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Da releitura da colaboração premiada e a impugnação por terceiros

Nos HCs 142.205/PR e 143.427/PR, o STF reconheceu, na situação específica, a possibilidade de terceiros impugnarem o acordo de colaboração premiada, de modo que o tema ganha relevo no cenário jurídico.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Atualizado às 12:02

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Em 2015, ao julgar o HC 127.483/PR, o pleno do STF se debruçou com maior profundidade sobre o instituto da colaboração premiada. Tratava-se de discussão envolvendo acordo firmado no âmbito da "operação Lava Jato" que, por envolver agentes com prerrogativa de foro, foi homologado diretamente pela Suprema Corte.

Naquela oportunidade, embora alguns dos ministros não tenha se comprometido com a tese firmada pelo ministro Dias Toffoli, relator do writ, constou da ementa do acórdão que o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico personalíssimo que não afetaria direito de terceiros, de modo que apenas os participantes do acordo (Ministério Público, autoridade policial e delator) teriam legitimidade para questionar a avença.

Ocorre que, na prática, esse entendimento gerou verdadeira blindagem1 aos acordos e estímulo a negociações sem o devido controle judicial, na medida em que as partes convencionavam a renúncia ao direito de impugnar as cláusulas do acordo pelo delator2, ou seja, o Ministério Público ou o Delegado de Polícia não teriam motivos para questionar a avença, enquanto o delator, além de desinteresse, já que será possivelmente beneficiado por prêmios, assumia obrigação de não questioná-lo.

Como afirmado, em alguns casos, essa inviabilidade de discussão pelos terceiros prejudicados ensejou oferecimento de prêmios extralegais, inclusive com a concessão de benefícios que eram proibidos pela lei (era o que ocorria com a proibição existente no art. 17, §1º, da lei 8.429/92 que proscrevia transação em relação às demandas de improbidade administrativa3).

Nesse sentido, já se havia alertado para a necessidade de repensar as premissas fixadas no julgamento do pleno do STF, porque nos casos em que se oferecia isenção de reparação do dano provocado pelos delatores, perdoando-se as penas previstas para o ato de improbidade administrativa, em realidade, estava-se a se causar lesão ao patrimônio público por meio do acordo de colaboração, o que permitiria a sua discussão por qualquer cidadão mediante ação popular.4

Nesse contexto, na "operação Publicano" o Ministério Público do Estado do Paraná firmou acordo de colaboração premiada com diversos empresários e dois funcionários públicos para apurar suposta organização criminosa no âmbito do órgão de fiscalização tributária estadual. O acordo firmado com o auditor fiscal Luiz Antonio de Souza era bastante peculiar, porque envolvia crimes contra a dignidade sexual e crimes de corrupção, além de abarcar a esfera da improbidade administrativa, mesmo diante da proibição legal vigente ao tempo da avença.

No entanto, após firmar o acordo e enquanto cumpria em regime fechado parcela da pena entabulada, o delator foi acusado de persistir na prática de crimes, inclusive com a extorsão de empresários para que não fossem delatados. Esse fato gerou pedido de rescisão do acordo pelo Ministério Público, que foi acolhido pelo magistrado singular.

Destarte, após ser submetido ao interrogatório em umas das ações penais, agora sem o amparo do acordo, o delator passou a acusar os membros do Ministério Público de adulteração de depoimentos, afirmando que muitas das declarações que prestou não foram gravadas como recomendava o art. 4º, §13 da lei 12.850/2013. Em seguida, o Ministério Público fez juntar aos autos das ações penais parcela dos áudios e vídeos, afirmando que alguns depoimentos efetivamente foram tomados sem a cautela de gravação, sob a justificativa de que a bateria do equipamento do órgão era insuficiente.

Em razão do depoimento do colaborador e da celeuma que se instalou, o magistrado suspendeu o curso da ação penal, período no qual o colaborador firmou termo aditivo ao acordo de colaboração premiada assumindo as seguintes obrigações:

