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Ação penal nos crimes de estelionato: É possível a exigência de representação nos inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento após a publicação da Lei Anticrime?

Neste artigo será analisado se a representação do ofendido pode ser exigida em inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da lei.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Atualizado às 15:16

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A lei 13.964/19, conhecida como "Lei Anticrime", publicada em 24/12/19, trouxe importantes alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal, na Lei de Execução Penal e em diversas leis penais esparsas, estabelecendo um novo paradigma no Direito Processual Penal Brasileiro.

Dentre as inovações promovidas, merece destaque a inclusão do § 5º no artigo 171 do Código Penal, que passa a exigir representação do ofendido para o processamento da ação penal no crime de estelionato, requisito inexistente até então.

Neste artigo será abordada a possibilidade (ou não) de aplicação retroativa do artigo 171, § 5º, do Código Penal, ou seja, se a representação do ofendido pode ser exigida em inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da lei 13.964/19, que entrou em vigor a partir de 23/1/20.

O artigo 171, § 5º, do Código Penal, embora tenha sido incluído na parte geral do Código, que contém normas materiais e gerais, terá efeitos e repercussão também no Processo Penal, uma vez ter como principal efeito a alteração da natureza da ação penal nos crimes de estelionato, exceto nos casos em que a vítima for: (I) a Administração Pública, direta ou indireta; (II) criança ou adolescente; (III) pessoa com deficiência mental; (IV) maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz. Veja-se o dispositivo:

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

(...)

§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for:

I - A Administração Pública, direta ou indireta;

II - Criança ou adolescente;

III - Pessoa com deficiência mental; ou

IV - Maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

A nosso ver, a resposta ao questionamento que move o artigo passa pela análise da natureza da referida norma, ou seja, se a norma possui natureza material (penal), processual ou mista (processual-penal). Uma vez estabelecida sua natureza, é possível definir a partir de que momento a norma pode e deve ser aplicada.

Como se sabe, há três tipos de normas em nosso sistema jurídico penal: (I) aquelas de conteúdo exclusivamente penal, ou seja, uma norma prevista no Código Penal, que define um tipo penal (ex: art. 121 do CP); (II) aquelas de conteúdo exclusivamente processual, ou seja, que possuem normas relacionadas apenas com o processo, como por exemplo, uma norma que prevê o prazo processual para interposição de um recurso (ex: art. 593, "caput", do CPP), e por fim; (III) as chamadas normas mistas, ou normas processuais penais materiais, que são aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, têm forte conteúdo de direito penal, como normas relativas a perempção, perdão, renúncia, decadência, etc.

No caso das normas penais, as regras do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, e do artigo 9º, do Pacto de São José da Costa Rica, são claras: se o novo conteúdo beneficiar o réu/acusado, deve retroagir a partir de sua publicação (ex: norma que cria nova situação de extinção de punibilidade ou que traz uma nova causa de diminuição da pena deverá retroagir).

Para as normas processuais, aplica-se o disposto no art. 2º do Código de Processo Penal1, ou seja, aplica-se a lei processual penal tão logo entre em vigor, respeitando-se a vacatio legis da norma, quando houver. É dizer: a lei processual penal passa a valer imediatamente, aplicando-se a processos já em andamento, respeitando-se os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior.

Por fim, temos as normas processuais penais materiais. Neste caso, aplica-se a seguinte regra: se a norma contiver conteúdo de direito penal benéfico, deverá retroagir. Do contrário, a norma deverá ser aplicada a partir da data de sua publicação.

No caso do artigo 171, §5º, do Código Penal não há dúvidas acerca da natureza mista da norma. Isto porque, embora discipline requisito procedimental cuja aplicação se dá no âmbito do processo penal, traz, ao mesmo tempo, importante consequência de direito penal material, qual seja, a extinção da punibilidade. Fica claro que este novo dispositivo que altera a natureza da ação penal nos crimes de estelionato é mais favorável ao acusado, já que ao prever que o crime de estelionato somente se procede mediante representação do ofendido cria-se uma nova causa extintiva de punibilidade que poderá beneficiar o investigado/acusado se o ofendido não a exercer dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses previsto no artigo 103 do Código Penal2 e no artigo 38 do Código de Processo Penal3

Trata-se, portanto, de norma mais benéfica e que deve, portanto, retroagir aos fatos ocorridos antes de 23/1/20, data em que entrou em vigor a lei 13.964/19, conforme dispõe a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XL4.

