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UMA Migalhas

Os mais variados ramos e temas do Direito, sempre escritos por mulheres.

Clarissa Höfling, Claudia Bernasconi e Danyelle Galvão
Antes de iniciar o artigo, gostaria de registrar o orgulho de integrar a UMA, um coletivo que tem sido fundamental para o apoio, a troca de experiências e o fortalecimento das mulheres advogadas em um ambiente jurídico ainda majoritariamente masculino. Agradeço o espaço para discutir tecnicamente uma questão de grande relevância para o Direito e processo criminal: a (i)legalidade do compartilhamento de RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira pelo Coaf a pedido de autoridades de persecução penal. Como é de conhecimento de quem acompanha a matéria, essa discussão tem sido objeto de intensos debates judiciais. Em 2019, ao julgar o RE 1.055.941 (Tema 990), o STF admitiu o compartilhamento, sem autorização prévia, de RIFs e de procedimentos da Receita Federal, desde que respeitados quatro requisitos: (i) sigilo; (ii) existência de procedimento formalmente instaurado; (iii) possibilidade de controle judicial posterior; e (iv) uso de canais oficiais. Após o julgamento, remanesceu a dúvida sobre a legalidade do compartilhamento dos RIFs nas hipóteses em que a iniciativa não parte do Coaf, mas das próprias autoridades de persecução penal, que solicitam diretamente tais informações ao órgão. No âmbito do STJ, as turmas com competência criminal apresentavam entendimentos divergentes sobre o tema. A 6ª turma considerava ilícito o compartilhamento de RIFs mediante solicitação direta das autoridades de persecução penal, sem prévia autorização judicial1. Já a 5ª turma admitia o intercâmbio de informações, desde que houvesse um procedimento de investigação formalmente instaurado, afastando a licitude em casos de procedimentos de apuração prévios às investigações criminais2. Diante da divergência, a matéria foi afetada à 3ª seção do STJ, no julgamento conjunto do agravo no REsp 2.150.571, do RHC 196.150 e do RHC 174.173. Por maioria, a seção concluiu pela ilegalidade do compartilhamento, sem autorização judicial, de relatórios de inteligência financeira pelo Coaf a pedido de autoridades penais. Nos termos do acórdão no AgRg no REsp 2.150.571: 3. O compartilhamento de dados financeiros por meio de solicitação direta pelos órgãos de persecução penal sem autorização judicial não é permitido, conforme interpretação do art. 15 da lei 9.613/1998. 4. A decisão do STF no Tema 990 da repercussão geral não abrange a solicitação direta de dados financeiros por autoridades de persecução penal, mas apenas o compartilhamento de informações do Coaf e da Receita Federal para esses órgãos. 5. A autorização judicial constitui elemento material necessário para a solicitação direta de informações sigilosas, sobrepondo-se a qualquer discussão sobre a natureza jurídica de um procedimento formal. No âmbito do STF, o tema ainda não foi uniformizado. A 1ª turma entende que o compartilhamento dos RIFs a pedido das autoridades foi objeto de deliberação pelo plenário no julgamento do Tema 990, constando expressamente do voto dos ministros naquela oportunidade3. Além disso, admite a licitude desse compartilhamento mesmo antes da instauração de procedimentos investigativos, abrangendo fases preliminares como "notícia-crime em verificação" e "notícia de fato"4. A 2ª turma do STF, por seu turno, ao tratar do compartilhamento de dados entre a Receita Federal e as autoridades penais, matéria que também integrou o julgamento do Tema 990, decidiu ser ilegal a solicitação direta de dados fiscais pelo Ministério Público, utilizando o precedente citado como referência5. Após a uniformização do entendimento na 3ª seção do STJ, a matéria já é objeto de dois processos conhecidos no STF, que questionam o entendimento do Tribunal Superior: a Rcl 79.982/SP e o RE 1.537.165, este último com repercussão geral já reconhecida. Adicionalmente, está pendente de julgamento no STF a ADI 7624 ajuizada pelo CFOAB - Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da qual se pleiteia a interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 15 da lei 9.613/1998 (LLD - lei de lavagem de dinheiro), que trata da possibilidade de compartilhamento de informações do Coaf com os órgãos