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A lei da liberdade econômica, desconsideração da personalidade jurídica e a figura do grupo econômico: efeitos práticos

Cristiano Padial Fogaça, Daniel Moreti e Matheus Lira de Lima

Em que pese o fato de que tais alterações são extremamente benéficas, ao mesmo tempo, reforçam a necessidade de que os sócios e administradores se submetam às disposições da lei.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Atualizado em 27 de março de 2020 10:00

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A MP 881/19, popularmente chamada de "MP da Liberdade Econômica", foi convertida na lei 13.874, de 20 de setembro de 2019. A nova lei trouxe importantes mudanças em relação ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Em primeiro lugar, vale rememorar que a desconsideração da personalidade jurídica é a medida processual determinada pelo juízo mediante requerimento do credor ou do MP, quando cabível a intervenção deste, pela qual incluem-se os sócios e/ou administradores de determinada pessoa jurídica no polo passivo da ação, fazendo com que estes respondam com seu patrimônio particular pelas dívidas contraídas pela sociedade perante o credor.

O CPC/15 já havia alterado o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica, o qual passou a ser tratado como um incidente processual, com a necessidade de prévia citação dos sócios e administradores para manifestação, a fim de assegurar-lhes o direito à ampla defesa.

Ocorre que o CC, em seu artigo 50, ao disciplinar o abuso da personalidade jurídica capaz de ensejar a sua desconsideração, dispôs que, para caracterização de tal abuso, haveria necessidade da existência de "confusão patrimonial" ou de "desvio de finalidade". 

Como é sabido, tais conceitos não foram, à época, definidos pelo CC, motivo pelo qual coube ao Judiciário, nas suas mais distintas esferas, debruçar-se a despeito de quais atos que seriam capazes de configurar uma confusão patrimonial entres os bens da sociedade e de seus sócios e administradores, bem como eventual desvio de finalidade da sociedade. Havia grande incerteza nessas definições legais, que representavam verdadeiros conceitos jurídicos indeterminados. 

Assim, em bom tempo, a lei da Liberdade Econômica passou a definir legalmente os conceitos de "confusão patrimonial" e "desvio de finalidade", alterando a redação do artigo 50, do CC. De acordo com a nova lei, o desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores, bem como com o intuito de dar vazão à prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

Já a confusão patrimonial deve ser entendida como a ausência de separação de fato entre os patrimônios dos sócios e o da sociedade, podendo ser caracterizada pelo adimplemento sistemático das obrigações particulares do sócio ou do administrador por parte da sociedade, ou o contrário, o pagamento de obrigações da sociedade pelo sócio ou pelo administrador, com recursos pessoais.

A transferência de ativos ou de passivos sem as efetivas contraprestações é outra hipótese para a caracterização da confusão patrimonial, excetuando-se os ativos ou passivos de valor proporcionalmente insignificante. Exemplo dessa prática, para fins de ilustração, é a aquisição de um veículo por parte de um sócio, com a subsequente utilização do mesmo pela sociedade, acompanhado do lançamento contábil (para inserir o bem no ativo da sociedade) sem qualquer contrapartida.

A alteração legal também fez importante referência a "bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso", de forma a esclarecer que a desconsideração da personalidade jurídica não deve atingir a todos os sócios necessária e indistintamente. 

Por mais que a lei da Liberdade Econômica tenha definido os conceitos de "confusão patrimonial" e "desvio de finalidade", trazendo mais harmonia e segurança jurídica, é fato que deixou margem a interpretações do Judiciário ao enumerar que "outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial" possam refletir na confusão patrimonial. Além disso, é válido mencionar que, no caso da transferência de ativos ou passivos, a apuração e definição do que será um "valor proporcionalmente insignificante" também deverá ser analisada por parte do Judiciário, mantendo-se espaço para um certo subjetivismo. 

