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O estranho caso do inimputável capaz - Parte III

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Atualizado em 23 de novembro de 2015 13:29

*O artigo foi escrito em coautoria com Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli

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Vimos no último artigo que um dos elementos da culpabilidade é a imputabilidade, que pode ser definida como a possibilidade do sujeito entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento1. Em relação aos sujeitos com doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, o Código Penal adotou o critério biopsicológico, segundo o qual a verificação da imputabilidade do sujeito deve levar em conta duas condições: previsão legal da causa de exclusão e se no momento da ação ou omissão criminosa o sujeito possuía ou não a plena capacidade de entender e de querer2; neste sentido dispõe o art. 26, "caput", do Código Penal: "É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento".

Já o parágrafo único do mesmo dispositivo cuida dos semi-imputáveis, ou seja, aqueles que por perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não são inteiramente capazes de entenderem o caráter ilícito do fato ou de se determinarem de acordo com esse entendimento. Aos inimputáveis deve ser aplicada medida de segurança (absolvição imprópria), enquanto aos semi-imputáveis poderá ser imposta medida de segurança ou pena reduzida, sendo vedada a aplicação cumulativa de pena e medida de segurança, por força da adoção do sistema vicariante (CP, arts. 97 e 98).

Pressuposto para o reconhecimento da inimputabilidade e imposição de medida de segurança é que o sujeito tenha praticado um fato típico e antijurídico, pois, caso contrário, deverá ser absolvido plenamente (absolvição própria). A imposição de medida de segurança, ao contrário da pena, não leva em conta a culpabilidade do sujeito, justamente porque não se pode fazer um juízo de reprovação - ou de censura - sobre o inimputável, por lhe faltar cognoscibilidade para entender a ilicitude de sua conduta; faz-se, pois, um juízo de periculosidade, que é avaliação da potência do indivíduo para converter-se em causa de ações ou omissões lesivas, exame que determinará a medida de segurança aplicável e sua duração (prognose), nos termos dos arts. 96 e 97 do Código Penal.

Pois bem. Até o advento da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), com vigência a partir do dia 3 de janeiro de 2016 (art. 127), havia uma plena harmonia em nosso sistema jurídico. Isso porque o Código Penal reconhece que o sujeito que possui doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não tem condições de entender a ilicitude de qualquer ação ou omissão de natureza criminosa, desde que, no momento do delito, esteja acometido de tal perturbação, faltando-lhe, portanto, cognoscibilidade, o que afasta sua culpabilidade e inviabiliza a imposição de pena, que deverá ser substituída por medida de segurança.

Na mesma esteira, o art. 3º do Código Civil inclui entre os absolutamente incapazes "aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil" (inciso II), bem como "que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade" (inciso III), enquanto o art. 166, inciso I do mesmo diploma fulmina de nulidade absoluta o negócio jurídico celebrado pelo absolutamente incapaz que não esteja representado por seu curador. Já o art. 4º, incisos II e III, do Código Civil elenca entre os relativamente incapazes "os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por enfermidade mental, tenham o discernimento reduzido", bem como "os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo", sendo que o art. 171, inciso I confere a possibilidade de anulação do negócio jurídico celebrado pelo relativamente incapaz não assistido.

Portanto, a lei civil, assim como a penal, reconhece a falta de cognoscibilidade e autodeterminação do sujeito acometido por enfermidade ou doença mental: a primeira, no que se refere aos negócios jurídicos, e a segunda, em relação aos crimes e contravenções penais. Embora os arts. 3º e 4º do Código Civil, e 26, "caput", do Código Penal não utilizem exatamente as mesmas expressões para se referirem aos sujeitos que buscam proteger, certo é que, genericamente, ambos dizem respeito às pessoas com deficiência ou enfermidade.

De acordo com a clássica tipologia dos criminosos proposta por Enrico Ferri, o inimputável por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado pode ser incluído os "delinquentes loucos", ou seja, aqueles levados ao crime não apenas em razão da enfermidade mental, mas também "pela atrofia do senso moral"3, muito embora o mesmo autor reconheça que qualquer criminoso "é sempre um anormal"4; entre os doentes mentais podemos citar os psicopatas, esquizofrênicos, paranóicos e portadores de paralisia cerebral, enquanto Nélson Hungria inclui entre os sujeitos com desenvolvimento mental incompleto ou retardado os oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais) e os surdos mudos que não se comunicam5. Tais sujeitos merecem especial proteção e tratamento diferenciado pelo Estado, seja no âmbito civil, seja no penal.

Não obstante, o novo Estatuto terminou por desproteger justamente as pessoas que deveria resguardar, ao praticamente extinguir o sistema de proteção dos incapazes previsto no Código Civil; como já afirmado neste mesmo espaço, a nova lei inclui os incapazes no grupo dos capazes, porém "os inclui para desprotegê-los e abandoná-los a sua própria sorte"6. Mas o que causa maior perplexidade é o fato da nova lei romper a harmonia até então existente entre o Direito Civil e Penal, de modo que, a partir da derrogação dos arts. 3º e 4º do Código Civil, teremos o seguinte quadro, no que se refere às pessoas com deficiência:

a) Para fins penais, aplica-se o art. 26, "caput", do Código Penal, que reconhece a inimputabilidade do sujeito que, por doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado, é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento; portanto, qualquer que seja o delito praticado por esse sujeito, desde os mais brutais, v.g., homicídio, latrocínio ou estupro, até os mais sofisticados, e.g., estelionato, apropriação indébita e falsidade ideológica, a lei o isentará de pena, cabendo ao magistrado lhe impor medida de segurança, conforme sua periculosidade;

b) Para fins civis, aplicam-se os novos arts. 3º e 4º do Código Civil, com vigência a partir de 3 de janeiro de 2016 (art. 127 da lei 13.146/15), e as demais disposições do Estatuto, que reconhecem a validade de qualquer negócio jurídico celebrado pela pessoa com deficiência, desde os mais simples, como uma compra e venda de bem móvel, até os mais complexos, como a aquisição de um automóvel por contrato de "leasing" mediante alienação fiduciária em garantia, muito embora o art. 84, parágrafo 1º, do novo Estatuto disponha que "quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei", apesar de não ser incapaz.