de persecução penal. Diante desse contexto, o STF deverá, em breve, definir os contornos constitucionais da matéria. Neste cenário, o objetivo deste artigo é contribuir com a resposta a duas questões centrais: (a) a legalidade do compartilhamento de RIFs a pedido de autoridades de persecução penal e sem autorização judicial foi efetivamente decidida no julgamento do Tema 990? E, caso positivo, (b) os fundamentos adotados naquela ocasião permanecem adequados ou há razões jurídicas supervenientes que justifiquem um overruling desse entendimento? Para responder ao primeiro questionamento, é necessário atentar à distinção entre ratio decidendi e oibter dictum. Como ensina Danyelle Galvão, no primeiro caso, considera-se "a tese jurídica utilizada para solucionar o caso concreto, construindo uma norma jurídica geral e abstrata que poderá ser utilizada em casos futuros, a depender da similitude fática"6. Ainda segundo a autora, a ratio decidendi "não se confunde com a fundamentação da decisão judicial, apesar de nela se encontrar"7. O obter dictum, por sua vez, consiste em "um argumento incidental, lateral ou comentário/observação tangencial de passagem que não possui importância para a solução do caso concreto ou que não é objeto da causa"8.  Em outras palavras, fica claro que nem tudo o que é mencionado em um precedente adquire força vinculante: apenas a ratio decidendi deve ser observada em casos futuros. Fixadas essas premissas, a leitura do acórdão proferido no julgamento do Tema 990 permite concluir que, embora alguns Ministros tenham feito referências ao compartilhamento de relatórios de inteligência a pedido das autoridades penais, essa questão não integrou a ratio decidendi da decisão. O objeto fático-jurídico efetivamente julgado dizia respeito ao compartilhamento de informações sigilosas por iniciativa da Receita Federal e do Coaf - e não à via inversa. Adicionalmente, a menção ao fluxo inverso (autoridade ? Coaf) surgiu apenas de forma incidental, em razão de nota explicativa encaminhada pelo próprio Coaf durante o trâmite do processo. Tal referência foi acessória e não essencial para o deslinde da controvérsia, o que reforça seu caráter de obiter dictum. Nada obstante, ainda que fosse possível considerar que o compartilhamento dos RIFs a pedido das autoridades integrou a ratio decidendi e formou a tese vinculante, é necessário investigar se há modificações no cenário social e/ou jurídico que permitam avaliar a necessidade de superação do precedente (overruling). No cenário jurídico, a mudança é evidente. Como ensina Heloísa Estellita9, ao tempo do julgamento do Tema 990 (ano de 2019), ainda não havia sido promulgada a EC 115/22 - que incluiu expressamente a proteção de dados pessoais no rol dos direitos fundamentais (art. 5º, LXXIX) - nem entrado em vigor a LGPD - lei 13.709/18). Esta alteração jurídica tem impacto significativo e direto sobre a questão aqui tratada. O reconhecimento expresso do direito à proteção de dados como direito fundamental subordina a intervenção estatal e penal nesta esfera de direitos à regra da abstenção e exceção de intervenção, que, conforme Heloísa Estellita, possui três pressupostos: um formal, que exige que toda "intervenção tem de ser veiculada em lei em sentido formal, ou seja, uma autorização democrática dada pelo legislador"10 e dois materiais, que consistem na vedação de atingir o núcleo dos direitos fundamentais e na necessidade de proporcionalidade11. Não há dúvidas de que a elaboração de RIFs pelo Coaf pressupõe diversas operações de tratamento de dados dos cidadãos12- sejam financeiros, sensíveis ou protegidos pelo sigilo -, como a coleta e recepção, o processamento, a avaliação, o armazenamento e a comunicação de dados13. Todas essas atividades devem observar, de forma estrita, os limites e as condições estabelecidos em lei em sentido formal. Ao se analisar a LLD, verifica-se que o sistema de prevenção ali instituído autoriza apenas operações específicas de tratamento de dados, em um fluxo informacional único. Nos termos dos arts. 10 e 11 da LLD, os sujeitos obrigados devem coletar e avaliar dados de seus clientes, monitorar as operações realizadas com ou por eles e, ao identificarem situações suspeitas, comunicar tais operações ao Coaf14. Este, por sua vez, recebe, processa