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A disputa envolvendo a prorrogação da desoneração da folha no contexto da ADIn 6632

O atual Governo, por intermédio do Ministério da Economia, tem demonstrado certo incômodo com o atual regime da desoneração.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:55

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Regime da Desoneração foi introduzido pela Medida Provisória 540/11, posteriormente convertida na lei 12.546/11, no âmbito do programa "Plano Brasil Maior", criado pelo Governo Federal com o objetivo de estimular o crescimento econômico do país após a crise econômica internacional de 2008.

Para garantir a manutenção das relações de trabalho e fomentar importantes atividades intensivas em capital humano, a desoneração implicou, para determinado grupo de empresas, a substituição da contribuição previdenciária patronal de 20% incidente sobre a totalidade das remunerações pela contribuição previdenciária sobre a receita bruta ("CPRB"). A desoneração resultou, desde o início, em significativa redução da carga tributária para as empresas, e, por outro lado, expressiva renúncia fiscal para o erário.

O atual Governo, por intermédio do Ministério da Economia, tem demonstrado certo incômodo com o atual regime da desoneração. Na verdade, o incômodo parece estar relacionado com a própria tributação sobre a folha de salários que, na sua visão, seria danosa à sociedade como um todo. O racional por trás desse argumento, de forma bastante simplista, seria o seguinte: se a mão-de-obra é um importante insumo da atividade econômica, a tributação sobre a folha encarece a mão-de-obra e, diante desse alto custo, as empresas tem menos incentivos para contratar. Logo, a completa desoneração da folha seria necessária para aumentar e garantir o nível de emprego formal.

No âmbito das discussões da Reforma Tributária, a agenda do Governo, a princípio, seria transformar o regime setorial da desoneração hoje existente em uma nova política fiscal mais ampla, implicando franca desoneração da folha por meio da eliminação, quase que total, da tributação hoje existente. 

Tanto é que o Governo Federal tentou, até o final, barrar a prorrogação do regime hoje existente justamente para emplacar a desoneração mais abrangente no âmbito da Reforma Tributária, o que, contudo, ainda não vingou.

A respeito dessa tentativa, vale mencionar que, em abril de 2020, o Congresso Nacional promulgou o artigo 33 da Medida Provisória ("MP") 936/20, convertida na lei 14.020/201, que prorrogou, mais uma vez, a desoneração sobre a folha, agora até 31/12/21.

Ocorre que, após aprovação da MP 936 tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelo Senado Federal, o Presidente da República vetou diversos artigos, dentre eles o mencionado artigo 33.

No entanto, em benefício das empresas contempladas pelo regime da desoneração, o Congresso Nacional conseguiu derrubar o veto presidencial.

Foi nesse cenário já de grande instabilidade que, em 16/12/20, o Presidente da República, representado pela Advocacia-Geral da União ("AGU"), ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal ("STF") a Ação Direta de Inconstitucionalidade ("ADIn") 6632, com pedido de cautelar para suspender os efeitos da derrubada do veto, isto é, para barrar a prorrogação do regime da desoneração.

A referida ADIn, sustenta, dentre outros argumentos, que o processo legislativo que culminou na prorrogação da desoneração teria sido concluído sem a devida deliberação dos impactos orçamentários e financeiros envolvidos, o que comprometeria sua legitimidade constitucional, descumprindo o artigo 113 do ADCT2.

De fato, toda renúncia fiscal deve vir acompanhada de um profundo estudo orçamentário e financeiro a fim de que determinada redução na carga tributária seja justificável.

Contudo, no caso, esses requisitos foram cumpridos não só durante o processo legislativo que resultou na promulgação do artigo 33 da lei 14.020/20, como também no momento da rejeição do veto presidencial. Inclusive, o artigo 36 também vetado pelo presidente já previa que o Poder Executivo Federal estimaria o montante da renúncia fiscal e o incluiria nas diretrizes orçamentárias, conforme disposto no artigo 165 da Constituição Federal, visando atender às exigências dispostas no artigo 113 do ADCT3.

Ainda, pode-se afirmar houve a necessária análise dos impactos orçamentários e financeiros, uma vez que o Congresso Nacional aprovou o texto base do Projeto de Lei 9/20, que justamente estabeleceu a Lei de Diretrizes Orçamentárias ("LDO") referente ao ano de 2021, incluindo no próximo ano a prorrogação da desoneração e seus efeitos, em atenção ao requisito do artigo 14, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A referida ADIn foi distribuída ao relator ministro Ricardo Lewandowski que, em 18/12/20, confirmou o rito do artigo 12 da lei 9.868/99. Isso significa que o ministro relator não examinará o pedido cautelar e o Plenário deverá julgar diretamente o mérito da ADIn, após a manifestação da Presidência do Congresso Nacional, da própria AGU e da Procuradoria-Geral da República.

Em razão do recesso judicial do STF que começou em 20/12/20, os prazos para as manifestações a serem apresentadas nos autos da ADIn 6632 serão iniciados apenas em fevereiro. Assim, ao que tudo indica, as empresas contempladas no regime da desoneração a princípio permanecerão usufruindo desse regime e o atual Governo deve encontrar dificuldades em barrar essa prorrogação.

No âmbito da ADIn, a discussão em tese deveria ser estritamente técnica e pautada pelas regras, em especial as orçamentárias, hoje vigentes. Mas não podemos deixar de lado outros aspectos que permeiam, indiretamente, a discussão quanto à prorrogação do regime da desoneração.

Primeiro, o dano causado pela insegurança jurídica. Embora não seja mensurável, a disputa entre os Poderes Legislativo e Executivo, agora atingindo o Judiciário, com as empresas no meio da briga, traz muitas dúvidas, questionamentos e receios. Ora a MP autoriza a prorrogação, ora a prorrogação é vetada, o veto cai, é ajuizada a ADIn... Afinal, o que esperar em seguida?

Para continuar suas atividades econômicas e preservar a capacidade de honrar seus compromissos, as empresas se planejam e estimam custos e despesas com base na legislação vigente. O que, contudo, parece tarefa impossível quando tratamos da desoneração. A depender da decisão a ser proferida pelos Ministros do STF nos autos da ADIn 6632, o cenário que temos hoje pode mudar por completo amanhã.

Desde 2011, as diversas prorrogações do regime da desoneração criaram, inegavelmente, legítima expectativa de que a desoneração seria mantida. Em especial na conjuntura atual, que se caracteriza pela grave crise econômica decorrente da pandemia que se alastrou ao longo do ano inteiro, ainda sem prazo para acabar, é bem verdade que as empresas contavam com a prorrogação do regime.

A segurança jurídica não deve ser tratada como princípio teórico, trata-se de preceito basilar que, nesse caso, deveria refletir o mínimo respeito que o Governo tem para com seus contribuintes.

Se uma decisão do STF obrigar as empresas já enquadradas nesse regime a abandonar de maneira inesperada o modelo de apuração adotado ao longo de diversos anos e retornar ao regime anterior, notadamente mais oneroso, o resultado será apenas mais insegurança, aumentando a descrença para com o Governo. Ou seja: ninguém ganha com essa batalha judicial acerca da desoneração.

Segundo, a eventual necessidade de repensar a desoneração como efetiva política fiscal. Um dos motivos pelos quais a proposta da desoneração total no âmbito da Reforma Tributária não ter emplacado ainda foi a necessidade de encontrar uma contrapartida à enorme renúncia fiscal que decorreria da eliminação da tributação sobre a folha. A mera sugestão de uma nova CPMF ou um novo imposto digital gerou tamanha rejeição que parece ter contribuído para a própria rejeição da nova proposta de desoneração em si.

Mas será que a desoneração total é mesmo o melhor caminho? Será que o esforço que o Governo está fazendo para evitar a prorrogação do regime atual e emplacar uma nova desoneração total é o ideal?

Dadas as muitas variáveis econômicas, é extremamente difícil traçar a correlação entre a desoneração vigente desde 2011 e o nível de empregos para afirmar, com certeza suficiente, que o regime vem cumprindo a sua finalidade. Que garantias temos de que a desoneração total da folha será efetiva? A economia tributária decorrente da eliminação dos tributos sobre a folha resulta, necessariamente, em mais empregos? Ou as empresas podem absorver essa economia resultante do custo de mão-de-obra mais baixo e simplesmente distribuir mais lucros, ou reduzir o preço de seus serviços e produtos?

Eventuais críticas e vantagens do regime da desoneração, especificamente, a sua efetividade como política fiscal, podem e devem ser discutidas e ponderadas, desde que no momento e no foro adequados.

O que não se pode admitir, como sociedade, é que a desoneração da folha - seja a sua prorrogação ou eliminação - cause tamanha confusão a ponto de dificultar o empresariado de tomar qualquer decisão em relação ao tema dada a imprevisibilidade do assunto.

A nosso ver, a decisão mais razoável a ser proferida pelo STF seria pela improcedência do pedido formulado pelo presidente da República na ADIn 6632 porque, sem prejuízo dos argumentos técnicos específicos, o resultado beneficiaria não uma das partes envolvidas, mas sim a toda a sociedade por trazer maior segurança jurídica. Assim, vale acompanhar o julgamento do STF e esperar para que o tema da desoneração seja amplamente discutido, inclusive no contexto da Reforma Tributária tão aguardada.

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1 Referida Lei instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispôs sobre medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido no âmbito do Governo Federal pelo decreto legislativo 6/20 em decorrência da pandemia relacionada ao coronavírus ("COVID-19").

2 "Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro".

3  "Art. 36. O Poder Executivo federal estimará o montante da renúncia fiscal decorrente do que prevê o art. 33 desta Lei e o incluirá no demonstrativo a que se refere o § 6º do art. 165 da Constituição Federal que acompanhar o projeto de lei orçamentária anual."

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 
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Mariana Monte Alegre de Paiva

Mariana Monte Alegre de Paiva

Advogada do escritório Pinheiro Neto Advogados.

Naomi Sylvia Levy Goldenberg

Naomi Sylvia Levy Goldenberg

Associada de Pinheiro Neto Advogados.

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