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A transformação do CARF em um tribunal censitário

Mesmo nos casos dos pequenos contribuintes que se enquadrarem nos requisitos legais, a restrição criada pela lei 13.988/20 impõe danos severos ao contraditório e à ampla defesa, a todos garantidos pela Constituição Federal.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Atualizado às 12:36

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A lei 13.988/20, recém-publicada, não trouxe promissoras propostas de solução para o problema do contencioso tributário no Brasil. Ao contrário, ao que tudo indica, apenas determinou normas que possibilitam à Receita Federal e à PGFN apresentarem propostas de transação em situações desfavoráveis ao Erário. Em outras palavras, em regra geral, apenas em causas perdidas para a União é que o contribuinte deve poder se valer dos tímidos mecanismos trazidos.1

Mas por que deveriam os contribuintes recorrer então ao mecanismo? A resposta é simples. A cobrança do crédito tributário vem acompanhada de mecanismos extremamente gravosos para alguns contribuintes, como a necessidade de se garantir a execução para recorrer; a possibilidade de bloqueios de contas; a ameaça de representação criminal mesmo em questões de alta indagação jurídica onde se discute se o tributo é devido ou não etc.

O problema é que esses mecanismos gravosos chegam às vezes a ser ingênuos para sonegadores contumazes, mas podem ser abusivos para aqueles contribuintes que pretendem bem cumprir suas obrigações. Imaginem o drama que a aplicação destemperada e irresponsável de multas qualificadas (e representações penais) vem causando àqueles bons contribuintes (cumpridores de seus deveres) que tem séria dúvida quanto ao tributo efetivamente devido.

É ressabido que o Fisco vem aplicando multas, por exemplo, em contribuintes que fizeram a autocompensação de seus créditos tão somente para inibir o procedimento. Um absurdo; um abuso de autoridade! É sempre absurdo o uso de instrumentos do Direito Penal com intuitos meramente arrecadatórios! Em diversas situações, o que caberia ser aplicado é a lei de abuso de autoridade.

O pior é que diversas autuações insensatas e abusivas passaram inadvertidamente pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Por isso, por receio de ver seus CPF's comprometidos, diversos diretores são forçados a mandar pagar o tributo indevido. O sistema de cobrança do crédito tributário, mal utilizado e mal controlado, pode coagir e forçar, assim, o pagamento de tributos indevidos.

A proposta trazida pela lei não resolveu o problema da res dubia! Ou seja, quando existe relevante dúvida sobre a legalidade do crédito tributário, o contribuinte é coagido a pagar pelo sistema, sem poder, na realidade, discutir a questão de indagação jurídica (quanto aos fatos ou quanto ao direito aplicável). A transação, nesse compasso, bem serviria para minimizar esse efeito, mas essa alternativa veio apenas acanhadamente esboçada. Nada resolve!

Se nada ou pouco resolveu, a lei trouxe alguns dispositivos duvidosos e polêmicos. Basta verificar as alterações na sistemática de julgamento no âmbito do CARF. O fim do voto de qualidade, por exemplo, já provoca acirrado debate. Mas o desastre foi causado pela transformação do CARF em um tribunal censitário, tal como existia nos tempos do Império.

O CARF, órgão final na esfera administrativa de revisão e controle da legalidade das autuações fiscais, foi transformado em uma espécie de tribunal discriminatório de grandes causas. Colocando de lado os mandamentos de moralidade administrativa, o objetivo de proporcionar "legalidade" foi adulterado. A mudança tão somente privilegiou o viés arrecadatório.

Ofendendo às máximas do devido processo legal, na seara administrativa, agora, é o próprio Fisco que deve se encarregar de decidir as autuações praticadas em causas de menor valor. Traduzindo em miúdos: o agente do Fisco fiscaliza (o que é seu papel fulcral); aplica penalidades; recebe a remuneração que privilegia a aplicação de penalidades (seja diretamente, seja indiretamente pela sistemática de avaliação de desempenho); o Fisco instrui o processo e o Fisco julga! Ao pequeno contribuinte resta espernear revoltado e, depois, recorrer ao Judiciário.

Obviamente, se ao contribuinte não foi garantida a possibilidade de verdadeiro contraditório na esfera administrativa, resta enfraquecida a presunção de certeza e liquidez da certidão de dívida ativa, portanto, seria teratológica a exigência de garantia da execução para que se pudesse assegurar a possibilidade de embargo na esfera judicial. Cabem aos julgadores, assim, afastar essa exigência, bem como atribuir efeito suspensivo aos eventuais embargos, porque o ordenamento foi adulterado e a presunção que dava respaldo à execução fiscal foi enfraquecida. Ao contribuinte não foi garantido o contraditório; a possibilidade de defesa foi cerceada e devido processo legal na esfera administrativa foi ofendido.

O certo é que a nova disciplina que a lei traz vai acarretar sobrecarga no Judiciário e agravar o perverso modelo coativo que o sistema oferece.

A matéria que deu ensejo à medida provisória 899/19 se refere aos requisitos e às condições para que a União, as suas autarquias e fundações e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária. A nova lei, que resulta da MP 899, como revela a exposição de motivos, pretende tão somente promover a recuperação dos créditos inscritos em dívida ativa da União e estimular a redução da excessiva litigiosidade relacionada a controvérsias tributárias pelo mencionado mecanismo da transação.

Entretanto, além das transações, a nova lei implementou alterações significativas na sistemática de julgamento de controvérsias tributárias, que não apareciam no texto da MP 899, como o limite censitário para recurso administrativo ao CARF. Acontece que o afastamento das pequenas causas do julgamento no CARF não reduz litigiosidade alguma pelo mecanismo da transação. O dispositivo não guarda qualquer relação com a matéria relativa à transação; por outro lado, expurgar pequenas causas do contencioso administrativo não reduz litigiosidade alguma. Na verdade, ou a lei constrange o pequeno devedor a pagar débitos indevidos (o que é teratológico), ou o encaminha para solução judicial e mais onerosa do litígio. Enfim, o tema disciplinado não é condizente com a MP 899.

Vale conferir como a lei disciplinou o contencioso administrativo fiscal de pequeno valor. Nos termos do art. 23 da lei, deve ser considerado de "pequeno valor" aquele contencioso cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 salários mínimos. A previsão é de que o julgamento administrativo seja realizado em última instância por órgão da Delegacia da Receita Federal e não pelo CARF. Em outras palavras, os débitos de pequeno valor foram defenestrados da sala de julgamentos do CARF e restou afastada a possibilidade de controle pelo órgão julgador administrativo de composição paritária.

A MP 899/19, vale frisar, dispunha apenas sobre transação tributária e visava suprir a ausência de regulamentação, no âmbito federal, do disposto no art. 171 do Código Tributário Nacional (CTN) e trazia disposições que pudessem viabilizar a autocomposição em causas de natureza fiscal. Nada mais. Nesse compasso, a introdução pelo Legislativo de uma disciplina censitária acerca dos julgamentos no CARF, que não guarda nenhuma relação com a ideia de transação tributária (trazida originalmente na MP 899), caracteriza o que o STF chamou de "contrabando legislativo", ou seja, a prática inconstitucional de apresentar emendas parlamentares sem correlação temática com a MP submetida à apreciação do Legislativo (clique aqui).

O "contrabando legislativo" é prática inconstitucional e rechaçada pelo STF, desde o julgamento da ADIn 5.127/DF, em outubro de 2015. Não se admite o flagrante desvirtuamento da função da medida provisória, a qual se destina a regulamentar questões de natureza urgente e relevante. Essa nefasta prática de apresentar emendas sem pertinência temática com a norma objeto de apreciação legislativa é vedada nos casos de medidas provisórias, porque, essa espécie normativa cinge-se aos critérios especiais para a sua elaboração e aprovação. No caso, feriu-se a iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo (art. 84, VI, "a" da CRFB/88); não foi tratada matéria revestida das características de relevância e urgência; não se fez jus ao rito especial e célere de tramitação das medidas provisórias pelo Poder Legislativo.

Em resumo, no caso em tela, a desastrada emenda com matéria que não possui vínculo lógico-temático com a norma veiculada pela MP é inconstitucional e enfraquece não só a segurança jurídica, como retira legitimidade democrática do processo legislativo. Ou se consegue dar uma interpretação conforme ou o dispositivo é inconstitucional.

Como a alteração atenta contra o princípio do contraditório, contra o devido processo e cerceia a possibilidade de defesa na esfera administrativa pelos contribuintes, o dispositivo deve ser interpretado de forma restritiva, minimizando seu alcance. Apenas assim se pode compreender o mandamento da lei.

O art. 23 aparece no Capítulo IV da lei que trata de transação por adesão. Nesse compasso, a exclusão da possibilidade de recurso ao CARF de pequenos valores só pode encontrar aplicação na hipótese de haver proposta de transação por adesão pelo Fisco. Em outras palavras, apenas quando ocorrer uma proposta nesse sentido é que a possibilidade de contencioso administrativo no CARF fica afastada. Afinal, a lei disciplina transação e o dispositivo está em capítulo que só trata dessa matéria.

Entender que o dispositivo regula todo o contencioso no CARF é o mesmo que admitir que houve contrabando legislativo, razão pela qual se impõe a intepretação conforme e o entendimento restritivo, como acima apontado.