e avalia essas informações (art. 3º da lei 13.974/20) e, caso identifique indícios de crime, encaminha-as às autoridades de persecução penal, nos termos do art. 15 da LLD. Essa comunicação ocorre via sistema próprio (SEI-C), por meio dos RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira. O sistema legal é, portanto, de mão única: os dados são coletados e avaliados pelos sujeitos obrigados e comunicados ao Coaf, que, após processamento e análise, pode compartilhá-los com as autoridades de persecução penal, sempre por iniciativa própria do órgão de inteligência. A via oposta - ou seja, o fluxo de informações das autoridades de persecução penal para o Coaf, com pedidos de compartilhamento - envolve um conjunto de operações de tratamento de dados sem base legal, disciplinadas apenas por normas infralegais. Essa prática, surgida na rotina institucional, foi posteriormente incorporada por atos normativos como a resolução BCB 427/24 e o decreto 9.663/19. Tais instrumentos ampliaram, sem respaldo em lei formal, a competência do Coaf para receber comunicações de autoridades públicas e do público em geral, além de autorizarem o compartilhamento de informações mediante solicitação dos órgãos de persecução penal - atividades que não encontram previsão nem autorização na LLD. Ante o exposto, uma análise atenta da LLD permite concluir que o compartilhamento de RIFs pelo Coaf a pedido de autoridades penais, sem autorização judicial, não cumpre sequer o primeiro requisito do regime jurídico de proteção de dados, qual seja, a existência de base legal em sentido formal. Adicionalmente, como afirmaram Heloisa Estellita e Orlandino Gleizer em parecer juntado no Resp 2.150.571, o compartilhamento de RIFs a pedido das autoridades, além de ilegal fere o princípio da separação informacional: "Franquear ao Ministério Público ou à Polícia a provocação para o acesso a dados, cobertos ou não por sigilo financeiro, armazenados pelo Coaf (...) anularia o regime constitucional (e infraconstitucional) de proteção de dados ao criar uma verdadeira fusão informacional entre órgãos que têm finalidades e autorizações distintas para o tratamento de dados. Por essa via, Ministério Público e/ou Polícia Judiciária teriam acesso a um imenso conjunto de dados que o legislador outorgou apenas ao Coaf, e o faria igualmente contornando a reserva de jurisdição prevista na LC 105/2001"15. Trata-se, portanto, de uma violação direta ao direito fundamental à proteção de dados pessoais. Quanto à elaboração dos RIFs e seu encaminhamento de ofício, a embora exista regramento legal sobre a matéria, entendemos que as normas atualmente vigentes são insuficientes para assegurar a proporcionalidade dessa intervenção estatal. Não há, por exemplo, qualquer previsão sobre o conteúdo dos RIFs - se podem conter, por exemplo, informações de terceiros ou dados sobre a investigação interna realizados pelos sujeitos obrigados ou dados de fontes abertas. Além dessas lacunas, chama atenção o fato de que as hipóteses de coleta ativa de dados pelo Coaf também são bastante restritas do ponto de vista legal, embora tenham sido ampliadas por resoluções infralegais e pela prática administrativa. As únicas previsões expressas encontram-se no art. 10, V, e no art. 14, § 2º, da LLD. O primeiro impõe aos sujeitos obrigados o dever de atender às requisições do órgão, desde que observados os critérios de forma, periodicidade e condições previamente estabelecidos. O segundo autoriza o Coaf a requisitar informações cadastrais, bancárias e financeiras exclusivamente a órgãos da Administração Pública. O decreto 9.663/19, contudo, ampliou ilegalmente essas hipóteses ao prever, em seu art. 11, V, a possibilidade de requisição de informações a quaisquer órgãos e entidades públicas e privadas - extrapolando os limites fixados pela legislação em sentido formal. Por fim, inexiste qualquer previsão legal sobre a exclusão de dados das bases do Coaf, que, segundo informações oficiais do próprio órgão, já acumula mais de 57 milhões de comunicações de operações suspeitas16. Diante desse quadro, o STF tem, agora, a oportunidade de revisar o tema de forma mais ampla e sistemática, estabelecendo parâmetros que adequem o fluxo de informações dos cidadãos às garantias constitucionais de proteção de dados, devido processo legal e proporcionalidade na intervenção estatal sobre direitos fundamentais. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação.   **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas. __________ 1 Precedentes representativos deste entendimento: RHC n. 147.707/PA, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 24/8/2023; AgRg no HC n. 876.250/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 1/7/2024, DJe de 3/7/2024; HC n. 943.710/SC, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 17/12/2024, DJEN de 23/12/2024; RHC n. 203.373/SC, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 17/12/2024, DJEN de 23/12/2024; RHC n. 201.841/PI, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 20/3/2025, DJEN de 28/3/2025; RHC n. 203.578/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 5/11/2024, DJe de 7/11/2024. 2 AgRg no RHC n. 187.335/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, relator para acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/6/2024, DJe de 28/6/2024; EDcl no AgRg no RHC n. 188.838/PE, relator Ministro Ribeiro Dantas, relatora para acórdão Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 24/9/2024, DJe de 14/10/2024 3 Rcl 61944 AgR, Relator(a): CRISTIANO ZANIN, Primeira Turma, julgado em 02-04-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-05-2024 PUBLIC 28-05-2024 4 Rcl 70191 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 12-11-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 18-11-2024 PUBLIC 19-11-2024 5 RE 1.393.219 AgR, Rel. Ministro Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 01/07/2024 Public 10/07/2024 6 GALVÃO, Danyelle. Precedentes judiciais no processo penal. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. p. 78. 7 Op. Cit, p. 77 8 Op. Cit, p. 78. 9 ESTELLITA, Heloisa. O RE 1.055.941: um pretexto para explorar alguns limites à transmissão, distribuição, comunicação, transferência e difusão de dados pessoais pelo COAF.  Direito Público, [S. l.], v. 18, n. 100, 2022. DOI: 10.11117/rdp.v18i100.5991. Disponível aqui. Acesso em: 16/10/24. 10 Op. Cit, p. 6 11 Idem, ibidem. 12 Utiliza-se aqui a definição do art.5º, X, da LGPD 13 Neste sentido, ver ESTELLITA, Heloisa. Op Cit, p. 16 14 Idem, ibidem. 15 ESTELLITA, Heloísa; GLEIZER, Orlandino. Disseminação de RIF pelo COAF mediante provocação das autoridades de persecução penal. Parecer técnico juntado aos autos do REsp nº 1.215.057/SP, 2023. 16 CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS - COAF. Relatório integrado de gestão: exercício de 2024. Brasília: COAF, mar. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 2/5/25. p. 34
A seletividade do sistema penal brasileiro não é novidade. Jovens, pretos e pobres sempre foram desproporcionalmente visados pela persecução penal e formam a esmagadora maioria da população carcerária. Essa distorção revela um padrão estrutural que transforma desigualdades sociais em critérios implícitos de criminalização. Quando o réu é mulher, a seletividade opera com uma camada adicional. A criminalização feminina carrega consigo o julgamento de papéis sociais tradicionalmente atribuídos ao gênero. A mulher que chega ao banco dos réus é, frequentemente, também acusada por não ter sido a mãe protetora, a esposa devotada, a cuidadora atenta. Seu processo penal carrega o peso simbólico da "falha moral", da "violação de expectativas sociais", e não apenas a análise jurídica da tipicidade, ilicitude e culpabilidade do fato. Assim, a seletividade penal que atinge as mulheres é qualitativa: mais do que punir o ato, visa corrigir a mulher, reeducá-la e enquadrá-la em normas de comportamento que reproduzem a lógica patriarcal. Compreender a atuação do sistema de justiça em relação às mulheres requer mais do que contabilizar números - exige a análise interseccional que leve em conta como gênero, raça e classe moldam a resposta punitiva do Estado. Entre as imputações mais recorrentes contra mulheres, destacam-se os casos de aborto, omissão materna, tráfico de pequenas quantidades de drogas e legítima defesa em contexto de violência doméstica. Em todos esses exemplos, a resposta penal ignora contextos de violência, coação, pobreza e desigualdade, revelando que a pretensa neutralidade do Direito Penal funciona, na prática, como uma engrenagem de reprodução de exclusões sociais e de gênero. No caso do aborto, embora estimativas apontem mais de 500 mil procedimentos clandestinos anuais no Brasil, a persecução penal recai quase exclusivamente sobre mulheres pobres, pretas e atendidas pelo SUS. Estudo da UFPR analisou 43 decisões judiciais e verificou que em 37,2% dos casos a denúncia partiu de profissionais de saúde da rede pública, em violação ao dever legal de sigilo (art. 154, CP) e à proteção constitucional da intimidade (art. 5º, X, CF). Apesar dessas ilegalidades, são raras as decisões que reconhecem a nulidade do processo ou acolhem excludentes como o estado de necessidade (art. 24, CP) ou a inexigibilidade de conduta diversa (art. 22, CP). Outro estudo, realizado pela USP em parceria com a Columbia Law School, demonstrou empiricamente que a criminalização do aborto é seletiva e atravessada por discursos moralizantes. Juízes e promotores costumeiramente recorrem a expressões como "frieza", "torpeza" ou "desumanidade" para descrever o ato de aborto e qualificam a mulher como "prostituta" e "insensível", desqualificando-a não apenas como agente do fato típico, mas como mulher. A imputação penal converte-se em punição moral, sustentada em estereótipos de maternidade compulsória e papéis sociais idealizados. Esse julgamento moral também se manifesta nas acusações por omissão em crimes praticados por terceiros contra seus filhos - muitas vezes por companheiros violentos. Impõe-se às mães um padrão de vigilância onipresente. Ao invés de reconhecer a coação física e moral que elas mesmas sofrem, a dependência emocional, a ausência de rede de apoio e os riscos reais de reação, o Judiciário ignora a exigibilidade de conduta diversa e aplica de forma inadequada a teoria do garantidor (art. 13, §2º, CP). A omissão materna, longe de representar ato doloso, decorre de condicionamentos severos que comprometem substancialmente a autodeterminação da mulher. A responsabilização penal, por isso, não pode se basear em padrões abstratos de cuidado materno ou em expectativas idealizadas de vigilância. Estudo empírico que analisou 130 acórdãos do TJ/SP revelou que o tratamento judicial conferido às mães difere substancialmente daquele aplicado aos pais. Das mulheres, espera-se presença constante, dedicação afetiva e superação das barreiras estruturais. Dos homens, pouco ou nada se exige. Enquanto a omissão paterna é naturalizada - tratada como desinteresse, ou simples ausência -, a omissão materna, mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade, é qualificada como falha grave, moralmente censurável e juridicamente relevante. O resultado é a assimetria estrutural no parâmetro de exigibilidade: a mesma conduta - como a ausência no cuidado direto e dedicado dos filhos - gera consequências distintas. Para as mães, pode levar à responsabilização penal e à perda do poder familiar; para os pais, raramente sequer entra em debate. Em síntese, a mulher é responsabilizada por cada falha e o homem perdoado por toda ausência. Quando o processo penal se volta às mulheres acusadas de tráfico, a seletividade ganha contornos ainda mais evidentes. Segundo o Infopen Mulheres (DEPEN, 2018), 62% das mulheres privadas de liberdade estão encarceradas por esse tipo penal. A maioria exerce funções coadjuvantes - especialmente como "mulas" - e vive em contextos marcados por precariedade social, dependência emocional e exclusão econômica. Levantamento da Defensoria Pública do Tocantins apontou que 77% ingressaram no crime por influência de companheiros. Ainda assim, o sistema tende a tratá-las como plenamente autônomas, ignorando os condicionamentos que atravessam suas trajetórias. A resolução 492/23 do CNJ, de aplicação obrigatória, impõe justamente o abandono dessa neutralidade aparente. Seu protocolo para julgamento com perspectiva de gênero orienta os magistrados a reconhecer o papel subalterno que muitas dessas mulheres ocupam no tráfico, frequentemente vinculado a relações de afeto, coação ou dependência. Essa posição estruturalmente desfavorecida - decorrente de fatores socioeconômicos e relacionais - deve ser considerada elemento central na análise da culpabilidade. É nesse cenário que se insere a noção de culpabilidade por vulnerabilidade, proposta por Eugenio Raúl Zaffaroni. Em ruptura com a dogmática penal tradicional, a teoria desloca o juízo de culpabilidade para uma análise que considera a seletividade penal e os marcadores sociais de subordinação. Ao propor a integração da vulnerabilidade social, não se elimina a responsabilidade penal, mas se exige sua modulação à luz do esforço real da agente para resistir à criminalização. Por fim, nos casos em que mulheres reagem após anos de violência doméstica, o sistema penal brasileiro tem se mostrado refratário ao reconhecimento da legítima defesa (art. 25, CP). A jurisprudência desconsidera o contexto de opressão contínua, aplicando de forma rígida os parâmetros clássicos de atualidade e proporcionalidade. Ignoram-se os ciclos de violência e a escalada psicológica presentes nas relações abusivas. A doutrina penal tradicional parte de uma lógica binária do conflito. No entanto, na violência doméstica crônica, em que a mulher vive sob constante ameaça, a percepção de risco não pode ser avaliada por moldes clássicos. Por isso, necessária a ampliação do conceito de legítima defesa para abarcar tais contextos, reconhecendo a reação como resposta ao histórico de abusos reiterados. Vale lembrar que a Convenção de Belém do Pará, internalizada pelo decreto 1.973/1996, impõe aos Estados o dever de adotar medidas de proteção às mulheres. A jurisprudência interamericana, como no caso Maria da Penha v. Brasil, reforça a responsabilidade internacional por falhas na prevenção e punição da violência doméstica. O sistema de justiça não é neutro. Penaliza não apenas condutas, mas condições sociais. No caso das mulheres, a punição opera com base em expectativas de gênero e na invisibilização da exclusão. No aborto, pune-se a autonomia; na omissão, pune-se a impotência; no tráfico, pune-se a pobreza e a submissão. Urge, portanto, repensar as respostas penais. É imprescindível fortalecer as Defensorias Públicas, capacitar magistrados e membros do Ministério Público para atuação com perspectiva de gênero e aplicar os princípios da insignificância, da justiça restaurativa e da culpabilidade por vulnerabilidade. O banco dos réus não pode seguir sendo o palco onde o Estado perpetua as violências que deveria combater. *As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, o posicionamento da Associação. **A União de Mulheres Advogadas - UMA é uma rede formada por advogadas de todo o Brasil, unidas pela troca de experiências, promoção de iniciativas coletivas, e fortalecimento profissional. Criada em 2019, a UMA incentiva o protagonismo feminino no Direito e apoia ações colaborativas, sociais e acadêmicas em diversas áreas jurídicas. _______________________ BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito penal brasileiro: parte geral. v. 2, t. 2. Rio de Janeiro: Revan, 2017. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará. BRASIL. Resolução CNJ nº 254, de 4 de setembro de 2018. Dispõe sobre a política institucional do Poder Judiciário para a perspectiva de gênero na aplicação da justiça. COLUMBIA LAW SCHOOL; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Aborto no Brasil: falhas substantivas e processuais na criminalização de mulheres. Julho 2022. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS. Tráfico de drogas por influência dos companheiros está ligado ao encarceramento feminino. Palmas, 19 set. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Infopen Mulheres - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Princípios para a atuação da Defensoria Pública nas áreas criminal e de execução penal. Brasília: SENAPPEN, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/05/2025. PLASTINO, Luisa Mozetic. Mães inaptas, pais incapazes: prisão e pobreza nas narrativas do Tribunal de Justiça de São Paulo para destituir o poder familiar. São Paulo: FGV Direito SP, 2022. Dissertação (Mestrado em Direito e Desenvolvimento) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. RODRIGUES, Larissa Benevides; FERREIRA, Bruna Martins. Violência institucional e criminalização do aborto: uma análise empírica a partir de decisões judiciais brasileiras. Revista de Direito Público, v. 54, p. 93-112, jan./abr. 2020. SILVA, F. A. de A. O silêncio da mãe diante do abuso: a omissão materna. Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, março 2020.
