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O estupro e sua tipificação, Eudes Quintino e Pedro Quintino

O estupro e sua tipificação

"Nem sempre a avaliação popular coincide com a vontade do legislador quando descreveu o tipo penal".

domingo, 10 de setembro de 2017

Atualizado em 6 de setembro de 2017 16:30

A imprensa toda noticiou e as redes sociais comentaram às escâncaras a prisão de um homem que havia se masturbado e ejaculado no ombro de uma mulher, no interior de um ônibus, sendo preso e encaminhado à delegacia de polícia por ter praticado, em tese, delito de estupro. Na audiência de custódia, o representante do Ministério Público e o juiz que concedeu a liberdade provisória, desconsideraram a tipificação primária e classificaram a conduta para importunação ofensiva ao pudor, que é uma contravenção penal, com abissal distância da imputação policial.

Logo que foi colocado em liberdade, o agressor voltou a praticar novo delito contra a dignidade sexual, sendo, nesta oportunidade, decretada sua prisão preventiva, levando-se em consideração que sua vida pretérita registra um total de 17 ocorrências, sendo 13 delas pelo delito de ato obsceno e pela contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor e quatro por estupro.

Não há qualquer dúvida que se trata de uma conduta ignóbil e que causa repulsa a qualquer pessoa. Daí o inconformismo popular que severamente criticou a concessão de liberdade ao infrator. Ocorre, no entanto, que nem sempre a avaliação popular coincide com a vontade do legislador quando descreveu o tipo penal. Os operadores do Direito que militam na área criminal são encarregados de fazer o ajustamento da conduta do infrator a um determinado tipo penal, com a adequação correta da ação humana com a previsão legal. Assim sendo, há necessidade da perfeita coincidência entre tais parâmetros, justamente para prevalecer o princípio da legalidade, cunhado pela lei penal, em seu artigo 1º: "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal". Quer dizer, nenhum crime irá existir, nenhuma pena poderá ser aplicada se o fato não estiver descrito como ilícito no Código Penal.

"Enquanto modelos de fatos da vida, salienta com muita coerência Teles, os tipos são retratos vivos ou cenas animadas de acontecimentos que têm o homem como protagonista, e, conquanto sejam a base que sustenta o princípio da legalidade, seus enunciados compõem-se de signos linguísticos que devem retratar, com precisão, todos os detalhes do fato incriminado, proibido pela norma penal"1.

Tanto a manifestação ministerial como a decisão judicial concluíram que, no caso em questão, não ocorreu o constrangimento praticado mediante violência ou grave ameaça, elementos integrantes do tipo penal.

Talvez a reforma provocada no artigo 213 do Código Penal pela lei 12.015/2009, tenha conferido uma expansão desmedida ao crime de estupro, a ele incorporando o de atentado violento ao pudor, abrindo assim um vácuo interpretativo e possibilitando entendimentos divergentes a respeito de sua prática. Pode acontecer que determinada conduta contra a dignidade sexual seja desproporcional ao crime de estupro, como, por exemplo, se o agente, de modo sorrateiro, ou até mesmo em tom de brincadeira, coram populo, sem a malícia necessária, toca as nádegas ou o seio da vítima, ainda que, repita-se, por mais repugnante que a ação se revele, ausente o dolo recomendado para a conduta, não é motivo suficiente para caracterizar a lascívia do agressor. Pode acontecer, outras vezes, como o caso em discussão, de gravidade incontestável, com rejeição popular e até mesmo de doutrinadores que bradam em sentido contrário, ausente um dos requisitos para a caracterização do estupro, a tipificação venha a se alojar em outro delito ou até mesmo em prática contravencional de pequeno potencial ofensivo.

Como o Direito não é uma ciência exata e sim interpretativa, cabe ao intérprete, principalmente com relação aos novos crimes contra a dignidade sexual, quando aparentemente são iguais, porém dicotomicamente guardam considerável distância, aplicar as regras da Hermenêutica para se buscar a melhor solução para o conflito. Assim, pela interpretação gramatical, conhecida também como literal, contando ainda com a colaboração da sistemática, pode-se dizer que a decisão judicial encontra arrimo na mens legislatoris, que observou criteriosamente a ausência da grave ameaça ou violência. De outra banda, pela teleológica, como sendo aquela que busca a finalidade última da vontade da lei, levando-se em consideração que toda norma carrega obrigatoriamente consequências sociais relevantes e que devem ser prestigiadas pelo aplicador, a conceituação da grave ameaça e violência está contida na própria conduta do agressor e caberia a tipificação do estupro.

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1 Teles, Ney Moura. Direito penal: parte geral, volume I. São Paulo. Atlas, 2004, p. 205.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.








*Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, mestrando em Direito pela Unesp/Franca, pós-graduando em Direito Empresarial pela FGV/São Paulo, advogado.



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