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Como assim "depende do juiz"?

A discussão acerca da discricionariedade judicial no Brasil é de longa data e dada a relevância do tema, objetiva-se situar o leitor no assunto, proporcionando-o base e fomento para futuras pesquisas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Atualizado às 09:37

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No meio jurídico, inclusive durante a graduação, muito se fala em "discricionariedade do magistrado" ou, até, "nesse caso, dependerá (da consciência) do juiz, deferir (ou não) o pedido", levando à crença de que existem caminhos cinzentos na lei que o magistrado poderá percorrer, sendo a discricionariedade inerente à função de julgar. Justamente por esse tipo de discurso ser tão comum, observa-se a normalização da situação, sem levantamento de maiores questionamentos. Porém, essa é uma discussão de suma importância, tanto para a formação de profissionais críticos, quanto (e consequentemente) para o Direito brasileiro.

Inicialmente, imprescindível que se faça concisa conceitualização da discricionariedade judicial. Baseando-se no jurista Lenio Streck (2018), que há tempos colabora com ensinamentos acerca do tema, a discricionariedade pode ser vista como "escolha", e não "decisão". Isso se dá porque uma decisão deve(ria) ser fundamentada, de acordo com o art. 93, IX, da Carta Maior e tal fundamentação deve seguir certos requisitos, sendo pautada por critérios (nesse sentido, o referido professor trabalha, em seu Livro "Verdade e Consenso", 2017b, com a Crítica Hermenêutica do Direito e a chamada "Teoria da Decisão", com base em Dworkin e Gadamer). Mister frisar, então, que não pode-se presumir que qualquer fundamentação está apta a cumprir seu papel constitucional, já que uma decisão "fundamentada" que atribua sentido arbitrário ao texto não pode ser considerada uma decisão constitucionalmente fundamentada.

Isto é, na discricionariedade, o que encontra-se é o juízo moral/consciência do magistrado descartando o Direito e interferindo em sua decisão, tornando-a, assim, uma escolha. Em suma, podemos entender a discricionariedade através de um didático exemplo apresentado pelo professor Streck (2020): o juiz discricionário é como o arqueiro que atira a flecha e, apenas depois, pinta o alvo. Assim, o tal juiz discricionário, em seu imaginário (e, muitas vezes, no imaginário popular), nunca erra. O centro do alvo sempre será onde ele desejar. Em outras palavras, o magistrado atribui arbitrariamente sentido ao texto jurídico e confirma esse sentido por meio de sua consciência, o que cria uma eterna validação de sua "fundamentação".

A partir de breve conceitualização da discricionariedade, prontamente percebe-se ser incompatível a normalização de que "cada juiz pode decidir como quiser, de acordo com a forma que analisar" com a preocupação e defesa da segurança jurídica. Isto porque a discricionariedade judicial, na medida em que permite que os valores morais e políticos do juiz reflitam na prestação jurisdicional (que é um ato de Estado e não deveria ser subjetivo), estremece, por óbvio, o direito fundamental da segurança jurídica.

Ainda, a frase "depende do juiz" mostra-se (ou pelo menos deveria) equivocada ao ignorar que existem, sim, respostas corretas no Direito e que sua integridade, coerência e historicidade deve(ria)m ser a pauta da atuação do togado, concretizando direitos fundamentais, não atribuindo arbitrariamente sentido ao texto para decidir conforme sua consciência. No momento em que o indivíduo socorre-se ao judiciário, busca e tem direito a uma prestação jurisdicional constitucional, procurando saber o que o Direito dispõe sobre sua situação, e não a opinião pessoal (consciência) do julgador.

Nesta perspectiva, Beccaria (2014, p. 21) já havia firmado seu entendimento ao alegar, no clássico "Dos delitos e das penas", que "o juiz interpreta apressadamente as leis, segundo as ideias vagas e obscuras que estivessem, no momento, em seu espírito". Somado a essa lição, observa-se o exposto por Oliveira (2012, p. 04), quando escreve que "admitir essa subjetividade é imprescindível para delimitá-la".

