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A constitucionalidade do direito de arena na medida provisória 984/20

Dentre as alterações impostas pela medida provisória 984, a mais controvertida é a transferência para o clube mandante do poder decisório sobre as partidas que disputar. O que antes era repartido entre os adversários, agora é só do mandante.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Atualizado às 08:18

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No dia 18 de junho, foi publicada a medida provisória 984 de 2020, que alterou preceitos da lei 9.615/98 (Lei Pelé). Uma das mudanças foi no regramento do direito que os clubes têm de autorizar, mediante remuneração, a captação e a comunicação de imagens dos eventos desportivos.

No texto anterior da Lei Pelé, essa prerrogativa era partilhada pelos clubes participantes de determinada competição. Na prática, o que ocorria era que eles deveriam negociar conjuntamente a exibição das partidas. Na regra inserida pela MP, o direito pertence apenas ao mandante da partida, isto é, na linguagem do futebol, do clube que joga em casa.

Essa mudança é revolucionária e as opiniões que circulam nas redes, nos grupos e fóruns caminha no sentido da inconstitucionalidade da medida provisória. São dois os principais fundamentos utilizados. O primeiro: a matéria não tem relevância e urgência exigíveis constitucionalmente para a edição desse tipo de norma. O segundo: a Constituição garante a todos o direito de imagem (art. 5º, X) e a regra estaria tolhendo do clube visitante o seu direito na medida em que transfere o poder de decisão exclusivamente ao mandante da partida.

Ambos os argumentos nos incomodam sobremaneira. Incomodam-nos também a carga de certeza com a qual vêm sendo brandidos, como se o direito fosse uma ciência exata. Diante dessa inquietude, nas próximas linhas apresentaremos nossa opinião.

1. Relevância e urgência

Sobre o primeiro argumento, o Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência pacífica no sentido de que, somente em hipóteses excepcionalíssimas, o judiciário pode se imiscuir nos critérios de relevância e urgência erigidos pelo presidente da República. O ministro Celso de Melo na decisão que segue foi preciso em suas palavras:

A edição de medidas provisórias, pelo presidente da República, para legitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62, caput). Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República. (...) A possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apoia-se na necessidade de impedir que o presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais. (ADIn 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23.04.04)

A MP 984/20 não se enquadra, em nossa opinião, na excepcionalidade porque não consubstancia "exercício anômalo e arbitrário das funções estatais". É bom lembrar, a propósito, que a Constituição proíbe a edição de medidas provisórias em determinadas matérias (art. 62) e essa não está entre elas. Além disso, questões muito mais sensíveis como de direito de trabalho foram objeto de medidas provisórias recentes (905/19 - contrato verde e amarelo) sem que houvesse declaração de inconstitucionalidade por falta de relevância e urgência.

2. Violação ao direito de imagem, art. 5º, X da Constituição Federal

A tese lançada caminha no sentido de atribuir inconstitucionalidade à MP em razão de ela conceder a um só clube - o mandante - o direito de transmissão e a responsabilidade pelo pagamento do direito de arena. Ao excluir do visitante o poder decisório, a MP estaria limitando ou impedindo o exercício do direito de imagem dos clubes e dos atletas. O argumento é atraente, mas não tem consistência.

Incialmente é válido lembrar que o texto da MP não exclui o atleta do clube visitante da participação no pagamento do direito de arena. Esse é um ponto fundamental na discussão. O texto é claríssimo: transfere ao clube mandante o poder de decidir sobre a transmissão, mas não admite que esse clube deixe de pagar ao atleta adversário. Isso está cristalino no § 1º da nova redação do art. 42. Nesse prisma, está intacto o direito de imagem do atleta. Para ele, então, a única diferença entre a regra antiga e a atual é que antes existia uma transferência do poder de negociação e de autorização das transmissões para dois clubes e agora para apenas um.

Com relação ao direito de arena do clube visitante, na regra anterior à alteração imposta pela MP, já havia uma restrição que ocorria na prática. Ao determinar que pertencia a ambos o direito de autorizar ou proibir a transmissão das partidas, a Lei Pelé criou uma situação que tornava o exercício do direito por um clube dependente da vontade de outro. Apresentamos um exemplo para esclarecer. Imaginemos um campeonato de futebol disputado por 3 clubes, no qual o clube A e B negociam a transmissão por uma determinada rede de TV, mas o clube C se nega a aceitar as condições. Nesse campeonato de turno e returno teríamos as seguintes disputas:

TURNO

RETURNO

A x B

B X A

A x C

C X A

B x C

C X B

A negativa do clube C a autorizar transmissões de suas partidas faria com que a rede de TV só exibisse 2 eventos, o enfrentamento de A com B no turno e no returno. Todas as demais partidas, porquanto contem com a participação de C, não poderiam ser transmitidas. A regra anterior, portanto, coloca ao arbítrio de um clube o poder sobre o direito de arena de outro. Essa situação não é hipotética. De fato, aconteceu no Campeonato Carioca de 2020, quando o Flamengo se recusou a assinar contrato de transmissão de suas partidas com a Rede Globo, tolhendo o direito de todos os outros clubes que o enfrentavam.

Agora imaginemos esse mesmo campeonato, na regra atual imposta pela MP. O clube C só teria o poder de decidir sobre duas partidas, quando fosse o mandante das partidas contra os clubes A e B. Como consequência, a rede de TV estaria hipoteticamente autorizada a transmitir 4 partidas. Ganham os clubes, ganham os torcedores e ganha a rede de TV.

No campeonato Brasileiro de Futebol deste ano, estavam previstos 380 jogos, de turno e returno. Uma determinada rede TV assinou contrato com 8 clubes e outra com 12 clubes. Isso significa que, na regra antiga da Lei Pelé, 192 jogos não podem ser transmitidos (mais da metade), porque quando houver um enfrentamento de um clube que assinou com a rede X com outro da rede Y, a partida não pode ser transmitida por nenhuma das duas. Na regra da MP a realidade mudaria: todos seriam transmitidos ou por uma ou pela outra.

Um outro argumento a favor da constitucionalidade da medida provisória também decorre da lógica da organização dos campeonatos imposta pelas entidades de administração do desporto. A leitura do Regulamento Geral das Competições - 2020, da Confederação Brasileira de Futebol, por exemplo, permite entrever que o clube mandante se sujeita solidária e pessoalmente a uma série de obrigações relacionadas à viabilização dos eventos desportivos e à promoção da segurança das partidas, o que supõe a observância dos diversificados quesitos dispostos nos arts. 6º e 7º. Entre essas obrigações, destacamos policiamento, credenciamento, logística de toda sorte, obrigações fiscais e previdenciárias, cuidados com saúde de atletas, árbitros e torcedores entre outras inúmeras.

Considerando que o direito de arena se circunscreve à prerrogativa de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo, é certo que a atribuição de sua titularidade ao clube mandante, além de refletir contrapartida acurada aos encargos a que exclusivamente se obriga diante da mera participação competitiva, não alija o clube visitante e todos os atletas profissionais participantes de seus direitos de imagem e da remuneração decorrente da exploração econômica dos direitos desportivos audiovisuais.

Destaca-se que o art. 3º, do Regulamento mencionado, prevê expressamente que todos os Clubes participantes de competições sediadas pela CBF devem se submeter sem ressalvas ou condições ao regramento então disposto, o que consubstancia o exercício da autonomia constitucionalmente assegurada quanto à organização e funcionamento das entidades desportivas dirigentes e associações, nos termos da disposição contida no art. 217, inciso I, da CF.

3. Considerações finais

Dentre as alterações impostas pela medida provisória 984, a mais controvertida é a transferência para o clube mandante do poder decisório sobre as partidas que disputar. O que antes era repartido entre os adversários, agora é só do mandante.

A medida provisória, no que concerne a relevância e a urgência, diante do cenário das decisões do Supremo Tribunal Federal, não pode ser taxada de inconstitucional sob esse prisma. A excepcionalidade exigida pelo STF para a ingerência do poder judiciário no poder discricionário do presidente da República não se verifica.

Não vislumbramos, também, inconstitucionalidade material da MP no que toca ao direito de imagem de atletas e clubes. A nova regra, na prática, acaba beneficiando público, clubes e redes de transmissão das partidas.

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t*Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga é sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados.





t*Luciano Andrade Pinheiro é sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados.

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