MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Créditos extraordinários e perda de eficácia de medidas provisórias

Créditos extraordinários e perda de eficácia de medidas provisórias

Qual a situação jurídica do crédito extraordinário ainda não executado quando a medida provisória que o previa não é convertida em lei?

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Atualizado às 17:14

t

A lei orçamentária anual (LOA), uma vez aprovada, experimenta diversas alterações ao longo do exercício financeiro para atender a naturais evoluções nas demandas financeiras do Estado. Um grande exemplo é a necessidade de abertura dos chamados créditos adicionais extraordinários.

De acordo com o art. 167, § 3º, da CF/88, os créditos extraordinários destinam-se ao atendimento de despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública. É o que vem ocorrendo, por sinal, no contexto da calamidade pública provocada pela pandemia de covid-19. Até agosto de 2020, já haviam sido abertos créditos extraordinários superiores a R$ 500 bilhões no orçamento da União deste ano.

No âmbito da União, o instrumento utilizado para a abertura de crédito extraordinário é a medida provisória (MPV)1, editada privativamente pelo Presidente da República e submetida de imediato à apreciação do Congresso Nacional. À vista disso, importa saber o que ocorre com esse tipo de crédito adicional quando as MPVs não são convertidas em lei ou quando elas são rejeitadas pelo Poder Legislativo.

Para desenvolver essa análise, cabe recuperar, em primeiro lugar, a disciplina definida pela própria Constituição sobre a perda de eficácia das MPVs, sejam elas de natureza orçamentária ou não. Inicialmente, o art. 62, § 3º, da Lei Maior, estabelece que: (i) se não forem convertidas em lei no prazo de 60 dias, contados desde sua edição, prorrogável uma vez por igual período, as MPVs perdem sua eficácia2; e (ii) cabe ao Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas decorrentes das MPVs que tiverem sua eficácia encerrada.

À primeira vista, portanto, não haveria muito o que ser discutido, já que, após a perda de eficácia de MPVs, a decisão sobre as consequências dos atos praticados durante a vigência dos créditos extraordinários é de competência do Congresso Nacional, por previsão expressa da Constituição.

Ocorre que há a possibilidade de não atuação do Congresso na edição do citado decreto legislativo. Neste caso, o art. 62, § 11, da Constituição, prevê que, se não for editada tal norma em até 60 dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

Observa-se que, na realidade, a ausência de produção de decreto legislativo dessa natureza tem sido a regra quase absoluta3. A raridade desses atos legislativos disciplinando as relações jurídicas constituídas durante a vigência de MPVs de créditos extraordinários que perdem sua eficácia, somada à lacuna de posicionamento doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, mostra a necessidade de avaliar qual seria a situação jurídica do crédito orçamentário que perde o fundamento legal que o embasava, principalmente quando ele ainda não tenha sido executado.

Busca-se, assim, neste artigo, compreender como as referidas "relações jurídicas constituídas" podem se manifestar ao longo dos estágios básicos da despesa pública, quais sejam: autorização, empenho, liquidação e pagamento. Para prosseguir com esse exame, convém rememorar os conceitos associados a cada um dos referidos estágios, que necessariamente se desdobram na sequência ora apresentada.

A autorização é a condição básica para a realização de despesas públicas. Conforme previsto no art. 167, incisos I e II, da CF/88, são vedados: o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; e a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.

A propósito, no âmbito das contratações públicas, essa exigência é notadamente reforçada pelos arts. 7º, § 2º, III, e 14 da lei 8.666/93, in verbis:

Art. 7º ..................................
§ 2º As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando:
.......................
III - houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo cronograma; 
Art. 14. Nenhuma compra será feita sem a adequada caracterização de seu objeto e indicação dos recursos orçamentários para seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade de quem lhe tiver dado causa (BRASIL, 1993, grifo nosso).