Parece não existir dúvidas acerca da necessidade de aplicação retroativa do artigo 171, § 5º do Código Penal para atingir os inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da lei 13.964, em 24/12/19. A questão é: até quando poderá retroagir?

Surgem, basicamente, duas situações distintas: (I) crimes de estelionato cometidos antes da entrada em vigor da lei 13.964/19, cujas denúncias ainda não tenham sido oferecidas por ocasião da vigência da nova norma em 23/1/20; e (II) crimes de estelionato cometidos antes da entrada em vigor da lei 13.964/19, cujas denúncias já estivessem em andamento por ocasião da entrada em vigor da nova norma em 23/1/20 ou que já existisse investigação policial em andamento.

Com relação à primeira situação, o artigo 171, § 5º do Código Penal deve retroagir, pelas razões que já foram expostas, no sentido de que referido dispositivo possui natureza de norma processual mista, devendo retroagir para beneficiar o agente, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, uma vez disciplinar uma situação mais benéfica ao investigado/acusado do que uma possível e eventual condenação criminal.

Com relação à segunda situação, em que já existe denúncia oferecida ou que há investigação em andamento, há quem entenda que a denúncia oferecida é ato jurídico perfeito e que, portanto, não pode ser afetado pela mudança legislativa5. Com tal posição, contudo, não concordamos. No silêncio da lei no sentido de dispor acerca de qual deve ser o tratamento adotado para os casos que já estavam em andamento, entendemos que deve ser aplicada ao caso concreto a necessidade de intimação do ofendido para que, querendo, ofereça a representação.

Esta é também a posição defendida pelo Conselho Nacional dos Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e União e pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal que editou o Enunciado 4 para dispor que nas investigações e processos em curso, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência, conforme entendimento sedimentado no enunciado 4.6

Este é o entendimento que defendemos. Para os casos em que já houve denúncia oferecida e recebida e, portanto, já existe ação penal em andamento ou ainda para os casos em que já havia investigação policial em andamento quando da publicação da lei 13.964/19, deve ser aplicado de forma retroativa o artigo 171, § 5º do Código Penal, devendo a autoridade competente (autoridade judiciária no caso de ação penal em andamento ou autoridade policial no caso de investigação em andamento) proceder com a intimação do ofendido ou de seu representante legal para o oferecimento de representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.

Em que pese todos os fundamentos jurídicos aqui demonstrados, a questão é muito recente. Será necessário acompanhar o posicionamento que passará a ser adotado pelos Tribunais Superiores acerca do tratamento desta matéria. A título de ilustração, segue abaixo recente decisão, proferida em 12.8.20, pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, defendendo a aplicação retroativa da norma, conforme segue:

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N.13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA.

1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva.

2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa.

3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.

4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia.

5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.

6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art. 91 da Lei n. 9.099/1995.

(HC 583.837/SC, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª turma, julgado em 4/8/20, DJe 12/8/20) (grifamos)

Defendemos, portanto, que a nova redação do artigo 171, § 5º do Código Penal deve retroagir e ser aplicada aos inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da lei 13.964/19, para o fim de que o ofendido ou seu representante legal sejam intimados para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência, por se tratar de norma mais benéfica ao investigado/acusado e que deve, portanto, retroagir aos fatos ocorridos antes de 23/1/20, data em que entrou em vigor a lei 13.964/19, conforme dispõe a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XL.

Reiteramos, por fim, que se trata de uma questão recente, que ainda não consta com um posicionamento consolidado na doutrina e na jurisprudência, de modo que será necessário acompanhar como a questão será tratada pelos Tribunais Superiores.

_________

1 Art. 2o A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

2 Art. 103 - Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia.

3 Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

4 Art. 5º (...) XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

5 Neste sentido: HC 573.093/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª turma, julgado em 9/6/20, DJe 18/6/20

6 Clique aqui (acesso em 27/8/20)

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t*André Ferreira é advogado criminal do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista pela mesma instituição e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.




t*Stephanie Carolyn Perez
é advogada criminal, doutoranda em Direito Penal. Mestre e bacharel em Direito pela PUC/SP. Professora das disciplinas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Execução Penal nos cursos de graduação e pós graduação.

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