Integridade corporativa e risco de infiltração do crime organizado
sexta-feira, 26 de dezembro de 2025
Atualizado em 23 de dezembro de 2025 10:28
A infiltração de organizações criminosas na economia formal deixou de ser fenômeno periférico para se tornar risco estrutural de integridade e continuidade dos negócios. O movimento é racional: para usufruir dos proveitos ilícitos de crimes como tráfico de drogas, contrabando, crimes ambientais e corrupção, facções precisam reinserir esses valores na economia legítima, conferindo-lhes aparência de licitude por meio de negócios formais.
Ao ocupar cadeias produtivas e estruturas empresariais, essas organizações ampliam capacidade econômica, diversificam investimentos e se aproximam de instâncias decisórias públicas e privadas. É nesse contexto que a PLD - prevenção à lavagem de dinheiro deixa de ser tema restrito ao setor financeiro ou às "pessoas obrigadas" definidas na lei 9.613/1998 e passa a integrar os programas de integridade das empresas.
Setores vulneráveis e formas de infiltração
Estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Esfera mostram que facções originalmente ligadas ao narcotráfico expandiram suas atividades e investimentos para múltiplos mercados, legais e ilegais, explorando setores com alta capilaridade, circulação de numerário, informalidade e regulação inexistente ou em consolidação1. O Mapa das Organizações Criminosas 2024, elaborado pela SENAPPEN, identificou 88 facções atuantes no Brasil, com forte capacidade de articulação financeira e diversificação de investimentos, incluindo atuação nos setores de combustíveis, bebidas, cigarros, apostas esportivas, criptoativos, fintechs e serviços em geral2.
Distribuição pulverizada, cadeias informais e alta circulação de dinheiro em espécie criam vulnerabilidades em setores como combustíveis e bebidas: pois facilitam mistura de receitas lícitas e ilícitas, uso de empresas de fachada e inserção de mercadorias falsificadas. Por sua vez, alguns pontos de venda acumulam funções para as organizações criminosas: geram receita aparente e funcionam como plataforma logística para outros ilícitos.
No ecossistema financeiro e de pagamentos, a digitalização intensiva e a inovação regulatória incremental criaram oportunidades de uso de fintechs, contas digitais, estruturas de BaaS - Banking as a Service e criptoativos para lavagem de dinheiro. Operações policiais como a "Carbono Oculto" demostraram o emprego de fintechs para simular operações financeiras3. A "Hydra", deflagrada em 2025, indicou a utilização de contas digitais para permitir ocultação de beneficiários finais, com transações suspeitas envolvendo inclusive operações com ativos virtuais4. A "Colossus", por sua vez, revelou lavagem de dinheiro mediante movimentação bilionária com criptoativos e empresas de fachada5.
Os casos recentes permitem identificar padrões recorrentes de infiltração por organizações criminosas - diversos e mutáveis, escapando à enumeração exaustiva, mas com traços destacáveis para compliance. Incluem empresas de fachada com endereços massificados e estrutura incompatível ao volume de negócios, como a sala comercial que sediava mais de cem CNPJs em São Paulo6; cooptação de profissionais em áreas sensíveis (logística, financeiro, jurídico), agravada pela presença de milhões em áreas dominadas por facções e milícias7 que confere relevância aos procedimentos de know your employee; e infiltração em setores contratados pelo poder público (transporte, lixo, saúde, concessões), explorando fragilidades nas contratações estatais.
Arcabouço de PLD e riscos regulatórios e penais
O sistema brasileiro de PLD/FTP, estruturado em torno da lei 9.613/1998, combina tipificação penal da lavagem de dinheiro e desenho de um sistema nacional de prevenção baseado na atuação coordenada de pessoas obrigadas e autoridades competentes. Bancos, corretoras, seguradoras, imobiliárias, joalherias, factoring e outros setores foram selecionados em razão de sua maior exposição ao risco de lavagem de dinheiro e, por isso, assumem obrigações específicas de controles internos, manutenção de registros e comunicação de operações suspeitas ao COAF, sob supervisão de reguladores setoriais como Banco Central, CVM, SUSEP e demais órgãos.
A circunstância de determinada empresa não se enquadrar como "pessoa obrigada" não a afasta, contudo, dos riscos associados à infiltração do crime organizado. Empresas não reguladas não estão sujeitas ao risco regulatório típico (multas administrativas, suspensão de atividades, perda de licenças setoriais), mas permanecem expostas a bloqueio de ativos, constrições patrimoniais, e responsabilização penal de administradores e colaboradores em razão do enforcement criminal. Ademais, em mercados de capitais e cadeias globais de suprimentos, o dano reputacional decorrente da associação a organizações criminosas pode comprometer valor de mercado, acesso a crédito e relações comerciais estratégicas.
No plano penal, embora a pessoa jurídica não responda criminalmente por lavagem de dinheiro, o patrimônio corporativo pode ser atingido por medidas cautelares. Ademais, executivos, administradores e, em determinadas circunstâncias, até profissionais de compliance podem ser investigados quando tenham contribuído de maneira relevante para a prática do ilícito ou, na qualidade de garantidores, disponham de informações suficientes para identificar a irregularidade e, ainda assim, se omitam na adoção das medidas cabíveis que estavam ao seu alcance e dentro de sua esfera de poder8.
No âmbito internacional, os riscos também são relevantes: o Departamento de Justiça dos EUA tem reforçado o uso combinado da FCPA, das normas de lavagem de dinheiro e das regras sobre material support para responsabilizar empresas que, por ação ou omissão em seus programas de PLD, facilitem fluxos financeiros ligados a organizações criminosas transnacionais. Para grupos brasileiros expostos ao sistema financeiro norte-americano ou a mercados nos EUA, isso se traduz em potencial de enforcement extraterritorial.