O que pretende-se alertar, de forma básica, nesse artigo, é o fato de que o juiz ter (ou não ter) a moral de um jeito "X" não deve(ria) ser uma preocupação da sociedade. O juiz, quando da aplicação do direito, não deve valer-se de sua moral - o que é, em verdade, dizer que não deve existir insegurança jurídica na decisão. Isto é: o corpo social não pode ficar a mercê das subjetividades de outro indivíduo; do que ele entende ser (ou não) correto. Levanta-se a reflexão: o que é "certo"?

É entendível que determinadas circunstâncias, para algumas pessoas, são "claras" e "corretas". Contudo, o que é correto para você pode não o ser para o outro - e o que ocorre quando é este quem decide o que acontece com você em certa situação? Isso não seria problema se houvesse aplicação de critérios certos (novamente menciona-se a Teoria da Decisão, ensinada por Streck). Assim, Fulano não é prejudicado pela moral de Beltrano e tem sua resposta harmônica com a Constituição.

Desta forma, a discricionariedade judicial e o discurso, foco do título do presente artigo, que a valida e perpetua na comunidade jurídica, mostram-se traiçoeiros para o Direito e democracia brasileiros, vez que no momento em que o magistrado diz o que quer que seja o direito, ele deturpa o texto jurídico, que foi democraticamente formulado (por ser, em regra, elaborado pelo Poder Legislativo e sancionado pelo Poder Executivo, Poderes que possuem membros eleitos). Ainda neste enfoque, Streck (2017a, p. 104) leciona que "discutir as condições de possibilidade da decisão jurídica é, antes de tudo, uma questão de democracia [...] o "drama" da discricionariedade que crítico reside no fato de que esta transforma juízes em legisladores".

Adverte-se que criticar a discricionariedade judicial não implica em ode a remonte dos moldes positivistas (positivismo exegético/escola da exegese), em que se observava a figura do juiz "bouche de la loi" (boca da lei), mas, sim, pretende-se uma prestação jurisdicional concretizadora de direitos fundamentais e que respeite a historicidade do direito. Nesse sentido, Streck dispõe que:

Obedecer "à risca o texto da lei" democraticamente construído [...] não tem nada a ver com a "exegese" à moda antiga (positivismo primitivo). No primeiro caso, a moral ficava de fora; agora, no Estado Democrático de Direito, ela é co- originária. Portanto - e aqui me permito invocar a "literalidade" do art. 212 do CPP -, estamos falando, hoje, de uma outra legalidade, uma legalidade constituída a partir dos princípios que são o marco da história institucional do direito; uma legalidade, enfim, que se forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido pelo texto constitucional [...] Repito: "cumprir a letra [sic] da lei" significa sim, nos marcos de um regime democrático como o nosso, um avanço considerável (2010, p. 170)

Esta é uma discussão extensa, que não tem seu fim decretado após alguns parágrafos. Assim, o presente texto presta-se a situar os leitores no tema, dando-os apoio inicial para que possuam bases para posterior maior aprofundamento na questão e, consequentemente, conte-se com cada vez mais profissionais atentos a exigências de um Estado Democrático de Direito, desmistificando situações que atentam contra a Constituição.

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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. 10ª reimpressão. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de set de 2020.

OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Razão e Emoção no Ato de Julgar: As Contaminações do Julgador e seus Pré- Julgamentos na Fase de Investigação Preliminar. Ciências Criminais, PUC/RS. 2012. Disponível em clique aqui. Acesso em 12 de set de 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Aplicar A "Letra da Lei" É Uma Atitude Positivista?. Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 15 - n. 1 - p. 158-173. Jan-abr, 2010. Disponível em clique aqui. Acesso em 12 de set de 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito - tema: Robôs (25min50seg). Publicado em 09 de setembro de 2020. Disponível em: clique aqui.  Acesso em 09 de set de 2020.

STRECK, Lenio Luiz. E o que seria a discricionariedade transparente do ministro Roberto Barroso?. Publicado em 26 de fevereiro de 2018. 

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - decido conforme minha consciência? - 6. ed. rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017a.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6 ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017b.

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t*Marco Antonio Retamar Arbiza é advogado, pós-graduando lato sensu em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS).






t*Maria Elizabeth Marinho de Souza é advogada, pós-graduanda lato sensu em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS).

 

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