É com imensa alegria que anunciamos que a União de Mulheres Advogadas - UMA conseguiu este grandioso espaço para a publicação de uma coluna semanal sobre os mais variados ramos e temas do direito, sempre escritos por mulheres. Mas antes de apresentarmos os textos semanais, entendemos importante nos apresentarmos e contarmos nossa história até aqui. Em setembro de 2019, Danyelle Galvão e Claudia Bernasconi, advogadas criminalistas, resolveram chamar algumas amigas advogadas para um almoço exclusivamente entre mulheres, com a proposta de que cada amiga convidasse mais uma amiga. O objetivo era começar a realizar encontros periódicos para aproximar outras profissionais que geralmente só se veem em audiências e reuniões, com o objetivo de conectar advogadas de áreas diferentes para eventuais novos projetos profissionais. Mais de 50 advogadas foram a este primeiro encontro em São Paulo - SP, que contou com relato emocionado de JOYCE ROYSEN, reconhecida advogada criminalista e decana naquele evento, sobre as dificuldades de ser mulher na área jurídica e os benefícios da reunião feminina que se iniciava. Mais um encontro ocorreu em dezembro de 2019, com cerca de 80 profissionais de várias áreas. Outro almoço ficou marcado para meados de março, que acabou não acontecendo pelo início da pandemia. Decidiu-se, então, criar um grupo de whatsapp para que a tão almejada troca de experiências não se perdesse pela impossibilidade de encontro físico. Rapidamente mais de 150 advogadas ingressaram no grupo e inúmeras conversas e trocas pessoais, profissionais e cotidianas aconteceram. Paralelamente um pequeno grupo se formou para discutir sobre a escolha de um nome para o grupo, debater sobre a possibilidade de elaboração de um estatuto para formalização jurídica e criação de outros grupos de whatsapp temáticos por área do direito. Após uma votação democrática entre todas as participantes, decidiu-se por União de mulheres Advogadas - UMA. O "grupo de gestão", formado pelas advogadas que ora subscrevem este artigo além de Anna Paola Bonagura e Kathleen Militello, elaborou um estatuto social e criou uma marca, inclusive agora registrada no INPI, graças ao empenho da especialista no tema de marcas e advogada da UMA, LUCIANA ARRUDA, bem como abriu uma conta na rede social Instagram (uniao_de_mulheres_advogadas) para divulgação de palestras e eventos das participantes. Atualmente contamos com mais de 450 advogadas de todas as regiões do país e áreas. Além dos encontros maiores e anuais que acontecem em São Paulo, almoços e outros encontros já ocorreram em Salvador, Curitiba, Brasília, Porto Alegre e Lisboa, geralmente em datas coincidentes a congressos nestas cidades. A troca de experiências, indicações de trabalho, vagas, profissionais de outras expertises e incentivo são constantes. Advogadas de áreas, idades e origens diferentes apontam diariamente suas vitórias, dificuldades profissionais, dúvidas jurídicas, dúvidas sobre a carreira, estudos acadêmicos ou aspectos da vida pessoal. Amizades e parcerias surgiram, bem como projetos sociais de arrecadação e doação de roupas de trabalho, tampinhas plásticas para reciclagem, itens para os atingidos pela enchente em Porto Alegre/RS, cestas básicas e brinquedos para crianças, dentre outras. Um subgrupo de leitura de literatura russa surgiu, contratou uma professora supervisora e se reúne para aulas e debates. Candidaturas ao quinto constitucional de alguns tribunais, inclusive superiores, foram incentivadas, apoiadas e algumas vagas conquistadas. Inúmeros cargos na OAB foram conquistados pelas participantes, inclusive a presidência de seccionais, de comissões importantes e ocupação de cargos nos conselhos estaduais e federais. Além disso, ainda durante a pandemia, UMA das participantes questionou o grupo sobre onde poderia comprar uma beca. Foi a oportunidade perfeita para discutir o motivo pelo qual não existia uma beca feminina. Decidiu-se, então, buscar modelos e uma estilista para confeccionar UMA beca feminina. A estilista Marciana Souza (fuerzafeminina.com.br) topou o desafio e criou uma beca linda, transpassada, que usa renda renascença feita à mão por rendeiras do Nordeste. A ideia da beca, lindamente realizada pela Marciana, trouxe também uma mensagem de que os ambientes do sistema de Justiça devem ser mais justos e paritários, preservando-se a identidade de cada uma. No entanto, o mais importante até agora foi o espírito incentivador e colaborativo instalado no grupo e nas participantes. A UMA é realmente um grupo de união de mulheres advogadas. E esta coluna, com muita alegria, poderá expor mais um pouco do trabalho que cada uma vem fazendo. Com isso, objetiva-se mostrar que a mulher pode sim discutir sobre temas diversificados e se apresentar como especialistas e autoridades em assuntos diversos e complexos dentro do direito. E assim, se verá a potência do feminino unido. Somos UMA por todas e todas por UMA. Sejam todas e todos muito bem-vindos. __________ Comitê de gestão: Clarissa Holfling - Advogada criminalista, sócia fundadora do escritório Höfling Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (GVLaw), Pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito (EPD). Cursou, também, Governança Corporativa e Compliance na INSPER (Instituto de Ensino e Pesquisa) e Gestão de Riscos e Compliance na FIA Business School. Atuou como relatora presidente da 4ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados de São Paulo no triênio de 2022 a 2024 e é professora de Compliance Criminal no Damásio Educacional. Claudia Bernasconi - Advogada Criminalista, sócia do escritório Joyce Roysen Advogados, Conselheira Estadual da OAB/SP e Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP. Danyelle Galvão - Advogada Criminalista, sócia fundadora do escritório Galvão & Raca Advogados, doutora pela USP, professora. Giulia De Felippo Moretti - Advogada Criminalista no escritório Rosner Fadul Sociedade de Advogados, pós-graduada em Direito Penal Econômico e em Direito Digital pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw). Maira Salomi - Advogada Criminalista, sócia fundadora da Salomi Advocacia Criminal. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Doutoranda e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Marina Toth - Advogada Criminalista e de Compliance Criminal (Certificação Profissional CPC-A). Sócia fundadora do Toth e Gomez Advogados. Mestre em Direito (LL.M) pela Universidade de Michigan (EUA) e pós-graduada pela Universidade de Nova Iorque (NYU SPCS). M.B.A. pela FIA Business School. Nara Nishizawa - Advogada Criminalista, sócia fundadora da Nishizawa Advocacia, mestre em raciocínio probatório pela Universidade de Girona e Universidade de Gênova. Mestranda em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Priscila Pamela dos Santos - Advogada Criminalista, sócia fundadora do escritório Priscila Pamela Santos Advocacia, mestre pela USP. Renata Mariz de Oliveira - Advogada Criminalista, sócia da Advocacia Mariz de Oliveira, Presidente da AASP.