Cláusula 3ª: DAS OBRIGAÇÕES DO COLABORADOR: I - O colaborador ratifica, integralmente, todas as declarações prestadas ao Ministério Público, no curso das investigações realizadas no âmbito da operação Publicano, referentes às ações penais 0023194-44.2015.8.16.014 (Publicano I), 38210-38.2015.8.16.0014 (Publicano II), 68535-93.2015.8.16.0014 (Publicano III), 799954-13.2015.8.16.0014 (Publicano IV), 37749- 32.2016.8.16.0014 (Publicano V), 63184-08.2016.8.16.0014 (Publicano VI) e 68602-24.2016.8.16.0014 (Publicano VII), comprometendo-se, inclusive, a ser reinterrogado nos autos 68535-93.2015.8.16.0014 (Publicano III) e 37749-32.2016.8.16.0014 (Publicano IV), assim como, retratar-se das assertivas realizadas (ao falsear a verdade em Juízo, em decorrência da rescisão da colaboração premiada firmada nos autos 26995-65.2015.8.16.0014), por ocasião do interrogatório datado do dia 06 de fevereiro de 2017, referente à ação penal nº 37749-32.2016.8.16.0014 - Publicano IV). Outrossim, o colaborador LUIZ ANTONIO DE SOUZA se compromete a admitir os fatos descritos nas ações penais 37749-32.2016.8.16.0014 (Publicano V) e dos fatos delituosos da Ação Penal 68602-24.2016.8.16.0014 (Publicano VII).5

O acordo em questão era bastante singular também porque a despeito dos inúmeros crimes cometidos e dos valores de origem ilícita possivelmente obtidos e mesmo após a rescisão do primeiro acordo, o colaborador foi agraciado com perdão judicial em diversas ações penais, bem como, convencionou-se a devolução de quase meio milhão de reais em espécie ao delator:

VI - O colaborador se compromete a entregar, de modo irretratável e irrevogável, a título de indenização/ressarcimento cível/confisco, abrangendo as sanções decorrentes de ato de improbidade, pelos danos que reconhece causados pelos diversos ilícitos, além dos bens mencionados no acordo de colaboração primitivo e mencionados na cláusula 3ª, item II, os seguintes bens, ressalvado o contido no art. 16, §2º da lei 8429/92

(...)

b. 50 % das quantias constantes de contas bancárias e bloqueadas das seguintes pessoas físicas/jurídicas nos autos nº 9167-56.2015.8.16.0014 (2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Londrina): DANIELA FEIJO SOUZA, MARIA NUNES CLEMENTINO, SOLANGE FEIJÓ, CAMILA NAYARA DE ZOUZA, MASTERINVEST SERVICE (CNPJ 02.947.815/0001-08) E PARANÁ CASH (CNPJ 21.128.520/0001-54), quantia esta correspondente ao montante de R$ 478.471,13 (quatrocentos e setenta e oito mil, quatrocentos e setenta e um reais e treze centavos), que será atualizado até a data da efetiva entrega, comprometendo-se o Ministério Público a requerer, junto ao respectivo Juízo, a liberação da quantia remanescente

Ao aceitar entregar 50% dos valores existentes em determinadas contas bancárias, o delator e seus familiares lograram receber idêntica quantia por força dos acordos. Outra particularidade foi o fato de que o colaborador permaneceu preso até o seu interrogatório em que retificou as acusações lançadas contra os acusadores, fixando-se até mesmo cláusula na qual o Ministério Público concordaria com a revogação da prisão após o ato processual destinado a oitiva do delator:

VI - O Ministério Público se manifestará favoravelmente a eventual pedido de revogação de sua prisão preventiva nos autos 37749-32.2016.8.16.0014 (Publicano V), com imposição de medida cautelar diversa da prisão, consistente em prisão domiciliar com utilização de monitoramento eletrônico, nas mesmas condições constantes no item IV da cláusula 4ª, que perdurará até a fixação de pena definitiva nos autos 21345-37.2015.8.16.0014 (Publicano I - item IV da cláusula 4ª), sem prejuízo da oportuna avaliação da conveniência e necessidade da manutenção da prisão cautelar até o re-interrogatório do colaborador LUIZ ANTÔNIO DE SOUZA nos autos 68535-93.2015.8.16.0014 (Publicano III) e 79954-13.2015.8.16.0014 (Publicano IV)

Por conseguinte, no âmbito dos habeas corpus 142.205/PR e 143.427/PR, julgados no dia 25/8/2020 pela 2ª turma do STF, discutiu-se que esse caso concreto merecia um tratamento diferenciado em relação às questões já debatidas pelo pleno da Corte, seja pelas ilegalidades que circundavam os prêmios concedidos, mas especialmente pela inviabilização do contraditório6 pelos delatados, uma vez que as cláusulas entabuladas faziam o colaborador assumir não o dever de dizer a verdade, mas encampar a versão acusatória, inclusive isentando os acusadores de ilícitos anteriormente imputados pelo delator.

