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Cuidados paliativos: uma nova realidade terminal

Cuidados paliativos descartam qualquer apressamento da morte, mas sim provocam o surgimento de um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade.

domingo, 17 de setembro de 2017

Atualizado em 15 de setembro de 2017 10:38

A convivência entre o homem e a morte remonta à história da própria humanidade. A vida, por si só, é uma preparação para a morte. Ou se morre de forma repentina ou, em razão de doença que se agrava e assume caráter de irreversibilidade. No primeiro caso, é claro, não há como dispensar qualquer tipo de cuidado à pessoa, preparando-a para o evento final. No segundo, porém, abre-se um campo enorme em razão da solidariedade humana e do espírito cristão que norteiam o homem, principalmente diante de uma enfermidade incurável.

É este o espaço habitado pelos cuidados paliativos.

Levando-se em consideração a inevitabilidade da morte, o homem, com o interesse em fazer preservar a dignidade que deve permear todos os ciclos de sua vida, elegeu agora sua finitude como sendo aquela que merece a atenção adequada. Tanto é verdade que a ars moriendi, em busca de uma morte que seja digna e compatível com o ser humano, abraçou a conceituação da ortotanásia contida no Código de Ética Médica no sentido de que, "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal"1.

É importante frisar que o Código Deontológico Médico2, a exemplo do Código Penal3, que a considera homicídio piedoso ou caritativo, recrimina a prática da eutanásia, que consiste na ação ou omissão no sentido de antecipar a morte do paciente. A ortotanásia, introduzida pelo Código de Ética Médica, por sua vez, carrega uma definição mais humanista, não permitindo qualquer ação humana provocadora da morte, que ocorrerá no momento certo, amparando o paciente com os cuidados paliativos adequados. Acrescenta-se, ainda, que o mesmo pensamento norteou o Papa João Paulo II, na Encíclica Evangenlium Vitae, que apregoa a renúncia aos tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso à vida, mas justificou, no entanto, que não devem ser interrompidos os cuidados normais devidos aos doentes, tudo sendo interpretado como a aceitação da condição humana diante da morte.

Cuidados paliativos, nesta visão, descartam qualquer apressamento da morte, mas sim provocam o surgimento de um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade. O estertor da morte é suavizado, de acordo com a intenção demonstrada pelo paciente in vita ou nas diretivas antecipadas de sua vontade. Seria, a título de exemplo, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar na sua toada, com segurança e lentamente, levantando-o quando suas forças minarem, até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. Daí, muitas vezes, como sói acontecer, nem mesmo os parentes poderão executá-la a contento.

A Organização Mundial de Saúde redefiniu em 2002 a conceituação dos cuidados paliativos como "uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual".

No Brasil, ainda são recentes o conceito e a filosofia de ajudar e amparar o paciente terminal. Antigamente, os hospices eram abrigos, geralmente de iniciativa religiosa, com o intuito de cuidar dos pacientes vulneráveis. Hoje, nota-se o surgimento de algumas clínicas e hospitais especializados nesta função caritativa e que prezam pela qualidade do atendimento, por meio de um corpo clínico com aderência na área e equipamentos necessários para atendimento rotineiro dos pacientes. Abandona-se, desta forma, a conceituação no sentido de que o hospital é não só local de cura, como também de morte. Parte-se, agora, para uma nova realidade: a ocorrência da morte em casa especializada (style of dying), proporcionando ao paciente as melhores condições para viver com conteúdo, com qualidade e intensidade de acordo com suas condições.

Tal desiderato faz ver que não basta somente o sucesso da ciência em proporcionar a tão ambicionada longevidade. É preciso que haja a qualidade de vida compatível com a ambição humana. E, quando vencidas todas as etapas, a pessoa defrontar-se com a terminalidade de uma doença, que tenha ela um serviço de saúde adequado em que possa receber o conforto e a atenção, refletindo, desta forma, a merecida dignidade de seus últimos dias.

Ainda é um tema muito incipiente, mas já é possível encontrar no Brasil hospitais especializados em cuidados paliativos. Hospitais com grande número de leitos, com várias unidades semi-intensivas e uma equipe completa para o atendimento longitudinal, composta por médicos, enfermeiros, psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, fonoaudiólogos, farmácia clínica, serviço de odontologia e equipe de nutrição. Tem, também, uma equipe de apoio, composta por arquitetos, relações públicas, lanchonete, portaria, serviço de hotelaria, motoristas, voluntários em assistência espiritual-religiosa, dentre outros.

Muito ainda se precisa caminhar no Brasil para que todos tenham a conscientização da importância dos cuidados paliativos, bem como o sistema de saúde brasileiro deve mudar sua visão e tratar o paciente que necessite destes cuidados, por força até mesmo do imperativo constitucional da dignidade da pessoa humana. Cuidados paliativos, na sua conceituação mais ampliada, são uma necessidade de caráter humano, de solidariedade e de valores cristãos. Faz lembrar Machado de Assis e outros escritores de sua época ao relatarem que as pessoas se cumprimentavam e desejam boa morte reciprocamente, significando que, se não se encontrassem mais, ficava antecipadamente expresso o voto de uma boa e confortável morte, nos limites de sua realidade.

A respeito do tema, Ariès endossa a sugestão da concepção de um hospice adequado para os portadores de doença terminal e conclui com muita autoridade: "Por esta razão pensa-se, em certos países, reservar-lhes hospitais especializados em morte suave e sua preparação, onde seriam evitados os inconvenientes de uma organização hospitalar e médica concebida com outra finalidade, a de curar a qualquer preço"4.

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1 Artigo 41, parágrafo único da resolução CFM 1.931/2009.

2 Artigo 41 da resolução CFM 1.931/2009.

3 Artigo 121 § 1º do Código Penal.

4 Ariès, Philippe. O homem diante da morte. Tradução de Luiza Ribeiro. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 788.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.








*Gabriela Bellentani de Oliveira é advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho e mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino - ITE - Bauru/SP.



 

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