Com efeito, o novo diploma "criou" um sujeito muito estranho, que desconhece a caráter ilícito de um crime de homicídio, latrocínio, estupro, enfim, de toda gama de delitos existentes no arcabouço jurídico-penal, mas, por outro lado, entende perfeitamente a natureza de qualquer negócio jurídico, desde os mais corriqueiros e que não exigem profundo conhecimento sobre o seu conteúdo, como a aquisição de um bem móvel pela ocupação (CC, art. 1.263), até os contratos mais complexos e sofisticados, como os de "Factoring" e "time sharing", não tendo problemas, ainda, para se casar e conhecer todas as implicações do regime de bens que eleger.

Por fim, há uma importante questão relacionada às sentenças de absolvição imprópria, que impõem medida de segurança. Poderia o juiz penal, considerando a total "capacidade do inimputável" no âmbito civil, estabelecida pela canhestra lei 13.146/15, impor na sentença a obrigação de reparar o dano, fixando o valor mínimo da indenização devida à vítima, com fundamento no art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, que adotou o sistema da solidariedade7? Suponha-se que Tício, inimputável por deficiência mental, efetue disparos de arma de fogo contra Caio, ferindo-o, não consumando o delito por circunstâncias alheias à sua vontade; submetido a processo por tentativa de homicídio, é absolvido sumariamente ao final do "judicium accusationis", impondo-se medida de segurança em razão da tese de inimputabilidade ser a única da Defesa, nos termos da lei 11.689/08, que alterou o art. 415 do Código de Processo Penal8. Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Tício possui plena capacidade para compreender o ato ilícito que praticou, apesar de, estranhamente, não entender a ilicitude desse mesmo fato na esfera penal.

Parece-nos que a resposta a esta indagação só pode ser negativa. Apesar da melhor doutrina reconhecer a natureza condenatória da sentença que impõe medida de segurança, adquirindo esta, na lição de Frederico Marques, "as qualidades de título penal executório"9, ao juiz penal deve ser vedado estabelecer o valor mínimo para a reparação do dano causado pelo delito em tal hipótese, ainda que se cuide de absolvição imprópria, sob pena de analogia "in malam partem"; vale lembrar que a própria isenção de pena ao inimputável está prevista no artigo anterior, que trata das hipóteses de absolvição (CPP, art. 386, VI)10. No entanto, de acordo com o novo Estatuto, poderá a vítima acionar diretamente o seu algoz, inimputável, porém estranhamente capaz, na esfera civil, não se aplicando a responsabilidade subsidiária e mitigada prevista no art. 928, "caput" e parágrafo único, do Código Civil11, o que revela o total descompasso entre as consequências civis e penais provenientes de um mesmo fato gerador.

Em suma, o Estatuto da Pessoa com Deficiência rompeu a harmonia até então existente entre o Direito Civil e Penal, dificultando assim uma compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico em questão, e, mais do que isso, desamparando justamente as pessoas que pretendia proteger, ao alterar um sistema protetivo eficaz e que não necessitava de reparos.

Referências Bibliográficas

DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Trad. de Luiz de Lemos D'Oliveira. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva e C., 1931.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, Tomo 2.

KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELI, Bruno de Ávila. As aberrações da Lei 13.146/2015.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador.

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1 Nélson Hungria sabiamente adverte que "segundo um critério tradicional, que o Código rejeitou, haveria que distinguir entre responsabilidade e imputabilidade, significando esta a capacidade de direito penal ou abstrata condição psíquica da punibilidade, enquanto aquela designaria a obrigação de responder penalmente in concreto ou de sofrer a pena por um fato determinado, pressuposta a imputabilidade. A distinção é bizantina e inútil. Responsabilidade e imputabilidade representam conceitos que de tal modo se entrosam, que são equivalentes, podendo, com idêntico sentido, ser consideradas in abstracto ou in concreto, a priori ou a posteriori" (Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, Tomo 2, p. 320-321).

2 Sobre o tema, oportuna a lição de Nélson Hungria: "O método biopsicológico exige a averiguação da efetiva existência de um nexo de causalidade entre o anômalo estado mental e o crime praticado, isto é, que êsse estado, contemporâneo à conduta, tenha privado completamente o agente de qualquer das mencionadas capacidades psicológicas (quer a intelectiva, quer a volitiva)" (op. cit., p. 324-325).

3 Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Trad. de Luiz de Lemos D'Oliveira. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva e C., 1931, p. 258-259. As chamadas "categorias antropológicas de delinquentes", segundo o mesmo autor, são: delinquente nato, louco, habitual, ocasional e passional" (p. 256-264).

4 Ibid., p. 251.

5 Op. cit., p. 336.

6 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELI, Bruno de Ávila. As aberrações da Lei 13.146/2015.

7 Sobre o sistema da solidariedade: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 592. A respeito da retroatividade do referido dispositivo, confira-se: DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 597.

8 Dispõe o art. 415 do Código de Processo Penal: "O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado quando:

I- provada a inexistência do fato;

II- provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

III- o fato não constituir infração penal;

IV- demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva".

9 Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3, p. 43.

10 O art. 386 do Código de Processo Penal assim dispõe: "O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

(.)

VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência".

11 No mesmo sentido: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Acesso em 28.08.2015. Dispõe o art. 928 do Código Civil: "O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem".