constituída.

Sejam felizes!

__________

1 Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens;

§ 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito:  (Incluído pela lei 2.786, de 1956)

a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial; (Incluída pela lei 2.786, de 1956)

b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido; (Incluída pela lei 2.786, de 1956)

c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; (Incluída pela lei 2.786, de 1956)

d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel.  (Incluída pela lei 2.786, de 1956)

§ 2º A alegação de urgência, que não poderá ser renovada, obrigará o expropriante a requerer a imissão provisória dentro do prazo improrrogável de 120 (cento e vinte) dias. (Incluído pela lei 2.786, de 1956)

§ 3º Excedido o prazo fixado no parágrafo anterior não será concedida a imissão provisória. (Incluído pela lei 2.786, de 1956)

§ 4o  A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente. (Incluído pela lei 11.977, de 2009) 

2 Art. 1.225. São direitos reais:

XIV - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão." (NR)

3 Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca:

XI - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. (Incluído pela lei 14.620, de 2023)

4 Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

§ 1o  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:    

V - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e a respectiva cessão e promessa de cessão; (Incluído pela lei 14.620, de 2023)

5 Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023)

§ 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023)

I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021)    Vigência

6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 26º ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 881; MEIRELLES, Hely Lopes; e BURLE FILHO, Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 42ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 743-745; MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1132 e 1137; GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 775.

7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 243. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 1204-1205; KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 2. p. 2095.

8 Texto retirado de KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 162.

9 A discussão sobre o tipo de direito real será retomada em coluna posterior.