PLD como gestão de riscos para setores sem obrigações regulatórias
Tratar PLD apenas como "cumprimento regulatório" é insuficiente em um cenário em que organizações criminosas se sofisticam e diversificam seus vetores de infiltração. Assim, empresas de diversos setores sem obrigações regulatórias de PLD têm empregado abordagem baseada em riscos para atacar riscos de lavagem de dinheiro, independentemente da existência de obrigações regulatórias. Essa abordagem funciona como critério de racionalidade, permitindo diferenciar produtos, clientes, regiões e canais à luz da sua exposição concreta à captura por facções, orientando a alocação proporcional de recursos.
Nesse contexto, o primeiro passo deve ser a avaliação interna de riscos, com base em um mapeamento dinâmico de pontos de contato vulneráveis - fornecedores, clientes, canais de distribuição, logística, compras -, considerando inclusive exposição setorial e geográfica a facções. Com base nessa avaliação, a empresa poderá realizar a implementação de uma política de PLD com governança clara (job descriptions precisas, documentação de decisões colegiadas, fluxos de escalonamento), além de treinamentos direcionados para a detecção de indícios de infiltração em interações com clientes e parceiros e atividades de monitoramento contínuo.
Ademais, são ferramentas relevantes para o programa de PLD os procedimentos de "conheça o seu" - cliente (KYC), fornecedor (KYS) e parceiro (KYP). A implementação e/ou fortalecimento de tais procedimentos implica diligências para compreender beneficiários finais, histórico reputacional, vínculos com pessoas expostas politicamente e exposição geográfica a contextos de atuação de facções, com o apoio de bases públicas, privadas e ferramentas tecnológicas de análise. Para terceiros de alto risco - como aqueles inseridos em setores já mapeados como vulneráveis (apostas, cripto, combustíveis, determinados serviços em espécie) - impõe-se due diligence aprofundada.
No âmbito dos procedimentos de "conheça o seu" e monitoramento, comportamentos atípicos no plano financeiro - como movimentações em espécie incompatíveis com o setor, uso recorrente de contas de terceiros, pagamentos antecipados sem garantias, e preços sistematicamente muito abaixo ou acima de mercado - devem ser lidos como indícios relevantes.
A eles se somam sinais estruturais, como configurações societárias opacas, múltiplos níveis interpostos, beneficiários finais em jurisdições de risco, alterações frequentes de quadro societário e objeto social sem explicação operacional, bem como endereços compartilhados por grande número de empresas e incongruência entre capacidade física e volume de transações. Além disso, muitas das red flags tradicionalmente utilizadas nas análises de riscos anticorrupção se aplicam ao contexto de captura empresarial, como contratos sem justificativa econômica plausível, margens incomuns, uso injustificado de intermediários, e relações pouco transparentes com agentes públicos.
PLD e integridade estratégica
No estágio atual de sofisticação do fenômeno de captura empresarial por facções, PLD integra organicamente os programas de integridade - ao lado da abordagem de riscos anticorrupção e da agenda ESG -, compartilhando relevância em comitês, métricas e canais de reporte. Conselhos devem tratá-lo com prioridade equivalente, cobrando políticas específicas, relatórios periódicos e a alocação de recursos compatíveis com a exposição real ao risco.
No plano prático, o protagonismo do programa de PLD na agenda de integridade se mede menos pela existência de políticas e mais pela qualidade das decisões que informa: recusa ou redimensionamento de relações com terceiros de risco, ajustes em modelos de negócio expostos a setores vulneráveis, revisão de incentivos comerciais e participação efetiva em discussões estratégicas (expansão geográfica, novos produtos, fusões e aquisições). Quando a análise de riscos de lavagem passa a influenciar escolhas de alto impacto, PLD se converte, de fato, em ferramenta de proteção e geração de valor para a empresa e seus administradores.
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Referências
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão. São Paulo: Marcial Pons, 2017.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO ESFERA. Lavagem de dinheiro e enfrentamento ao crime organizado no Brasil. São Paulo, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2025.?
G1, São Paulo, 16 out. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2025.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. GAECO denuncia três que usaram fintechs para lavar dinheiro em benefício de facção. São Paulo, 24 mar. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 09 dez. 2025.?
POLÍCIA FEDERAL. Operação Colossus combate lavagem de dinheiro no mercado de criptomoedas. Brasília, 21 set. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 16 dez. 2025.
PIAUÍ. O hub empresarial do PCC na Avenida Paulista. São Paulo, 2025. Disponível aqui. Acesso em 10 dez.2025
RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Operação Carbono Oculto: RFB e órgãos parceiros combatem organização criminosa que atuava no ramo de combustíveis. Brasília, 30 set. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 09 dez. 2025
SENAPPEN. Mapa das Organizações Criminosas 2024. Brasília, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2025.
1 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO ESFERA. Lavagem de dinheiro e enfrentamento ao crime organizado no Brasil. São Paulo, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2025.?
2 SENAPPEN. Mapa das Organizações Criminosas 2024. Brasília, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2025.
3 RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Operação Carbono Oculto: RFB e órgãos parceiros combatem organização criminosa que atuava no ramo de combustíveis. Brasília, 30 set. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 09 dez. 2025
4 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. GAECO denuncia três que usaram fintechs para lavar dinheiro em benefício de facção. São Paulo, 24 mar. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 09 dez. 2025.?
5 POLÍCIA FEDERAL. Operação Colossus combate lavagem de dinheiro no mercado de criptomoedas. Brasília, 21 set. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 16 dez. 2025.
6 PIAUÍ. O hub empresarial do PCC na Avenida Paulista. São Paulo, 2025. Disponível aqui. Acesso em 10 dez.2025
7 G1, São Paulo, 16 out. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 10 dez. 2025.
8 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

