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O contrato social irregular sob a ótica do Código Civil: jurisprudência e efeitos

Em virtude do exposto, resta clara a necessidade e utilidade de adequação dos contratos sociais ao CC 2002, tanto em relação às sociedades formadas antes como às contemporâneas ao referido diploma legal. É responsabilidade do administrador alertar os sócios sobre essa necessidade, e dever dos sócios promover o quanto antes as alterações introduzidas pelo CC 2002.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Atualizado em 21 de janeiro de 2019 17:15

O Código Civil (lei 10.406/02) ("CC 2002") está em vigor há 15 anos. Não obstante, ainda existem sociedades que não adaptaram seus contratos sociais às modificações implementadas pelo CC 2002. Nesse sentido, estariam tais sociedades irregulares? Em caso positivo, quais seriam as consequências práticas?

O CC 2002 representou um grande avanço no sentido de adequar o regime jurídico à realidade empresarial brasileira, até então regulada de forma obsoleta pelo Código Comercial de 1850, que tratava das atividades de comércio e pelo decreto-lei federal 3.708/19, destinado especificamente às sociedades por quotas de responsabilidade limitada (atual sociedade empresária limitada).

Nesse contexto, o CC 2002 trouxe novas disposições, dentre as quais encontra-se o livro II - Do Direito de Empresa, onde são estipuladas as normas sobre: atividade empresarial, a figura do empresário e da empresa, estabelecimento, bem como tipos societários e suas peculiaridades, com exceção das sociedades anônimas, tratadas em lei específica. As modificações mais relevantes se deram no capítulo destinado às sociedades limitadas, a modalidade mais utilizada no Brasil.

Como todo novo marco regulatório, estabeleceu-se um prazo de vacatio legis de 1 (um) ano para adaptação das sociedades, a contar da publicação do CC 2002. Especificamente no que tange às associações, sociedades, fundações e empresários, o artigo 2.0311 inicialmente previu igual prazo para a conformação às novas regras e diretrizes, o qual teve de ser prorrogado por sucessivas vezes por meio de alterações legislativas. O prazo final encerrou-se em 11 de janeiro de 2007, quando o CC 2002 passou a ter eficácia também para as referidas classes.

Não obstante, o artigo 2.0332 determinou a eficácia imediata do CC 2002 para as pessoas jurídicas que realizassem qualquer modificação em seus atos constitutivos, bem como fossem objeto de reorganizações societárias (transformação, incorporação, cisão ou fusão). Assim, as Juntas Comerciais ou Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, passaram a condicionar o arquivamento desses atos modificativos à adequação dos contratos sociais. Nesse ponto, a lei não deixou espaço para discussões, haja vista que a determinação foi clara e objetiva.

Ocorre que, a despeito da previsão específica com relação às empresas que levaram atos modificativos a registro durante o período de vacatio legis, após o decurso deste prazo muitas sociedades permaneceram com seus contratos sociais inalterados e como não há no CC 2002 nenhuma previsão expressa no sentido de declarar a irregularidade dessas sociedades, tampouco impor qualquer sanção pelo descumprimento, surgiram algumas correntes entre os operadores do direito buscando interpretar tal lacuna.

Uma das correntes defende a inconstitucionalidade do artigo 2.031, sob o argumento de que a celebração do contrato de constituição de sociedade teria força de ato jurídico perfeito. Assim, em vista da primazia garantida ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido3 4, a validade dos negócios jurídicos está sujeita à lei vigente no momento de sua consumação e uma norma superveniente não poderia retroagir para atingir atos pretéritos, em prol da segurança jurídica e estabilidade social.

Ademais, tal corrente alega que as leis de natureza comercial têm caráter expositivo e declaratório, prevalecendo a vontade e a liberdade dos contraentes para pactuar o que desejarem, assim como realizar quaisquer alterações ao que foi convencionado, desde que as cláusulas do contrato não sejam nulas ou contrárias à lei. Deste modo, as regras entre particulares não estariam sujeitas a uma lei geral.

Portanto, segundo a corrente em questão o artigo 2.031 seria inconstitucional por ferir o princípio da irretroatividade, na medida em que atinge os contratos já celebrados, obrigando os contratantes que se encontram sob o manto da legislação anterior a incorporar um novo sistema normativo.