De fato, não se pode olvidar que ao fixar a tese de que os delatados não poderiam impugnar o acordo, o STF decidiu que "nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados - no exercício do contraditório - poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor."7

Esse contraditório, no caso concreto, restou inviabilizado, porque o delator assumiu compromisso de admitir fatos em relação aos quais lançou dúvidas nos depoimentos que ele próprio havia prestado. Assim, ao assinar declaração admitindo se retratar das acusações formuladas contra os acusadores e aderir e ratificar os fatos descritos nas denúncias tornou-se impossível o exercício do contraditório, pois a única resposta possível pelo delator era no sentido de beneficiar a acusação.

Por esse motivo, a 2ª turma do STF, concedeu em parte os pedidos formulados em habeas corpus para reconhecer a nulidade do termo aditivo formulado, assim como, declarar a ilicitude das declarações prestadas, bem como das provas derivadas, conforme preceitua o art. 157. §3º, do Código de Processo Penal.

Desse modo, observa-se que a decisão proferida pela Suprema Corte além de restabelecer a necessidade de controle da legalidade dos atos em sede de colaboração premiada, respeita a natureza jurídica de meio de obtenção de prova do instituto (conforme art. 3º-A, da lei 12.850/13), mormente porque há sólida jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de que o reconhecimento de ilicitude na obtenção de interceptações telefônicas ou busca e apreensão (ambos classificadas como meios de obtenção de prova) contamina as provas obtidas, mostrando-se coerente que idêntica solução possa ser empregada quanto à colaboração premiada.

Trata-se, portanto, de discussão importante que se inicia na Corte Suprema, a fim de se permitir controle rigoroso quanto à colaboração premiada, ainda que por eventuais terceiros prejudicados, eis que diversas situações vivenciadas pelo país apontam excessos e abusos nas avenças que foram firmadas.

_________

1 No voto proferido pelo min. Gilmar Mendes no HC142.205/PR observou-se justamente que "sem dúvidas, a tese adotada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de não impugnabilidade do acordo por terceiros possuía, naquele momento, premissas pertinentes. Contudo, isso ocasionou uma quase total intangibilidade e incontrolabilidade dos acordos de delação, ao passo que aqueles que poderiam impugná-lo (colaborador e MP), normalmente almejarão interesse completamente inverso, no sentido de fazer o máximo para a sua manutenção. Por efeito colateral, tornamos os acordos de colaboração premiada praticamente intocáveis."

2 No acordo de Paulo Roberto Costa (primeiro acordo de colaboração premiado firmado na Operação Lava Jato) convencionou-se a seguinte cláusula "cláusula 15. Para que do acordo derivem benefícios, ainda, o colaborador se obriga, sem malícia ou reservas mentais, e imediatamente, a: (...)

g) não impugnar, por qualquer meio, o acordo de colaboração, em qualquer dos inquéritos policiais ou ações penais nos quais esteja envolvido, no Brasil ou no exterior, salvo por fato superveniente à homologação judicial, em função de descumprimento do acordo pelo MPF ou pelo Juízo Federal;"

Com a lei 13.964/2019 o legislador impôs a nulidade de cláusulas com conteúdo similar, conforme art. 4º, §7º-B, da lei 12.850/13, isso, contudo, não invalida a constatação de que, por possui a expectativa de benefício, o delator não terá interesse em discutir os termos do acordo.

3 Com as inovações da lei 13.964/2019 o art. 17, §1º-A da lei 8.429/92 passou a prever a possibilidade de acordo de não persecução cível, contudo, por força do art. 37, §4º da Constituição Federal entende-se que permanece inviável a negociação do patrimônio público para reduzir o valor a ser restituído em razão do dano provocado. De todo modo, atualmente há discussão no Pleno do Supremo Tribunal Federal sobre a viabilidade de extensão do acordo para o âmbito da improbidade administrativa com repercussão geral reconhecida no tema 1043.

4 SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio. A legitimidade do terceiro delatado para discutir o acordo de colaboração premiada em face da concessão de benefícios extrapenais. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 27, nº 316, mar/2019, p. 22-23.

5 Disponível aqui. Acesso em 26 de agosto de 2020.

6 Nesse sentido, também havíamos observado que essa hipótese deveria ensejar a discussão do acordo pelo delatado BITTAR, Walter Barbosa; BORRI, Luiz Antonio; SOARES, Rafael Junior. A questão da natureza jurídica e a possibilidade legal de impugnação do acordo de colaboração premiada pelo delatado. Boletim IBCCRIM. Ano 27, nº 332, set/19, p. 19-21.

7 HC 127483, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021  DIVULG 03-02-2016  PUBLIC 04-02-2016.

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t*Luiz Antonio Borri é advogado e professor de Direito Penal da Unicesumar.





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*Rafael Junior Soares é advogado e professor de Direito Penal da PUC/PR.

 

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