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O caráter punitivo da "Lei da Ficha Limpa": Inelegibilidade de Lula fere Constituição

Não pode haver execução provisória da pena e, muito menos, inelegibilidade de candidaturas antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, tendo em vista que se trata de verdadeiro retrocesso em desencontro ao Estado Democrático de Direito.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Atualizado em 23 de abril de 2021 16:26

As questões relacionadas à prisão e (in)elegibilidade do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva há algum tempo vêm tomando enormes proporções, e aqui, o que se propõe, é justamente diferenciar questões, principalmente no que diz respeito à sua elegibilidade.

De início, há de se pontuar que a prisão imposta ao ex-presidente possui caráter cautelar, processual, consoante posicionamento da Corte Constitucional Brasileira, sendo que a possibilidade de tal prisão (após acórdão condenatório) consubstanciou-se nos termos do voto proferido pelo então ministro Teori Zavaski, que permitiu a execução provisória de acórdão condenatório1.

Sem adentrar ao mérito do caso concreto, há de se esclarecer que os principais fundamentos ensejadores da possibilidade de execução provisória, são: (i) a ausência de efeito suspensivo das vias recursais Especial e Extraordinária; e (ii) a impossibilidade de discutir-se matérias inerentes aos fatos, mas tão somente rever questões de direito, nos termos do ministro Teori, constantes dos recursos dirigidos aos Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal não é possível rediscutir-se a culpabilidade do agente.

Equivocado ao nosso ver tal posicionamento vez que em sede recursos Especial e Extraordinário não é mais possível rediscutir-se culpabilidade e, muito menos, fatos. De todo modo, ao impugnar a inobservância por parte dos juízos a quo de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, o acórdão prolatado pelas cortes superiores pode diminuir as penas impostas, anular ações penais desde seu início e, até mesmo, invalidar provas que motivaram a condenação - nesse ponto, com a consequente absolvição do recorrente.

De forma acertada, ao esclarecer que a execução provisória da pena de prisão, o ministro Dias Toffoli concedeu um habeas corpus de ofício2 (em outras palavras, sem que lhe fosse requerido) com o fim de suspender a execução provisória imposta ao então paciente, fundamentando tal decisão na plausibilidade jurídica de recurso proposto contra a condenação do TRF-4. Seu voto foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Nesse diapasão, fica claro que o que pode ensejar a execução provisória de acórdão condenatório (já que se trata de prisão preventiva) é a presença dos elementos elencados nos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. Deve o magistrado observar questões inerentes aos riscos que a liberdade do agente possa causar a sociedade (periculum in libertatis), a existência do crime e de indícios suficientes de autoria (fumus commissi delicti), a pena imposta, as condições pessoais do agente e ainda condições pessoais de eventual vítima. É isso e nada mais.

Sem adentrar ao mérito da (i)legalidade da prisão imposta ao ex-presidente da República, é patente que a segregação de sua liberdade não guarda relação alguma com a (im)possibilidade de concorrer ao cargo pretendido.

O fato é que, até o momento, o impedimento da candidatura do petista, segundo se prega, se fundamenta na lei complementar 64/90, que sofreu substancial alteração com a promulgação da lei complementar 135/10, projeto de lei de iniciativa popular, mais conhecida como "Lei da Ficha Limpa".

Aqui alguns esclarecimentos merecem ser feitos com relação aos direitos políticos, que são inerentes a todos os cidadãos brasileiros.

Pois bem: a Constituição da República, no parágrafo único do artigo 1°, pontua que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente".

Ademais, o artigo 14, do texto constitucional, esclarece os meios pelos quais será exercida a soberania popular, basicamente por meio do sufrágio universal, e verificado que o próprio artigo regulamenta os casos em que o alistamento eleitoral é obrigatório ou facultativo, assim como aqueles que podem se alistar, e se eleger.

Já o artigo 15, também da Carta Magna, esclarece de maneira expressa que "é vedada a cassação de direitos políticos", e em seus incisos há exceções a tal regra, de modo que somente serão retirados os direitos políticos em caso de:

(I) cancelamento de naturalização por sentença transitada em julgado;

(II) incapacidade civil absoluta;

(III) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

(IV) recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

(V) improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

Nada obstante tais exceções, o parágrafo 9°, do artigo 14, esclarece que "lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta".

Diante de tal necessidade foi editada a lei complementar 64/90, substancialmente alterada pela lei complementar 135/10 com novas hipóteses de inelegibilidade.