O empenho, por seu turno, é conceituado pelo art. 58 da lei 4.320/64, como "o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição". É o que ocorre, por ilustração, após a realização de processo licitatório, quando a administração emite uma "nota de empenho" em favor do vencedor do certame, a fim de contratá-lo. O conteúdo do referido documento é disciplinado pelo art. 61 da mesma Lei:

Art. 61. Para cada empenho será extraído um documento denominado "nota de empenho" que indicará o nome do credor, a representação e a importância da despesa bem como a dedução desta do saldo da dotação própria (BRASIL, 1964, grifo nosso).

Como se vê, o empenho "consome" dotação orçamentária, reduzindo o saldo disponível para novos empenhos no âmbito de determinado crédito orçamentário. Trata-se, portanto, de uma espécie de salvaguarda, para o potencial credor, de que a Administração já comprometeu o orçamento público para honrar o compromisso financeiro que surgirá quando ele implementar a condição pactuada. Antes da realização do empenho, temos que a despesa é apenas "autorizada"; realizado este, a despesa é dita então "empenhada".

É somente no estágio da liquidação, entretanto, que o credor passa a ter direito líquido e certo ao recebimento de recursos púbicos. É no ato da liquidação, afinal, que se comprova ter havido a entrega de bens ou a prestação de serviços à Administração, consoante disposto no art. 63 da lei 4.320/64:

Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.
§ 1º Essa verificação tem por fim apurar:

I - a origem e o objeto do que se deve pagar;
II - a importância exata a pagar;
III - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.
§ 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base:
I - o contrato, ajuste ou acordo respectivo;
II - a nota de empenho;
III - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço (BRASIL, 1964).

Uma despesa empenhada pode já ter sido liquidada ou não. Se já foi, é chamada de despesa "empenhada e liquidada", ou simplesmente "liquidada"; caso contrário, a despesa será" "empenhada e não liquidada". A lei 4.320/1964 utiliza também os termos "processadas" e "não processadas" para as despesas liquidadas e não liquidadas, respectivamente (arts. 36, caput, e 92, parágrafo único).

Por fim, o pagamento da despesa, efetuado após sua regular liquidação (ou processamento), nada mais é que a quitação financeira da obrigação assumida pela Administração a quem de direito.

Conclui-se que despesas liquidadas, por estarem associadas a fatos jurídicos já consumados, não comportam controvérsias em face da perda de eficácia de MPVs de créditos extraordinários. Significa dizer que, se não for editado decreto legislativo que discipline as relações jurídicas decorrentes das MPs que tiverem sua eficácia suspensa, as despesas liquidadas durante a sua vigência se mantêm integralmente respaldadas do ponto de vista orçamentário.

Neste caso, o empenho liquidado passa a se revestir da força do ato jurídico perfeito, inatacável por mudança legislativa posterior (art. 5º, XXXVI, CF/88). Em função disso, caso ainda não tenham atingido o estágio do pagamento, as referidas despesas tanto podem ser pagas no exercício financeiro ao qual a LOA se refere, como podem ser pagas em exercícios futuros, mediante inscrição em restos a pagar já processados (art. 36, caput, da lei 4.320/64).

Esclarecida essa situação mais evidente, o espaço para dúvidas acaba por se restringir aos estágios da autorização e do empenho. A começar pelo primeiro caso, suponha-se, inicialmente, que determinada dotação autorizada nem sequer tenha sido objeto de empenhos. Nesse caso, na ausência de disposição em contrário em decreto legislativo, a perda de eficácia de MPV implica a extinção integral do crédito extraordinário aberto.

Desse ponto em diante, portanto, não há que se falar na possibilidade de empenhos futuros, assim como não cabe cogitar a possibilidade de remanejamento de dotação do crédito extraordinário em favor de outras programações. O motivo, como visto, é simples: o crédito simplesmente deixou de existir ou, de outro modo, desapareceu a autorização legislativa para a realização do empenho.

