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Possíveis impactos do PL 1.179/20 no Direito Privado

Maurício de Ávila Maríngolo, Marianne Neiva dos Santos e Maria Eduarda Carvalho

É certo que este PL não consegue alcançar todas as hipóteses, nas relações de Direito Privado, afetadas com as medidas adotadas no país para contenção da pandemia, dadas as circunstâncias e a urgência na sua tramitação e promulgação.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Atualizado às 11:46

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A delicada situação pela qual vimos passando, por ocasião das medidas de isolamento social e contenção da velocidade epidêmica da covid-19, já vem produzindo sensíveis impactos econômicos, jurídicos e sociais - e muita incerteza - nas mais diversas relações de Direito Privado. No caso do Brasil, onde o sistema jurídico é legalista, o Congresso Nacional, por iniciativa do Senado, entendeu pela necessidade de impor ajustes e regras transitórias em algumas normas jurídicas, a exemplo do que foi feito pelas Casas Legislativas da Alemanha e Itália, notadamente naquelas que se referem aos contratos privados, Direito de Família, relações de consumo e relações entre condôminos, com o objetivo de relativizar a aplicação de normas de Direito Privado durante o estado de calamidade pública instaurado.

PL 1.179/201, ao tratar do "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado" (RJET) a ser aplicado no período de 20/3/20202 a 30/10/2020, dentre outras disposições, suspende a concessão de liminares, em ações ajuizadas nesse período, para despejo de inquilinos por atraso de aluguel e determina que a prisão por atraso de pensão alimentícia deverá ser domiciliar.

De autoria do senador Antônio Anastasia, o PL foi relatado pela senadora Simone Tebet; cujo substitutivo por ela apresentado, após debates e emendas propostas por seus pares, teve o seu texto final aprovado no dia 3 de abril, chegando à Câmara dos Deputados no dia 14/4 e agora, aguarda despacho da Presidência para definição do seu regime de tramitação e nomeação da Comissão e relatoria que ficará responsável pela sua condução e apresentação à votação da Casa.

Em webinar3 realizada no dia 10/4 para tratar do tema, na qual participaram renomados juristas, além dos ministros Dias Toffoli, do STF, e Antônio Carlos Ferreira, do STJ, o caráter transitório e excepcional de suas disposições foi muito ressaltado. Na ocasião, o professor Arruda Alvim, com sua reconhecida lucidez e objetividade, foi preciso ao considerar que "o Direito deve ser adequado à sociedade, e não o inverso, voltando os olhos ao bem comum com base na proporcionalidade inserida na legislação", para explicar que o PL não revogará e não alterará qualquer das normas jurídicas sobre as quais afeitas a ele.  

São premissas do projeto de lei, portanto, a não interferência nos códigos, legislações e conceitos vigentes, mas apenas e tão somente estabelecer, dentro de um lapso temporal definido, regramentos extraordinários de ordem objetiva, a serem aplicados exclusivamente nesse momento de isolamento social, com o propósito de evitar ou, ao menos, minimizar o potencial de milhões de litígios judiciais que poderão vir a se adicionar ao enorme acervo já existente no Poder Judiciário brasileiro.

É certo que este PL não consegue alcançar todas as hipóteses, nas relações de direito privado, afetadas com as medidas adotadas no país para contenção da pandemia, dadas as circunstâncias e a urgência na sua tramitação e promulgação. Assim, conforme informações obtidas junto à Agencia Câmaras de notícias4 o PL aborda as seguintes questões, julgadas pelo legislador, de acordo com sua percepção do momento atual e das consequências dali advindas, como fundamentais para que possamos, em um segundo momento, minimizar os impactos sociais e econômicos e que se apresentam inevitáveis, a saber:

Nos condomínios: O síndico terá poderes para restringir o uso de áreas comuns e limitar, ou proibir, a realização de reuniões, festas e o uso do estacionamento por terceiros. Não se aplicam as restrições para atendimento médico e obras de natureza estrutural. A assembleia condominial e a votação de itens de pauta poderão acontecer por meio virtual. Os eventuais mandatos vencidos a partir de 20 de março serão automaticamente prorrogados até 30 de outubro, caso não seja possível a realização de assembleia virtual.

