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Perder para ganhar: As políticas públicas como vetor principal para o fim do racismo

O que ocorreu, foi a substituição da escravidão por um abismo de desigualdade social entre brancos e negros, cujos efeitos são igualmente perversos. Ganhou outros nomes, outras formas, eufemismos sociais que perpetuaram o racismo sob o manto de uma igualdade formal entre os cidadãos brasileiros.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Atualizado às 08:42

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Esse artigo é escrito por dois iniciantes. Hellder dá seus primeiros passos no direito, mas conhece e sente o racismo há mais de 20 anos. Silvio tem mais de 20 anos no mundo do direito, mas inicia agora sua luta contra o racismo. Sem justificar o silêncio de até então, resolvemos cessá-lo em razão de atos que não deveriam calar a ninguém. Estamos a falar de Floyd, Miguel e João Pedro. Falamos de tantos outros casos já ocorridos e de tantos outros que virão. Falamos, não só de casos, mas de uma máquina estatal, que serve a deixar tudo como está, produzindo uma contínua e estrutural eliminação da população negra.

O Brasil também é iniciante na luta contra o racismo, apesar de ser muito experiente no racismo. Fácil entender isso, pois, embora a abolição da escravatura devesse significar uma conquista social, pela qual há uma compreensão material da inexistência de diferenças entre cidadãos, o final da legalidade da escravidão ficou mais para um jogo de palavras. Tornou-se a escravidão ilícita, mas não se acabou com ela.

O que ocorreu, foi a substituição da escravidão por um abismo de desigualdade social entre brancos e negros, cujos efeitos são igualmente perversos. Ganhou outros nomes, outras formas, eufemismos sociais que perpetuaram o racismo sob o manto de uma igualdade formal entre os cidadãos brasileiros.

Com o advento da CF/88, uma esperança surgiu na luta pelo fim do racismo. Instalando a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da nação, e trazendo como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (arts. 1º e 3º), criou a expectativa de que o Brasil rumaria à adoção dos esforços necessários para uma efetiva igualdade social.

Mais de três décadas passadas, a esperança se transformou em sentimento de derrota. Mesmo depois de 132 anos de abolição, não há sinais mínimos de igualdade. E a razão para isso ocorrer está na estrutura estatal. É por isso que se denomina o racismo como estruturante, pois o sistema social imposto pelo regime jurídico vigente faz a população negra experimentar um perverso círculo maligno e vicioso.

Notem:

A população negra foi trazida ao Brasil contra a sua vontade, sendo aqui escravizada. Ao final da legalização da escravatura, não recebeu condições mínimas para ter vida digna, tampouco para ter as mesmas oportunidades dos brancos. Renegada ao último plano, deixou de receber do Estado saúde, educação, cultura, trabalho etc. Também não recebeu condições para se autoprover dessas necessidades. Foi empurrada a um estado paralelo, no qual a tentativa de acesso a essas necessidades, em sua maioria, deriva ou da violência ou da aceitação de trabalho em posições de baixo destaque e remuneração.

Pela violência, o negro sofre as consequências impostas pelo Estado. Prisão, encarceramento e mais violência (em especial a ilegítima). Aqui, o mesmo Estado que não provê, pune o resultado do seu desprover. Inserido na violência, o negro morre. Não só morre antes do branco, mas morre violentamente. Pelo trabalho, o negro não consegue renda para se aperfeiçoar, melhorar, tampouco para garantir a evolução de seus filhos. Não consegue renda para atender as suas necessidades. E por isso morre também; de sede, de fome, por não ter acesso a tratamentos de saúde. Não há como negar. Essa estrutura impõe ao negro uma existência inferior. É a face mais perversa do racismo.

O fim do racismo, portanto, passa pelo extermínio do racismo estrutural. Passa pela efetivação dos fundamentos e objetivos da República, permitindo a ascensão do negro na camada mais alta da pirâmide e a questão do racismo pelo tom da pele acaba desaparecendo. E, estar na camada mais alta da pirâmide não significa fortuna e comodidade. Significa tão somente ser provido ou ter acesso à renda para prover suas necessidades.

É dessa linha de raciocínio que surge o título desse trabalho. Perder para ganhar significa deixar de se satisfazer com a igualdade formal entre os cidadãos, para instituir a material. Significa, portanto, sacrificar direitos dos mais privilegiados (diga-se aqui, predominantemente, a população branca, para que os menos favorecidos (a população negra) possa ascender a níveis mais altos de dignidade.

Um bom exemplo disso é a lei 12.711/12 (Lei de Cotas). A Lei de Cotas impõe um sacrifício à população branca. A aplicação da Lei de Cotas impõe perdas individuais, precisamente àqueles que entrariam universidade pública, caso não existissem cotas para negros. Mas, tudo isso não só é tolerado, como também desejável. Faz parte do plano de concretização de uma sociedade igual e justa. Trata-se da aplicação do princípio da solidariedade, o qual significa exatamente essa redistribuição, não só de riquezas, mas de oportunidades.

Evidentemente que a Lei de Cotas, isoladamente, é incapaz de trazer a igualdade objetivada na CF. A própria Lei de Cotas, permanecendo isolada como instrumento de combate à desigualdade acaba sendo um problema. Em um mar de desprivilegiados, reunidos nas parcelas pobre e miserável da população brasileira, a Lei de Cotas acaba, quando isolada, tendo externalidades negativas, estimulando uma rixa entre todas essas classes minoritárias.

Mas, de toda sorte, é exemplo para um conjunto de políticas estruturantes que devem objetivar a igualdade social. A lógica de desigualar para igualar (perder para ganhar) deve ser o mais abrangente possível. Especialmente, deve ser promovida por meio de políticas públicas estruturantes, incidindo com destaque nos campos sociais (cultura, saúde, educação e trabalho). Em alguns campos, deve ser impositiva, como por exemplo, o da segurança. Noutros momentos, deve ser fomentada (benefícios fiscais para empregar negros, são um bom exemplo).

É certo que, para o fim do racismo, podemos fazer algo individualmente ou nos organizando como sociedade para esse objetivo. Isso tudo aliás, é também fundamental. Mas, precisamos do Estado, que foi criado e constituído precisamente com esse fim, para agir de forma intensa e constante na garantia por uma sociedade igual. Precisamos ser desiguais agora, construir e solidificar políticas públicas para dar privilégios à população negra. Precisamos hoje privilegiar os desprivilegiados. Tudo para um dia vivermos a igualdade e a desnecessidade desses privilégios.

Perder para ganhar.

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*Hellder Almeida Santos é acadêmico de Direito colaborador do escritório VGP Advogados.

*Silvio Guidi é sócio do VGP Advogados, doutorando e mestre pela PUC/SP.

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