Mais do que isso, é preciso que se verifique que o art. 23 deve ser interpretado de forma sistemática, combinando a letra do artigo com o dispositivo subsequente (art. 24). Afinal, em sintonia com o que deve ser disciplinado pela lei, que a isso se propõe, o caput do art. 24 trata de condições para a realização de transação. O parágrafo único do dispositivo especifica que é considerado como contencioso tributário de pequeno valor aquele cujo crédito tributário em discussão não supere o limite de 60 salários mínimos e que tenha como sujeito passivo pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte.

Assim, o entendimento que deve prevalecer é o de que apenas se houver proposta de adesão em transação pelo Fisco é que ocorre o afastamento do CARF do contencioso de pequeno valor e tão somente para sujeito passivo pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. Apesar da péssima técnica legislativa adotada, a determinação da lei é a de que seja assim caracterizado o litígio que preencha os dois requisitos de forma cumulativa. Tão somente nessa hipótese é que acontecerá o julgamento em última instância por órgão da Delegacia da Receita Federal do Brasil

Mesmo assim, em débito de pequeno valor de microempresa ou empresa de pequeno porte, havendo ação judicial para se discutir o crédito tributário, pelas razões acima expostas, não faz sentido a exigência de garantia judicial para que se possa embargar a execução e deve o juiz atribuir efeitos suspensivos aos embargos, sob pena de haver notório cerceamento de defesa.

Por certo, havendo processos conexos, do mesmo contribuinte, e com o mesmo fundamento, na apuração do valor limite, deve-se somar o valor dos processos. Imaginem, por exemplo, obstar a apreciação pelo CARF de situações em que há glosas de compensação pelo Fisco. Usualmente, cada Declaração de Compensação gera um processo específico, muitas vezes com valor individual inferior a 60 salários mínimos, embora a soma de todas as compensações sobre o mesmo tema supere significativamente este valor. Nesse caso, por razões óbvias, os processos devem ser apensados e considerado o valor total para fins de apuração dos 60 salários mínimos.

É preciso deixar gizado que a interpretação do tema conforme a previsão estrita do art. 23 da nova lei se revela incompleta, na medida em que desconsidera o segundo requisito instituído pelo parágrafo único do art. 24, e uma interpretação desconsiderando o elemento sistemático pode conduzir a uma restrição indevida de acesso ao CARF.

Mais uma vez é preciso firmar que, mesmo nos casos dos pequenos contribuintes que se enquadrarem nos requisitos legais, a restrição criada pela lei 13.988/20 impõe danos severos ao contraditório e à ampla defesa, a todos garantidos pela Constituição Federal. A mesma norma que oferta a oportunidade de transação para a resolução de litígios também cerceia a possibilidade de julgamento qualificado acerca da legitimidade da cobrança, que é realizado pelo CARF com notória tecnicidade e com a presença de conselheiros representantes dos contribuintes. Por outro lado, é ressabido que o julgamento administrativo em última instância por órgão da Delegacia da Receita Federal deixa os pequenos contribuintes à mercê do entendimento restritivo do Fisco.

Os possíveis efeitos são calamitosos. O contribuinte é induzido a judicializar a questão, sobrecarregando ainda mais o Judiciário, ou a firmar transação ou pagar créditos tributários indevidos, sobretudo quando não dispõe dos recursos necessários para levar adiante a custosa controvérsia judicial. A medida, quando pouco, revela-se contraditória à determinação constitucional de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte. O art. 146, III, "d" e art. 179 da CRFB/88 restam assim ofendidos na essência. Não porque o dispositivo não tenha sido atendido, mas a norma que expurga os processos de micro e pequena empresa da possibilidade de apreciação pelo CARF faz um tratamento discriminatório aos empresários que precisam ser embalados e ajudados, e não prejudicados.

A norma, assim, é inconstitucional por prejudicar as micro e pequenas empresas; por ofender ao princípio do contraditório e da ampla defesa; por proporcionar um tratamento ofensivo à isonomia exatamente para aqueles que deveriam receber um tratamento desigual e favorável, para serem igualados. Ademais, formalmente, ocorre patente e odioso contrabando legislativo.

Enfim, a nova lei, quando disciplina o contencioso no CARF, tornando-o um tribunal censitário, é lastimável e inconstitucional.

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1 A propósito, vale conferir, BATISTA JR. Onofre Alves.Transações administrativas. São Paulo: Quartier Latin, 2007,passim.

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*Onofre Alves Batista Júnior é sócio consultor do Coimbra & Chaves Advogados. Professor associado de Direito Público da graduação e pós-graduação da UFMG. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

*Paulo Roberto Coimbra Silva é sócio fundador do Coimbra & Chaves Advogados. Professor Associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG. Doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG. Pós-graduado pela Harvard Law School.

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