Essa interpretação, por sinal, é consoante com posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da perda de eficácia de MPVs, conquanto ainda não haja, conforme já antecipado, entendimento jurisprudencial específico em relação a créditos extraordinários. Para esclarecer melhor esse ponto, convém trazer à baila o seguinte excerto da ementa de decisão proferida no âmbito da ADPF 216/DF:

O § 11 do art. 62 da Constituição visa garantir segurança jurídica àqueles que praticaram atos embasados na medida provisória rejeitada ou não apreciada, mas isso não pode se dar ao extremo de se permitir a sobreposição da vontade do Chefe do Poder Executivo sob a do Poder Legislativo, em situações, por exemplo, em que a preservação dos efeitos da medida provisória equivalha à manutenção de sua vigência. Interpretação diversa ofenderia a cláusula pétrea constante do art. 2º da Constituição, que preconiza a separação entre os Poderes. Quanto aos pedidos de licença para exploração de CLIA não examinados na vigência da Medida Provisória n. 320/2006, não havia relação jurídica constituída que tornasse possível a invocação do § 11 do art. 62 da Constituição para justificar a aplicação da medida provisória rejeitada após o término de sua vigência. Interpretação contrária postergaria indevidamente a eficácia de medida provisória já rejeitada pelo Congresso Nacional, ofendendo não apenas o § 11 do art. 62 da Constituição, mas também o princípio da separação dos Poderes (BRASIL, 2020).

Depreende-se dessa decisão que a perpetuação de um crédito extraordinário, após a perda de eficácia de MPV, representaria consequência atentatória à separação dos Poderes. O mesmo raciocínio, evidentemente, se aplica a saldos remanescentes de dotação orçamentária. Se, por exemplo, de uma dotação de R$ 1.000.000, apenas R$ 500.000 houverem sido empenhados, então a parcela não empenhada da dotação deixará de existir com a perda de eficácia da MPV. Utilizando a expressão da Suprema Corte no julgado acima, sem o empenho, não se chegará a constituir relação jurídica a ser preservada pelo texto então vigente da MPV.

A análise cresce em complexidade, todavia, em relação aos valores que foram empenhados, mas não liquidados (não processados). Nessa situação, diante da perda de eficácia das MPVs, os valores empenhados deveriam ser anulados ou poderiam seguir seu curso normal de execução orçamentária e financeira? Na ausência de decretos legislativos que decidam sobre casos concretos, e na falta de orientação doutrinária e jurisprudencial, resta conceber uma interpretação norteadora da situação em comento.

Para tanto, recorre-se aos princípios da razoabilidade e da segurança jurídica como vetores básicos da interpretação proposta. Afinal, após terem sido mobilizados esforços da Administração e da sociedade até que houvesse o empenho da despesa, e na falta de pronunciamento do Congresso Nacional, a solução mais razoável, e de menor gravidade, seria atribuir plena validade às despesas empenhadas durante a vigência das MPVs, ainda que não tenham sido liquidadas nesse interregno.

Com isso, permite-se que tais despesas sigam seu curso normal de execução orçamentária e financeira, podendo ser liquidadas e pagas mesmo após a perda de eficácia da MPV que lhe deu origem. Mais que isso, tais despesas podem até mesmo ser inscritas em restos a pagar não processados, sendo liquidadas e pagas também em exercícios futuros, assim como ocorre com quaisquer outras despesas, respeitados os prazos prescricionais aplicáveis.

Note-se que, neste caso, a própria Lei Geral de Finanças Públicas (lei 4.320/64) reconhece a existência da relação jurídica a ser preservada, ao prever a figura dos restos a pagar não processados (art. 36, caput, art. 92, parágrafo único), o que confere a esse empenho também o vigor do ato jurídico perfeito.