Uma outra corrente sustenta que após o decurso do prazo para adaptação dos contratos sociais, seriam nulas apenas as disposições que estiverem em desconformidade com a nova lei e não o contrato como um todo. Esta assertiva tem como base o princípio da conservação do negócio jurídico, segundo o qual o contrato deverá ser aproveitado ao máximo, excluindo-se apenas as cláusulas nulas em prol da manutenção das demais disposições e da própria sociedade. Assim, parte-se do pressuposto da validade e não da nulidade, podendo a irregularidade ser declarada apenas judicialmente, mediante provocação do interessado.

De outro lado, há uma terceira corrente que parece mais adequada, uma vez que busca elucidar a natureza jurídica do contrato de sociedade de modo a determinar se o mesmo reveste-se da qualidade de ato jurídico perfeito. Pois bem, trata-se de contrato por meio do qual pessoas naturais ou jurídicas se obrigam mutuamente a contribuir para o exercício de atividade econômica organizada, voltada à produção ou circulação de bens ou de serviços para auferir lucro. Como tal, assume uma característica sui generis em relação às demais modalidades contratuais, pois não se trata de um simples acordo de vontades entre partes opostas, mas sim um conjunto de atos que resulta na permanente comunhão de interesses dos sócios para a consecução do fim social.

Deste modo, verifica-se a existência de uma conciliação ininterrupta de vontades que se mostra imprescindível para o exercício da atividade empresária, tendo como característica predominante a necessidade de preservação do affectio societatis entre os sócios, sem o qual a sociedade perde a sua finalidade. Tal característica permite inferir que é um tipo de contrato de execução continuada, tendo como principais particularidades a subjetividade e mutabilidade.

Assim, a natureza do contrato social contrapõe a ideia de ato acabado e estático que o classificaria como ato jurídico perfeito, uma vez que a própria causa que mantém o vínculo jurídico entre os sócios se renova a cada instante, não se limitando apenas ao convencionado no momento inicial de nascimento da sociedade. Destarte, não há que se falar em imunidade às alterações legislativas supervenientes, devendo ser cumprida a determinação do artigo 2.031 do CC 2002, que determina a adequação do contrato social às regras trazidas pelo CC 2002.

O TJ/SP e o TRF da 4ª Região sustentam que a falta de adequação das sociedades às disposições do CC 2002 implica na equiparação à sociedade irregular, afastando a regularidade e validade dos atos e decisões posteriores5.

Muito embora a personalidade jurídica, como direito intransmissível e irrenunciável, não seja afetada em decorrência de eventual irregularidade6, vejamos alguns possíveis efeitos advindos do afastamento das prerrogativas conferidas somente às sociedades regulares:

  • Impedimento de arquivar perante as Juntas Comerciais ou Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, qualquer ato societário no qual não conste a regularização, conforme o caso;
  • Perda da autonomia patrimonial dos sócios;
  • Impossibilidade de apresentar pedido de falência de seus devedores;
  • Impossibilidade de se beneficiar da recuperação judicial de empresas;
  • Ineficácia probatória de seus livros comerciais;
  • Impedimento de participação em licitações e contratação com o Poder Público;
  • Dificuldades ou impedimento para a realização de operações junto aos bancos, incluindo o Banco Central.

Em virtude do exposto, resta clara a necessidade e utilidade de adequação dos contratos sociais ao CC 2002, tanto em relação às sociedades formadas antes como às contemporâneas ao referido diploma legal. É responsabilidade do administrador alertar os sócios sobre essa necessidade, e dever dos sócios promover o quanto antes as alterações introduzidas pelo CC 2002.

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1 Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007.

 

2 Art. 2.033. Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44, bem como a sua transformação, incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código.

 

3 Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

 

4 Art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: "A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada".

 

5 TJSP; Apelação 0000331-06.2010.8.26.0301; relator: Fabio Tabosa; órgão julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jarinu - Vara Única; Data do Julgamento: 12/06/2017; data de registro: 13/6/17.

TJSP; Apelação 9204140-28.2009.8.26.0000; relator: Francisco Loureiro; órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de Presidente Epitácio - 1.VARA CIVEL; Data do Julgamento: 22/4/10; data de registro: 12/5/10.

TRF-4ª R. - AG 2009.04.00.002412-3 - 3ª T. - Rel. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz - DJ 22/4/09.

 

6 Enunciado nº 394 da IV Jornada de Direito Civil: Ainda que não promovida a adequação do contrato social no prazo previsto no art. 2.031 do Código Civil, as sociedades não perdem a personalidade jurídica adquirida antes de seu advento.

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*Luiz Guilherme Silveira Franco é advogado do escritório De Vivo, Whitaker e Castro Advogados.

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