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O tema 210 de repercussão geral e o transporte de cargas: jurisprudência e antidireito

O transportador impõe um valor maior - muito maior, aliás - para fazer aquilo que ele já deveria em nome do Direito e da ordem moral: prezar pela integridade da carga que transporta e, não o fazendo, reparar integralmente o prejuízo que causar.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Atualizado às 10:04

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde que o Supremo Tribunal Federal a prolatou, a decisão de repercussão geral no RE 636.331/RJ (tema 210) tem protagonizado controvérsias das mais acirradas.

Não mais se discute que, em litígios envolvendo passageiro e transportador aéreo, contrato internacional de transporte de pessoas e extravio de bagagem, aplica-se a Convenção de Montreal, em vez do Código de Defesa do Consumidor. Nem que, nesse mesmo tipo de litígio, pode-se observar, à luz dos critérios previstos na norma, a limitação tarifada em favor do transportador aéreo.

Mesmo os que repudiam a figura da limitação de responsabilidade, como eu, entendem que haja uma razão ôntica para específica e extraordinariamente reconhecê-la naquele tipo particular de caso.

O que se discute é se a decisão repercute no transporte aéreo internacional de cargas, sobretudo quando o interessado não for o proprietário delas, mas o segurador sub-rogado.

Dentre outras razões porque, ao contrário da bagagem, a carga tem valor conhecido, predeterminado; independe de declaração específica com pagamento de quantia muito maior de frete. Tenho por certo que esse pagamento suplementar, a que chamam frete ad valorem, é nada mais do que uma chantagem comercial, abuso do poder econômico, argumento metajurídico - que, no entanto, tem lá a sua força.

Além da afronta aos incisos V e X do art. 5º da CF, ao princípio da indenizabilidade irrestrita, a exigência do frete ad valorem para estes fins é inconstitucional, por duas razões:

Em primeiro lugar porque, segundo o art. 170 da Constituição Federal, "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios."

A exigência de um frete superior ao previsto afronta os ditames da justiça social, pois gera um desequilíbrio na relação entre as empresas que, no final das contas, acaba inevitavelmente repassado ao contratante do transporte e do seguro, gerando-lhe mais custos a troco de nada, retirando-lhe mais dinheiro sem fundamento sólido, tudo isso apenas para o transportador fazer aquilo que ele já deveria fazer naturalmente, que é cumprir perfeitamente sua obrigação. Envidaria esforços apenas para fazê-lo com apuro apenas quando lhe pagassem mais, descuidando das que pagassem menos. E isso é um perfeito absurdo.

Em segundo lugar, porque, conforme o art. 173, V, §4º da CF/88: § 4º, a lei "reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros."

Ora, o frete ad valorem, junto com a limitação de responsabilidade mesma, representaria aumento arbitrário dos lucros, já que o descompasso entre o ressarcimento, buscado pela seguradora sub-rogada, e os prejuízos, pelo descumprimento do contrato de transporte, seriam excessivamente grandes, e o transportador aéreo lucraria com o enfraquecimento do direito de regresso daquela que representa todo o colégio de segurados. Causaria quase sempre prejuízos maiores do que os que lhe seria exigido reparar.

O transportador impõe um valor maior - muito maior, aliás - para fazer aquilo que ele já deveria em nome do Direito e da ordem moral: prezar pela integridade da carga que transporta e, não o fazendo, reparar integralmente o prejuízo que causar.

De todo modo, o fato é que a decisão de repercussão geral não se aplica automaticamente a todos os litígios. E é interessante trazer o voto da ministra Rosa Weber, na decisão paradigmática, que restringe expressamente o entendimento do tema 210 a situações iguais:

"Volto a registrar, por pertinente, que a fixação da tese de repercussão geral acima está intimamente conectada ao exame de caso paradigmático concernente à responsabilidade do transportador aéreo internacional por danos materiais decorrentes da perda, destruição, avaria ou atraso de bagagem." (RE 636.331/RJ, fl. 83)

Nesse sentido, e desde que o precedente começou a ressoar no universo jurídico, fui expondo alguns argumentos, a seguir resumidos:

1) O Tema 210 não se aplica ao transporte de carga, muito menos ao segurador sub-rogado;

2) O espírito da Convenção de Montreal autoriza dizer que, em caso de conduta temerária, falha inescusável, do transportador, a norma da limitação de responsabilidade fica afastada;

3) A limitação de responsabilidade choca-se com o princípio-regra do art. 944 do Código Civil e com a garantia constitucional da indenizabilidade irrestrita, nos termos do art. 5º, V e X, da Constituição Federal;

4) A norma da limitação de responsabilidade, baseada em peso de mercadoria, é anacrônica e até moralmente desordenada. Anacrônica porque inspirada em norma praticamente igual, da antiga Convenção de Varsóvia, do início do século passado, pensada para proteger a indústria da navegação aérea em formação. Naquele tempo, atividade insegura, com pouco amparo tecnológico, necessitava de proteção jurídica. Sem falar que peso atualmente não é nenhum sinônimo de valor. Hoje, a navegação aérea é bastante segura e sua indústria, robusta. O critério limitativo adotado é irrazoável por não levar em conta as peculiaridades do caso concreto para fixar a reparação, e acaba premiando o causador de dano, além de prejudicar a vítima ou quem lhe fizer as vezes.

5) No caso específico do litígio judicial protagonizado por segurador sub-rogado, o tema 210 colidirá com a súmula 188, também do Supremo Tribunal Federal. Aos argumentos acima expostos, soma-se a teoria da modulação dos precedentes. É preciso então observar duas coisas: a) um precedente só pode ser aplicado em um caso concreto foi simetricamente igual ao do que o gerou; b) se a ação tiver sido distribuída antes da prolação do precedente, não há como aplicá-lo, eis que a parte demandante exercitou seu direito em contexto solidamente diverso, não podendo ser prejudicada quando de súbito surgiu um novo posicionamento.

Por tudo isso me sinto seguro em afirmar que o tema 210 não se aplica ao transporte de carga, não é oponível ao segurador sub-rogado e a própria norma da limitação de responsabilidade é, com o perdão pelo trocadilho, muito limitada na aplicação. Nem todo caso concreto se submete ao seu gosto.

Muito aproveita dizer que a proteção do credor insatisfeito, da vítima do dano ou do segurador sub-rogado reveste-se de invulgar interesse público e de elevada função social. Trata-se, pois, de algo intimamente ligado à atual leitura do Direito, sua visão econômica e sua constante busca por justiça.

Toda essa argumentação, penso, sem falsa modéstia, seria bastante para se afastar o tema 210 dos litígios de transportes de cargas, sobretudo quando demandados por seguradores subrogados. Bastante, portanto, para se afastar a reboque a limitação de responsabilidade e se preferenciar a reparação civil integral.

Mas vou além; trago algumas decisões recentes do Supremo Tribunal que afastam a decisão de repercussão geral nos transportes de cargas, ora por reconhecer as grandes diferenças fáticas, ora por iluminar corretamente as particularidades do segurador sub-rogado, ora pela modulação, senão temporal, digamos espacial, do precedente.

 

Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados, mestre em Direito Internacional Privado pela U0niversidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP, diretor jurídico do CIST, membro efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, autor de livros jurídicos e patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos.

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