É verdade que, caso a liquidação não ocorra (ex.: o fornecedor não entregue à Administração os bens contratados), a despesa pode ser anulada (art. 38, lei 4.320/64). Porém, a não liquidação do valor neste caso pode ser considerada uma condição resolutiva4 para a existência da despesa e da relação jurídica estabelecida, não sendo tal relação considerada inexistente se tal condição não se implementar. Nos termos do art. 127 do CC, enquanto uma condição resolutiva não se realiza, vigora o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.

Tal interpretação, ademais, busca prestigiar, como dito, os princípios da razoabilidade e da segurança jurídica, diante da eventual falta de pronunciamento do Poder Legislativo em face da perda de eficácia da MPV. Não se deve perder de vista, por outro lado, que um resultado mais restritivo pode ser alcançado em cada caso concreto, mediante a edição de decreto legislativo, nos termos do art. 62, § 3º, da Constituição.

Segundo tal dispositivo, relembre-se, o Congresso Nacional tem poder para disciplinar por decreto legislativo as relações jurídicas decorrentes de medidas provisórias que percam sua eficácia. Por ser retroativa (ex tunc) ("desde a edição"), essa perda de eficácia poderia implicar, no limite, a desconstituição das relações constituídas durante o período de vigência da MPV. A perda de eficácia, contudo, se torna irretroativa (ex nunc) quando não editado o decreto legislativo, nos termos do art. 62, § 11, da Lei Magna ("conservar-se-ão por ela regidas").

Em resumo, pode-se concluir o seguinte, quanto à validade dos créditos adicionais extraordinários previstos em medidas provisórias que encerrem seu prazo de vigência, não sendo convertidas em lei ordinária:

a)       Caso a despesa seja apenas autorizada (não empenhada), ela não poderá mais ser objeto de empenho, por ter desaparecido seu fundamento legal;
b)      Se a despesa já tiver sido empenhada, mas ainda não estiver liquidada, pode a relação jurídica ser considerada constituída, sob condição resolutiva da não liquidação, autorizando-se seu processamento e posterior pagamento, salvo se eventual decreto legislativo dispuser em sentido diverso;
c)       Estando a despesa empenhada e liquidada, haverá ato jurídico perfeito, protegido contra qualquer alteração legislativa posterior, devendo o pagamento ser efetuado regularmente; e
d)      Por fim, tratando-se despesa já paga, teremos ato exaurido não afetado pela perda de vigência da medida provisória.

___________

BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Brasília, DF: Presidência da República, 1964.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1993.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 216/DF. Relatora: Ministra Cármem Lúcia. Julgamento: 14/03/2018. Publicação: 23/03/2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur421005/false. Acesso em 1º set. 2020.

___________

1- De fevereiro a agosto de 2020, por exemplo, haviam sido editadas 32 MPVs para a abertura de créditos extraordinários destinados ao combate à pandemia de covid-19.

2- Conforme previsto no art. 62, § 12, da Constituição, a medida provisória também se mantém em vigor quando for aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, até que o projeto seja sancionado ou vetado.  

3- Desde a promulgação da Constituição de 1988, foi aprovado apenas um decreto legislativo concernente a medida provisória de créditos extraordinários. Trata-se do Decreto Legislativo nº 14/2004-CN, relativo à MPV nº 196, de 2 de julho de 2004, que havia aberto crédito extraordinário de R$ 86.080.000, em favor dos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Meio Ambiente. Registra-se, aqui, o agradecimento ao Centro de Documentação e Informação (CEDI) da Câmara dos Deputados pelo levantamento realizado.

4- Condição resolutiva é o evento futuro e incerto que extingue o direito, ou o negócio jurídico, caso tal evento ocorra, cessando para o sujeito a aquisição do direito anteriormente estabelecido. Ex: extinção da pensão da filha solteira de militar falecido, caso ela venha a se casar.

___________

*Luciano Henrique da Silva Oliveira é advogado nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Regulatório, Civil, Urbanístico e Empresarial.

*Paulo Roberto Simão Bijos é Consultor de Orçamentos da Câmara dos Deputados e Mestre em Poder Legislativo.

t

 

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca