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A variação cambial não autoriza a revisão ou reequilíbrio contratual

A alta do dólar ou qualquer variação cambial não configuram situação de onerosidade excessiva de uma das partes contratantes.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Atualizado em 9 de junho de 2020 09:38

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Assim que a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu como pandemia a disseminação do novo coronavírus (covid-19) por várias regiões do mundo e as autoridades governamentais passaram a adotar medidas restritivas visando conter os avanços do referido vírus, passou-se, no mundo jurídico, quase que intuitivamente, a se considerar açodadamente que, diante desse novo cenário, os contratantes não responderiam mais pelo inadimplemento de suas obrigações em decorrência desse "caso fortuito", ou de "força maior", nos termos do artigo 393 do Código Civil, ou em razão de situação de onerosidade excessiva, calcada pela teoria da imprevisão (Código Civil, artigos 478 e 480).

Nas semanas seguintes à declaração da pandemia, após um maior aprofundamento nos debates e reflexões mais acuradas sobre o tema, veio à tona um entendimento mais apropriado a respeito dos reflexos gerados pela pandemia do coronavírus nas relações contratuais estabelecidas, em conformidade com os princípios e disposições legais vigentes no ordenamento pátrio.

Neste contexto, é de suma importância ter em mente que a simples disseminação do coronavírus e a consequente adoção de medidas restritivas pelas autoridades governamentais visando a controlar o avanço da doença, por si só, não autorizam a aplicação do instituto de caso fortuito ou de força maior, muito menos configura situação de onerosidade excessiva de uma das partes contratantes. Em outras palavras, a pandemia do covid-19 não é uma causa em si mesma nem autoriza automaticamente a revisão de contratos.

É essencial que a parte que busca o reequilíbrio contratual esteja adimplente com todas as suas obrigações e comprove, de forma concreta, que o evento tenha ocorrido diretamente em decorrência da pandemia, sendo impossível de ser evitado pela parte, e que tal fato impossibilitou o cumprimento de sua obrigação contratual, além de ter que ser demonstrado pela parte a adoção de medidas visando evitar ou reduzir os prejuízos acarretados à outra parte contratante.

Prestadas essas considerações iniciais, convém ressaltar que, dentre os acontecimentos que não podem ser enquadrados como evento de força maior ou caso fortuito, a variação cambial é um dos fatos que tem sido bastante suscitado pelas partes contratantes, levando-se em conta, primordialmente, a alta do dólar americano ocorrida nos últimos meses.

Ocorre, entretanto, que a variação cambial e seus reflexos nos contratos empresariais e civis celebrados no Brasil é uma realidade econômica antiga, não podendo, portanto, ser caracterizada como um fato imprevisível ou extraordinário.

 Sobre  essa questão, a Jurisprudência pátria é categórica no sentido de que, diante do cenário econômico existente no Brasil já há algum tempo, a alta do dólar ou a crise cambial não podem ser entendidas como fato imprevisível, aleatório ou extraordinário, competindo a todo empreendedor considerar essa variável para a realização de qualquer negócio, caracterizando-se, pois, como risco próprio da contrato celebrado. Vejamos:

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. REVISIONAL. COMPRA E VENDA DE FERTILIZANTES. INDEXAÇÃO COM BASE NA MOEDA AMERICANA. RELEVANTE ALTERAÇÃO DO DÓLAR AO FINAL DO ANO DE 2008. TEORIA DA IMPREVISÃO. AFASTAMENTO.

1. 'O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999,não autorizam concluir pela imprevisibilidade desse fato nos contratos firmados com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária.' (REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 3/3/2015).

2. Não envolvendo relação de consumo, o contrato objeto do pedido de revisão, mas, sim, revelando-se paritário, convém que se submetam as partes aos termos do acordo celebrado, não decorrendo da variação cambial verificada base para a revisão do negócio entabulado.

3. A variação ocorrida no valor da moeda americana ao final do ano de 2008, com reflexo no contrato de compra e venda de fertilizantes, indexado com base na variação do dólar americano, não se revela imprevisível a ponto de autorizar o Poder Judiciário, com base na Teoria da Imprevisão, a proceder à sua revisão e alterar o indexador estipulado.

4. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO". (Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Acórdão proferido no agravo regimental no RE 1.518.605/MT; julgado em 7.4.2016; destacamos).

"RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. DÓLAR AMERICANO. MAXIDESVALORIZAÇÃO DO REAL. AQUISIÇÃO DE EQUIPAMENTO PARA ATIVIDADE PROFISSIONAL. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIAS DA IMPREVISÃO. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. TEORIA DA BASE OBJETIVA. INAPLICABILIDADE.

1. Ação proposta com a finalidade de, após a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, modificar cláusula de contrato de compra e venda, com reserva de domínio, de equipamento médico (ultrassom), utilizado pelo autor no exercício da sua atividade profissional de médico, para que, afastada a indexação prevista, fosse observada a moeda nacional.

(...)

3. A intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometa o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica.

4. O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, não autorizam concluir pela imprevisibilidade desse fato nos contratos firmados com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária.

(...)

7. Recurso especial não provido". (Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Acórdão proferido no RE 1.321.614/SP; julgado em 16.12.2014).

"DIREITO EMPRESARIAL. CONTRATOS. COMPRA E VENDA DE COISA FUTURA (SOJA). TEORIA DA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INAPLICABILIDADE.

(...)

3. O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a aplicação da teoria da imprevisão, de que trata o art. 478 do CC/02: (I) os contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida, mas contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (II) a alta do preço da soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu o lucro esperado pelo produtor rural e (III) a variação cambial que alterou a cotação da soja não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas as partes contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que tais flutuações são possíveis.

5. Recurso especial conhecido e provido." (Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, RE 936.741/GO; Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 03.11.2011).

A fim de afastar qualquer dúvida ou discussão sobre o tema, encontra-se em tramitação do Congresso Nacional o PL 1.179/2020, que visa instituir o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (covid-19), que, dentre outras previsões, estabelece textualmente que não podem ser considerados fatos imprevisíveis, para fins de revisão das condições contratuais pactuadas, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.

Nesta seara, conclui-se que a alta do dólar ou qualquer variação cambial não configuram situação de onerosidade excessiva de uma das partes contratantes, muito menos podem ser apontadas como evento imprevisível, extraordinário ou aleatório, invocando-se, para tanto, o instituto do caso fortuito ou de força maior para embasar um pedido de revisão ou de reequilíbrio contratual.

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*Diogo Santos Oliveira é sócio do escritório H. O. Santos Oliveira Advogados.

*Filipe Santos Oliveira é sócio do escritório H. O. Santos Oliveira Advogados.

*Bruno Santos Oliveira é sócio do escritório H. O. Santos Oliveira Advogados.

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