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O Congresso Nacional e o crime de hermenêutica, por Eudes Quintino e Antonelli Secanho

O Congresso Nacional e o crime de hermenêutica

A Hermenêutica, como ciência, tem por objetivo estudar a norma existente, interpretá-la de forma adequada para fazer a aplicação correta a um determinado fato social.

domingo, 18 de dezembro de 2016

Atualizado em 16 de dezembro de 2016 10:25

O Direito, por ser fruto da própria vivência social, ao longo do tempo, em razão do seu dinamismo, vai criando novos institutos, ajustando-os dentro da legalidade vigente. É uma constante construção, visando não só o aprimoramento mas, também, a vontade de atender a todas as necessidades que vão surgindo ao longo da convivência humana. Assim, criam-se institutos próprios com suas características específicas, formatados para atender a uma necessidade reclamada pelo povo, legítimo detentor do poder e destinatário exclusivo do benefício pretendido.

Mas, para tanto, deve ser elaborada a lei para fazer cumprir o comando social almejado. E a norma pode ser boa, com o norte adequado para atender determinada demanda social ou, como sói acontecer em algumas oportunidades, vem enviesada, com interesses escusos indisfarçáveis.

Recentemente, noticiou-se que estava em andamento o projeto de lei 280/16, que tratava sobre inovações quanto aos crimes de abuso de autoridade. Tão logo seu conteúdo foi difundido, pela imprensa, percebeu-se mais uma, dentre inúmeras outras, tentativa de nossos congressistas usarem a mens legis em seu favor, já mirando ofuscar e, porque não, retirar toda a eficácia da operação Lava Jato.

Isso porque o artigo 9º, parágrafo único, inciso II deste projeto de lei dispõe que incorre nas penas do caput - de 01 (um) a 04 (quatro) anos de detenção e multa -, "quem deixa de conceder ao preso liberdade provisória, com ou sem fiança, quando assim admitir a lei e estiverem inequivocamente presentes seus requisitos".

Desse modo, é possível verificar que se pretende ressuscitar o que a doutrina clássica já denominava de "crime de hermenêutica", isto é, em apertada síntese, a criminalização da interpretação jurídica que o magistrado dá ao fato que lhe é trazido, por meio do processo.

A definição, diga-se de passagem, por si só, não corresponde à natureza jurídica da ars interpretandi. A Hermenêutica, como ciência, tem por objetivo estudar a norma existente, interpretá-la de forma adequada para fazer a aplicação correta a um determinado fato social. É uma operação multidisciplinar, que envolve Direito, Filosofia, Sociologia, Antropologia e muitos outros saberes, todos voltados para a melhor aplicação do suum cuique tribuere. Maximiliano, cultor indisfarçável da disciplina, encartou em lapidar definição: "A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito"1.

O brocardo jurídico naha mihi factum dabo tibi jus fica afastado, para que a interpretação do juiz de Direito, sobre a manutenção da prisão de um acusado, sofra influência de um comando legal intimidativo. Ou seja, a função inerente ao magistrado, que é justamente a de interpretar e aplicar as leis de nosso país, de acordo com o resultado desta interpretação, pode ser escandalosamente criminalizada, a fim de atender, como era de se esperar, os anseios mais espúrios de nosso sombrio Poder Legislativo.

Ora, como pode um juiz de Direito ser criminalizado pela conclusão jurídica que alcança, após legitimamente ponderar os elementos probatórios e factuais que lhe são apresentados?

É evidente que eventuais abusos, isto é, decisões desprovidas de fundamentação, ou então baseadas em atender interesses particulares, devem ser combatidas, seja por meio dos remédios heroicos legalmente previstos (como o habeas corpus), seja pelas Corregedorias Gerais de Justiça.

Mas não é esse o foco que se mostra no referido projeto de lei. Como é sabido, o artigo 312 do Código de Processo Penal prevê os requisitos da prisão preventiva, sendo que a concessão de liberdade provisória se dá, a contrario sensu, na falta destes requisitos legais. E justamente um desses requisitos, propositadamente se mostrando um conceito mais amplo, é que pode causar atrito com as novas disposições.

Como se sabe, uma das hipóteses de decretação de prisão preventiva é para a garantia da ordem pública, termo necessariamente vago, para que se possa enquadrar, na lei, cada caso concreto, que, à evidência, não cabe ao legislador prever. Logo, quando surge este projeto de lei, e se elabora o termo "inequivocamente presentes seus requisitos" (da liberdade provisória), já é possível perceber que, em verdade, o que se busca é a pressão para que magistrados ponderem os requisitos da prisão preventiva não de acordo com os fatos, mas sim com o receio de figurar como réu em uma eventual absurda ação penal.

Desse modo, o crime de hermenêutica funciona como uma pressão de poderosos interesses, que visam embaraçar a atividade jurisdicional e, assim, dificultar a repressão à corrupção e demais práticas criminosas.E não há como não se questionar uma curiosa situação, já destacada por alguns eminentes juízes, que divulgam suas preciosas lições no meio jurídico. Imagina-se que um indivíduo seja preso em flagrante delito e o juiz de Direito, ao analisar o auto de prisão em flagrante, conclua que seja o caso de converter esta prisão em preventiva, por entender estarem presentes seus requisitos.

Pois bem.

O acusado pede a revogação desta prisão, mas o juiz a mantém, pelo que é impetrado habeas corpus, cuja ordem é negada pelo Tribunal de Justiça competente. Então, novo HC é impetrado, desta vez no Superior Tribunal de Justiça, oportunidade em que, novamente, o remédio heroico é negado.

O caso chega, então, no Supremo Tribunal Federal, onde então se conclui que, inequivocamente, estavam presentes os requisitos da liberdade provisória. E agora? Quem cometeu o crime de abuso de autoridade previsto neste projeto?

Seria somente o juiz de primeiro grau? Mas e o relator do Tribunal de Justiça e do STJ? E os demais integrantes das Câmaras ou Turmas? E se o acórdão no Supremo não for unânime? Todos figurariam no polo passivo da relação jurídico-penal? Em concurso de agentes?

Desta feita, só se pode concluir que criminalizar o magistrado pela opinião jurídica extraída do processo - que é seu dever básico - é um ato que, além de ilógico, atenta contra a moral nacional.

Não se pode esquecer as preciosas lições de Rui Barbosa, precursor da análise dos crimes de hermenêutica, e que assim ensinou, com a costumeira maestria:

"Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea (...) Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo" (Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, Tomo III, p. 2280).

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1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 1.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.







*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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