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Reforma da Previdência e a persistência da complementação de aposentadorias e pensões no Estado de São Paulo

A nova previsão constitucional do art. 37, § 15 evitará, assim, que os benefícios administrativos de complementação, que começaram a ser extintos em São Paulo em 1974, se arrastem por mais décadas com custos bilionários aos cidadãos paulistas.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Atualizado em 30 de junho de 2020 07:30

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É provável que a maioria dos contribuintes paulistas não saiba que o Estado de São Paulo, há décadas, tem gastos bilionários com benefícios pagos a aposentados e pensionistas sem que a este benefício tenha correspondido qualquer contribuição. Trata-se dos benefícios administrativos denominados complementação de aposentadoria e complementação de pensão; o primeiro pago a empregados públicos aposentados, sobretudo de empresas públicas e sociedades de economia mista, e o segundo pago a seus respectivos dependentes.

Esses benefícios foram criados no longínquo ano de 1951, pela Lei Estadual 1.386/51, que o previu para os empregados da administração direta, e foi estendido pela Lei Estadual 4.819/58 aos empregados da administração indireta. Ele corresponde à diferença entre o valor pago pelo Regime Geral de Previdência Social (hoje, pelo INSS) e o valor da remuneração que o empregado recebia do Estado de São Paulo.

Seu objetivo era dar aos empregados públicos a garantia de que receberiam, após aposentados, o mesmo que recebiam na atividade. A essa garantia de manutenção na inatividade da remuneração da atividade somou-se, ainda, para várias carreiras uma garantia de que reajustes do pessoal da ativa seriam também repassados aos complementados, de modo que o aposentado tinha não só, independentemente de contribuição, o direito de receber o mesmo montante que recebia na atividade, como também o direito de receber o mesmo montante que seus colegas na atividade passassem a receber caso reajustadas suas remunerações.

Isso colocou os empregados públicos em situação de evidente iniquidade em relação aos empregados da iniciativa privada - todos eles igualmente segurados do Regime Geral de Previdência Social. Afinal, dois empregados celetistas, um da iniciativa privada e um da administração pública, que recebiam o mesmo salário na atividade e vertiam as mesmas contribuições previdenciárias poderiam, após a aposentadoria, ter rendimentos muito diferentes e a diferença ficaria a cargo do tesouro estadual.

Na década de 70, então, com o intuito de extinguir esse benefício, foi promulgada a Lei Estadual 200/74. Essa lei, entretanto, mais do que preservar apenas os direitos adquiridos, previu uma espécie de regra de transição extremamente benéfica. Seu art. 1º, parágrafo único. garantiu não só a manutenção das complementações aos beneficiários que já a recebiam como também garantiu a concessão de novos benefícios de complementação de aposentadoria aos empregados admitidos até 13 de maio de 1974 e de complementação de pensão aos seus respectivos dependentes.

Isto é, os empregados admitidos no Estado de São Paulo até maio de 1974 mantiveram direito a receber além do benefício previdenciário pago pelo INSS também um benefício administrativo pago pelo Estado de São Paulo após suas aposentadorias.

Com isso, hoje, mais de 45 anos depois da lei que supostamente extinguiu as complementações, o Estado de São Paulo gasta apenas com o benefício de complementação de aposentadoria, cerca de meio bilhão de reais anualmente1. Além disso, as complementações geram enorme litigiosidade, havendo ainda hoje em tramitação no TJ/SP mais de 25.000 processos versando apenas sobre elas.2

A recente Emenda Constitucional 103/19, comumente denominada de Reforma da Previdência, traz um novo capítulo para essa história. O novo dispositivo constitucional prevê que "É vedada a complementação de aposentadorias de servidores públicos e de pensões por morte a seus dependentes que não seja decorrente do disposto nos §§ 14 a 16 do art. 40 ou que não seja prevista em lei que extinga regime próprio de previdência social". Isto é, proíbe toda complementação que não seja decorrente de Regime de Previdência Complementar - e.g., em São Paulo, benefícios pagos pela SPPrevcom ou, na União, benefícios pagos pela FUNPRESP - ou do caso especialíssimo de extinção de Regime Próprio de Previdência Social.

Estão proibidas, portanto, complementações como as pagas pelo Estado de São Paulo com base na Lei 200/74, tais como as pagas a ex-empregados e seus respectivos dependentes da VASP, BANESPA, SABESP, FEPASA e Nossa Caixa.

A nova previsão constitucional, entretanto, não faz cessar automaticamente todos esses pagamentos. A própria EC 103/19 previu em seu art. 7º que "o disposto no § 15 do art. 37 da Constituição Federal não se aplica a complementações de aposentadorias e pensões concedidas até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional". Afinal, aqueles que já adquiriram regularmente direito ao benefício administrativo de complementação de aposentadoria ou pensão conforme as regras então vigentes devem mesmo ter preservado esse direito adquirido, por força do art. 5º, XXXVI da Constituição Federal. Devem continuar, assim, a receber seus benefícios de complementação.

É preciso, contudo, delimitar bem o que significa esse direito adquirido. Um direito subjetivo é adquirido quando todo seu suporte fático normativo é aperfeiçoado in concreto, momento em que ele passa a integrar o patrimônio jurídico de seu titular. Isso quer dizer, como já ressalva a própria emenda, que se alguém cumpriu os requisitos para fazer jus à complementação de aposentadoria ou à complementação de pensão antes da entrada em vigor da EC 103/19, então já integra seu patrimônio esse direito e o novo §15 do art. 37 não afeta em nada sua situação.

O que compunha o suporte fático normativo dos benefícios administrativos de complementação de aposentadoria e da complementação de pensão quando elas ainda eram permitidas em nosso ordenamento jurídico? A concessão dos benefícios previdenciários de aposentadoria e de pensão, respectivamente. Isto é, o fato jurídico aposentadoria e o fato jurídico pensão daqueles celetistas ingressantes no serviço público até 13 de maio de 1974 e de seus dependentes, respectivamente, faziam com que incidisse a norma do art. 1º, parágrafo único, da Lei 200/74, cuja consequência era o surgimento de um direito subjetivo no seu patrimônio jurídico: o direito à complementação de aposentadoria ou à complementação de pensão.

A EC 103/19 retirou essa norma do ordenamento jurídico ao proibir a concessão de complementações de pensão. Isso quer dizer que, desde sua vigência, o fato jurídico aposentadoria e o fato jurídico pensão por morte não mais integram suporte fático de norma cuja incidência gere direito a, respectivamente, complementação de aposentadoria e complementação de pensão.

Mais concretamente, que consequências isso gera no Estado de São Paulo? Em relação às complementações de aposentadoria provavelmente nenhuma. Os ex-empregados admitidos até 13 de maio de 1974 provavelmente já estão todos aposentados e, consequentemente, já devem ter todos adquirido, se cabível, direito a complementação de aposentadoria.

Em relação às complementações de pensão, entretanto, a EC 103/19 terá grandes consequências. Os futuros pensionistas dos atuais beneficiários da complementação de aposentadoria teriam direito a complementação de pensão não fosse a nova regra constitucional. Mas, agora, não mais poderão adquirir esse direito.

Os benefícios administrativos de complementações de pensão são benefício diversos das complementações de aposentadoria, do mesmo modo que os benefícios previdenciários de aposentadoria são diversos dos benefícios de pensão. O Superior Tribunal de Justiça já fixou que "A lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado" (Súmula 340), e isso justamente porque "o fato gerador da pensão por morte é o óbito do segurado instituidor do benefício" (e.g., Embargos de Divergência em REsp 1.190.193/RN). Com isso, afastou-se qualquer possível alegação de que o benefício de aposentadoria "se converte" em benefício de pensão ou alegação ainda mais absurda de que a pensão é espécie de herança deixada por seu instituidor a seus dependentes.

O mesmo raciocínio aplica-se na questão das complementações. O benefício de complementação de aposentadoria não "se converte" em benefício de complementação de pensão e não é herança deixada aos dependentes do complementado.

O fato gerador do benefício de complementação de pensão era a concessão do benefício previdenciário de pensão. Mas, após a EC 103/19, deixou de existir norma que previsse para o fato jurídico "pensão" a consequência "direito a complementação de pensão". Portanto, nenhuma pensão concedida após a EC 103/19 gerará direito a complementação de pensão.

A nova previsão constitucional do art. 37, § 15 evitará, assim, que os benefícios administrativos de complementação, que começaram a ser extintos em São Paulo em 1974, se arrastem por mais décadas com custos bilionários aos cidadãos paulistas.

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1 Os dados foram obtidos por meio do Núcleo de Pesquisas Empíricas e Litigância Estratégica da Procuradoria Geral do Estado, com base na folha de pagamento referente ao ano de 2019, que apurou gasto de cerca de 40 milhões de reais mensais apenas com complementação de aposentadorias, excluída a complementação de pensão.

2 Dados também obtidos por meio do Núcleo de Pesquisas Empíricas e Litigância Estratégica da Procuradoria Geral do Estado, a partir da base de dados de processos judiciais da PGE-SP.

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*Caio Gentil Ribeiro é procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo.

*Pedro Camera Pacheco é procurador do Estado de São Paulo. Pós-graduado em Direito Tributário pelo IBET.

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