O que importa é justamente o objeto das referidas Leis Complementares, já que tratam de impedimentos às candidaturas presidenciais, como no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Vale destacar que quando da promulgação lei complementar 135/10, o STF julgou conjuntamente as ADC's 29 e 30, propostas respectivamente pelo Partido Popular Socialista e pelo Conselho Federal da OAB, oportunidade na qual, por maioria de votos, julgou constitucional a supramencionada "Lei da Ficha Limpa".

Naquela oportunidade, a Suprema Corte posicionou-se no sentido de que as hipóteses que ensejam inelegibilidade estão elencadas na "Lei da Ficha Limpa" e não possuem natureza jurídica de pena, mas que se trata de rol de requisitos objetivos que permite a suspensão do direito político passivo (direito de ser votado), aplicável a todo cidadão brasileiro.

As hipóteses que ensejam a suspensão do direito político passivo muito se assemelham às consequências do trânsito em julgado de sentença condenatória, conforme artigos 91 e 92 do Código Penal.

Nesse ponto, vale fazer referência ao início desse artigo. Como dito, nos dias atuais, a Corte Constitucional permite a prisão cautelar para executar acórdão condenatório proferido em sede de recurso de apelação. Em outras palavras, caso haja decisão colegiada que condene determinado réu, este poderá ser recolhido à prisão, em caráter cautelar, para o cumprimento de sua condenação, e, por óbvio, tal prisão possui natureza jurídica de pena.

Igualmente, a lei complementar 135/10 trouxe diversas hipóteses em que caso haja decisão colegiada que condene determinado réu, este se tornará inelegível pelo prazo de 8 anos.

Nessa toada, como é possível afirmar que a natureza jurídica de tal posicionalmente não é de pena? Tal assertiva seria o mesmo que dizer que em na existência de acórdão condenatório o réu deverá ser recolhido à prisão, pois não reuniria os requisitos objetivos necessários para viver em sociedade, o que é teratológico, e evidentemente não afasta a natureza jurídica de pena.

Diante do exposto, é certo que tanto a execução provisória de acordão condenatório, quanto a inelegibilidade, pela mesma razão, possuem latente natureza jurídica de pena.

Ambas as possibilidades claramente vilipendiam o princípio do estado de inocência (artigo 5°, LVII, da Constituição da República), o qual pontua que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

É certo que esta garantia individual foi consagrada muito antes de 1988, ano de promulgação da atual Constituição da República. Dentre seus principais marcos vale consignar que tal garantia fora consagrada num primeiro momento em 1789, no artigo 9° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, posteriormente reiterada em 1948 no artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres, e também no artigo 9° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em também no artigo 7° do Pacto de San José da Costa Rica.

Não obstante o artigo 1°, parágrafo único, e artigo 14 da Constituição da República, é certo que o direito ao sufrágio universal é consagrado em legislações muito anteriores, como no artigo 20 da Declaração Americana da Direitos de Deveres, artigo 21 da Declaração Universal dos Direito Humanos, artigo 23 do pacto de São José da Costa Rica.

A execução provisória de acordão condenatório e a inelegibilidade por essa mesma razão constituem enorme retrocesso cívico, indo claramente em desencontro com os princípios basilares do "Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".

Não pode haver execução provisória da pena e, muito menos, inelegibilidade de candidaturas antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, tendo em vista que se trata de verdadeiro retrocesso em desencontro ao Estado Democrático de Direito.

Destarte, o atual posicionamento do STF - presente no habeas corpus concedido de ofício pelo ministro Dias Toffoli - consagra o princípio da presunção do estado de inocência, há tempos rechaçado ante a "regra" com relação a execução provisória da pena, e, diante disso, fica evidente que o ex-presidente, sem prejuízo algum, pode aguardar o julgamento e trânsito em julgado de seus recursos dirigidos às cortes superiores em liberdade.

Entretanto, nos moldes da legislação eleitoral em vigor, Luíz Inácio Lula da Silva é absolutamente inelegível, o que a nosso ver vai em desencontro com diversos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, o que vilipendia as suas garantias individuais como cidadão.

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1 HC 126.292/SP

2 STF - RCL 30.245/PR, relator Min. Dias Toffoli. DJe 28.06.2018.

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*Otávio Espires Bazaglia é advogado criminalista na Banca Fernando Fernandes Advogados, Pós-Graduando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Membro da comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP e do Conselho editorial do IBCCRIM

*Renato Reis Aragão é advogado criminalista na Banca Fernando Fernandes Advogados, Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela GVLaw e Professor Assistente em Processo Penal na PUC/SP. Membro da comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP.

 

 

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