Direito de arrependimento: Até 30 de outubro está suspensa, nas entregas em domicílio (delivery), a aplicação do direito de arrependimento - prazo de sete dias para desistência da compra, previsto no Código de Defesa do Consumidor. A regra vale para compras de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.

Vigência da LGPD (regulamenta o tratamento de dados pessoais de clientes e usuários por empresas públicas e privadas): De acordo com o projeto, ficará adiado, de agosto de 2020 para 1º de janeiro de 2021, o início da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). As multas e sanções previstas na lei serão prorrogadas para 1º de agosto de 2021.

Aplicativos de transporte: Empresas como Uber e 99 terão que reduzir as comissões cobradas de cada viagem em pelo menos 15%, transferindo a quantia para os motoristas. Os preços das viagens aos usuários não poderão subir em razão disso. As regras também se aplicam aos táxis.

Revisão de contratos: O aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário não poderão ser considerados fatos imprevisíveis que justifiquem pedidos de resolução ou revisão contratual. O texto segue jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Inventários: Será adiado, para 30 de outubro, o início da contagem do prazo para a abertura de inventários relativos a falecimentos ocorridos a partir de 1º de fevereiro. O texto também prevê a suspensão, até 30 de outubro, dos prazos para conclusão de inventários e partilhas iniciados antes de 1º de fevereiro.

Assembleias: As sociedades, as associações e as fundações deverão obedecer às restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30 de outubro, podendo valer-se de assembleias virtuais.

Prescrição: Os prazos prescricionais estarão impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência da lei até 30 de outubro.

Concorrência: Não será considerado ato de concentração a celebração, por duas ou mais empresas, de contrato associativo, consórcio ou joint venture, ressalvada análise após 30 de outubro pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Igualmente, não será considerada infração da ordem econômica, até 30 de outubro, vender bens e serviços injustificadamente abaixo do custo, ou cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa (ocorre quando uma empresa viável encerra a produção a fim de prejudicar fornecedores ou o mercado).

Usucapião: Até 30 de outubro ficarão suspensos os prazos de aquisição de propriedade mobiliária ou imobiliária por meio de usucapião.

Apesar da busca pela melhora no setor de relações privadas, é de se destacar que o PL, fora a dilação do prazo para reflexão do consumidor quanto a devolução de mercadorias adquiridas fora do estabelecimento (delivery ou pela internet), não trata das demais questões das relações consumeristas, que se mantém inalteradas para o período, mas tão somente às relações cíveis.

Com isso, outras questões importantes, à guisa de exemplo, a possibilidade de negociação ou flexibilização de pagamentos de mensalidades escolares, aquelas afeitas aos planos de saúde, ou relacionadas às faturas de cartões de crédito, situações que preocupam boa parte da população, também não estão elencadas no rol de disposições do PL que, em seu capítulo IV, além de excluir as relações de consumo, faz limitações quanto aos fatos imprevisíveis e de força maior relativamente aos desequilíbrios econômico financeiros e às modificações das circunstâncias, a médio e longo prazo, originárias de cada avença.

Do mesmo modo, ele não intervém na questão relacionada à polêmica sobre a possibilidade de descontos, flexibilizações e parcelamentos das mensalidades escolares. Em razão do brusco impacto na área da educação, muitos estudantes e responsáveis financeiros, de um lado, se sentem prejudicados por continuarem pagando os valores integrais para receberem aulas, atividades e avaliações à distância, ao passo que, de outro lado, muito embora as instituições possam ter parte dos seus custos e despesas reduzidos nessa época, ainda subsistem obrigações com fornecedores e seus próprios funcionários, sem mencionar adaptações e necessidade de investimentos para possibilitar a disponibilização e manutenção de suas atividades de ensino, agora em ambiente virtual. Portanto, sendo tal questão de tamanha sensibilidade, nada mais justo que despender reflexões e empatia quanto a esses pontos.