De mais a mais, um dos pontos importantíssimos quando se trata de desconsideração da personalidade jurídica, é a existência do chamado "grupo econômico", que pode ser definido, no âmbito do direito comercial (difere-se do conceito no Direito do Trabalho, por exemplo), como um conjunto de sociedades no qual se há o controle efetivo de uma sociedade sobre todas as demais ou um conjunto em que estas forem coligadas.  Referido controle pode ser fundado na titularidade de ações ou quotas por outra sociedade (por participação direta ou indireta) ou, ainda, mediante acordo entre os sócios/acionistas (bloco de controle), desde que se tenha assegurado, de modo permanente, o direito à preponderância nas deliberações societárias. De outro lado, uma sociedade será coligada à outra quando, embora uma não exerça o controle sobre a outra, exerça influência significativa sobre suas decisões financeiras e operacionais, conforme estabelecido pelo art. 243 da lei 6.404/1976 (LSA) e pelo 1.099 do CC.¹

Esse tema é extremamente relevante, por exemplo, ao direito tributário, já que, não raro, o fisco entende por atribuir responsabilidade por dívidas tributárias a pessoas jurídicas distintas pelo simples fato de integrarem o mesmo grupo econômico. Com a alteração legislativa, fica expresso que a simples existência de grupo econômico não configura ato ilícito para fim de desconsiderar a personalidade da empresa devedora e atribuir a responsabilidade pelas dívidas a outra ou outras empresas que integram o mesmo grupo ou conglomerado empresarial.

Assim, a atribuição de responsabilidade tributária a outras empresas que integram o grupo econômico depende da efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, na forma da redação atual do artigo 50 do CC.

Contudo, fica pendente, quanto à responsabilidade de grupo econômico, a necessidade de instauração, ou não, do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica -IDPJ - art. 133 do CPC.

Essa discussão é extremamente cara aos contribuintes. Se houver a instauração do IDPJ, a empresa que foi considerada responsável tributária pelas dívidas de outra, que integra o mesmo grupo econômico, poderá defender-se sem a necessidade de garantir previamente o juízo, por meio de depósito, penhora de bens, fiança bancária ou seguro garantia. Todavia, se não houver a instauração do IDPJ, o único meio de defesa será aquele previsto na lei 6.830/80 (lei das Execuções Fiscais), a saber, os embargos à execução, que possui como requisito de admissibilidade a garantia do juízo.

O STJ tem enfrentado o tema, mas ainda sem definição (REsp 1.775.269, rel. Min. Gurgel de Faria, j. 21/2/19, T1 - 1ª turma e REsp 1.786.311 PR, Relator: Ministro Francisco Falcão, j. 9/5/19, T2 - 2ª turma).

O mesmo ocorre no TRF da 3ª região, estando pendente de julgamento o IRDR - 0017610-97.2016.4.03.0000.

Como se vê, com o advento das alterações advindas da lei em questão, o CC passou a ter previsão expressa, em seu art. 50, de que a mera existência de grupo econômico sem a presença de qualquer desvio de finalidade ou confusão patrimonial não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, para se responsabilizar uma sociedade pertencente a um determinado grupo por conta de dívidas de outra do mesmo grupo. Tal previsão confere uma real segurança às empresas que efetivamente participam de grupos econômicos e não cometem atos de abuso de personalidade.

Em suma, a nova redação dada ao artigo 50, do CC, pela lei da Liberdade Econômica, demonstra-se totalmente oportuna, definindo legalmente os conceitos de confusão patrimonial e desvio de finalidade, muito embora ainda dê margem a interpretações suplementares do Poder Judiciário, mas limitando-as a certas molduras legais. Ademais, há um considerável avanço na proteção dada às empresas integrantes de grupos econômicos.

Contudo, em que pese o fato de que tais alterações são extremamente benéficas, ao mesmo tempo, reforçam a necessidade de que os sócios e administradores se submetam às disposições da lei, principalmente no tocante à separação patrimonial, a fim de evitar que respondam em juízo com seus bens particulares perante os credores da sociedade.

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1 Essa definição corresponde ao grupo econômico de fato, que não se confunde com o grupo econômico de direito de que tratam os arts. 265 e seguintes da LSA.

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*Cristiano Padial Fogaça é sócio de Fogaça, Moreti Advogados. Mestre e professor de Direito Empresarial e especialista em Contencioso Cível e Empresarial. Membro do IBDFAM.

*Daniel Moreti é sócio de Fogaça, Moreti Advogados. Doutor e professor de Direito Tributário. Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo.

*Matheus Lira de Lima é advogado em Fogaça, Moreti Advogados.

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