No mesmo sentido, vale também uma profunda reflexão acerca da inexistência de mecanismos jurídicos que possam orientar as questões transitórias relacionadas aos contratos de plano de saúde, algo de extrema relevância no momento presente. Olhando para o cenário atual, a sociedade tem cada vez mais se preocupado com sua saúde e, com o iminente risco de contrair o covid-19, muitas pessoas têm buscado contratar planos de saúde, alterá-los, ou mantê-los mesmo diante de uma provisória incapacidade financeira ou, ainda, tê-los cancelado por ocasião de perdas de empregos e/ou iminência falimentar, no caso das empresas.

Sente-se, pela delicadeza dos temas aqui tratados, que são inúmeros os questionamentos possíveis e impossível, ao legislador, a promoção de inesgotáveis debates sobre as hipóteses e desdobramentos das relações jurídico-privadas a tempo de promulgar-se uma norma que nos direcione nesse período excepcional pelo qual passamos. No empenho de solucioná-los, o mais breve possível, fica a reflexão de até que ponto a imposição de novos regramentos podem ajudar a diminuir os impactos sociais, econômicos e processuais da atual pandemia, mesmo considerando que o nosso sistema jurídico, na sua essência, seja normativo.

E foi exatamente neste sentido que o nosso ministro da Justiça e Segurança Pública, dr. Sergio Moro5, em webinar realizada no último dia 13/4 trouxe a interessante reflexão sobre a importância do diálogo, da empatia e do bom senso, à exemplo do posicionamento da Secretaria Nacional do Consumidor - SENACOM perante o setor de aviação civil, um dos mais impactados pela pandemia. As orientações e recomendações foram para que as companhias aéreas não cobrem de taxas de remarcações e, aos consumidores, para que deem preferência ao aproveitamento do crédito para reagendamento de suas viagens, evitando a rescisão dos contratos e a devolução dos pagamentos; lembrando a relevância de um olhar mais solidário e amplo nessa situação, para que não seja necessária a movimentação das normas jurídicas, o que seria suficiente para amenizar e resolver essas questões de forma mais eficiente.

Sem entrar em questões políticas ou análise crítica e técnica das ações e medidas que cada uma das esferas dos poderes vêm tomando, com o intuito de bem administrar a situação ora instaurada e suas conclusões ainda, imprevisíveis para todos; o mais importante é que nossas autoridades possam trabalhar alinhadas a um propósito comum, trazendo à população mecanismos e ferramentas que busquem efetivamente o equilíbrio entre as legislações e jurisprudências já pertencentes ao ordenamento jurídico e novas normas, ainda que transitórias, que possam minimizar os possíveis efeitos drásticos sucedidos pela pandemia.

Do lado da população, cabe muita serenidade, bom senso e empatia, para que possam, todos juntos, construir o melhor ambiente para que possamos sair, com os menores impactos possíveis, dessa situação tão peculiar e retomar o caminho de desenvolvimento do país para que tenhamos uma amanhã melhor.

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1 PL 1.179/20. Acessado em 15/4/2020 às 14:17hs.

2 Data da publicação do decreto legislativo 6, que reconheceu o Estado de Calamidade no país, sendo considerado o marco inicial para aplicação das regras do PL em questão.

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*Maurício de Ávila Maríngolo é sócio conselheiro da área Cível do ASBZ Advogados.

*Marianne Neiva dos Santos é advogada da área Cível, com foco em Tribunais Superiores, do ASBZ Advogados.

*Maria Eduarda Carvalho é colaborada da área Cível, com foco em Tribunais Superiores, do ASBZ Advogados.

 

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