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Os indígenas Xetá e seu completo extermínio com a aplicação da tese do marco temporal pelo STF

Não é demais dizer que, atualmente, o Governo Federal, adotando uma postura de desrespeito ao texto constitucional, em mais de 2 anos de exercício do mandato no Executivo, não demarcou qualquer terra indígena, dentre elas, a terra indígena Xetá.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Atualizado às 14:21

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

I. A aplicação da tese do marco temporal ou do Indigenato pelo STF

O RE 1.017.365 em curso perante o Supremo Tribunal Federal terá impacto real acerca dos direitos indígenas, precipuamente aqueles que mais sofreram e foram expulsos de suas terras tradicionais.

Em tal RE foi determinada a repercussão geral no caso, com o seguinte paradigma: "[...] CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. POSSE INDÍGENA. TERRA OCUPADA TRADICIONALMENTE POR COMUNIDADE INDÍGENA. POSSIBILIDADES HERMENÊNTICAS DO ARTIGO 231 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. TUTELA CONSTITUCIONAL DO DIREITO FUNDAMENTAL INDÍGENA ÀS TERRAS DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL. 1. É dotada de repercussão geral a questão constitucional referente à definição do estatuto jurídico constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional. 2. Repercussão geral da questão constitucional reconhecida". (RE 1017365 RG, Rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 11.4.2019).

Ainda inexiste data para julgamento definitivo do mérito da matéria, mas certamente haverá efeitos reflexos para toda a sociedade brasileira e seus descendentes, precipuamente aos indígenas que não tiverem comprovação de que ocupavam efetivamente a terra objeto de litígio, na data de 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Carta Magna.

Destarte, poderá existir a opção pela tese do marco temporal (o quê já foi efetivado no caso Serra Raposa do Sol) - o quê acarretará o efetivo descumprimento das disposições constitucionais de proteção aos povos indígenas, tal como determinado pelo constituinte originário, especificamente quanto à preservação de sua cultura e da posse direta das terras tradicionalmente ocupadas por eles, circunstâncias que podem acabar por permitir seu verdadeiro extermínio.

O parecer normativo vinculante 001/2017/GAB/CGU/AGU (GMF-05) da Advocacia-Geral da União foi aprovado pelo Presidente da República, portanto, o ministro do STF Edson Fachin, afirmou, em tal recurso extraordinário: "(...) Questões como o acolhimento pelo texto constitucional da teoria do fato indígena, os elementos necessários à caracterização do esbulho possessório das terras indígenas, a conjugação de interesses sociais, comunitários e ambientais, a configuração dos poderes possessórios aos índios e sua relação com procedimento administrativo de demarcação, apesar do esforço hercúleo da corte na petição 3.388, não se encontram pacificadas, nem na sociedade, nem mesmo no âmbito do Poder Judiciário".

Após tal parecer da AGU, a Funai deverá realizar uma revisão geral em todas as terras já demarcadas pela União, bem como deixaria de demarcar eventuais áreas onde não existisse comprovação de ocupação indígenas na data de 5 de outubro de 1988 - o que consistiria um verdadeiro desastre para toda comunidade indígena.

Não é demais dizer que, atualmente, o Governo Federal, adotando uma postura de desrespeito ao texto constitucional, em mais de 2 (dois) anos de exercício do mandato no Executivo, não demarcou qualquer terra indígena, dentre elas, a terra indígena Xetá.

Deveras, há verdadeiro descumprimento ao comando inserto no artigo 231 da Constituição de 1988, o qual afirma que "(...) são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Os direitos e interesses dos índios têm natureza de direito coletivo, comunitário, de modo que concernem à comunidade toda e a cada índio em particular, ideia que reconduz à "(...) comunidade de direito que existia no seio da gentilidade. Os bens da gens pertenciam conjuntamente a todos os gentílicos" (SILVA, 2020, p. 835).

O artigo 17 da lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio) afirma que são terras indígenas aquelas "(...) ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição", as áreas reservadas e "(...) as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas".

O artigo 19 determina que "(...) as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo", a regulamentar o procedimento voltado à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.

Desde a Constituição de 1934 há hialina proteção às terras indígenas, portanto, a teoria do indigenato, em que pese ser historicamente recente, tem raízes ainda no século XVII, no Brasil, relacionando-se diretamente ao massacre ao qual os nativos brasileiros foram submetidos durante o processo de colonização portuguesa e, posteriormente, com a expansão urbana e agrícola no interior do país.

João Mendes Júnior elaborou tal tese, ainda no início do século XX, considerando o período de exploração, exclusão e genocídio contra os povos indígenas durante a colonização. É um direito congênito. O direito dos povos indígenas às terras tradicionais antecede a criação do Estado brasileiro (MENDES JÚNIOR, 1912, p. 21).

Dessa forma, o Estado deve somente demarcar e declarar os limites espaciais do território indígena (MENDES JÚNIOR, 1912, p. 21), sem, entretanto, imiscuir-se em suas bases, em suas manifestações culturais, assim como em suas tradições, nem mesmo impor às populações nativas o seu ordenamento jurídico.

O indigenato tem influência direta e inevitável em relação aos direitos dos indígenas sobre as suas terras, em decorrência da ocupação "tradicional", atualmente resguardadas pela Constituição de 1988, fazendo com que sua natureza jurídica seja outra que não a de mera propriedade privada.

O manto da proteção jurídico-constitucional dos povos indígenas pela Constituição, que inclui o instituto do indigenato, consagrou aos índios efetivas prerrogativas jurídicas que, por sua vez, não representam favores ou caridade, mas, sim, efetivos direitos públicos subjetivos.

Por outro lado, a tese do marco temporal da Constituição Federal de 1988 é de utilização muito questionável, pois "(...) viola o reconhecimento constitucional do direito originário do índio sobre a terra", desconsiderando, assim, "(...) os requisitos técnicos e legais que garantem a posse da terra e o usufruto de seus recursos pelos índios" (ROTH, 2006, p. 71).

A visão sobre a incapacidade relativa "(...) moldou a regulamentação dos órgãos voltados ao cuidado indígena, o SPI (1910-1967) e a Funai (1967-)", que viabilizavam a integração das comunidades indígenas à sociedade brasileira, desacreditando os movimentos de valoração de suas culturas (ROTH, 2006, p. 71).

Neste viés, ao analisar o RE 1.017.365 o STF necessitará resolver definitivamente a questão colocada em jogo, devendo interpretar a CF/88 de maneira clara, defendendo os direitos fundamentais dos indígenas, afastando a tese do marco temporal e acolhendo a tese do Indigenato.

Érika Silvana Saquetti Martins

Érika Silvana Saquetti Martins

Mestranda Direito UNINTER e Políticas Públicas UFPR. Especialista em Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral Anhanguera. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

Robson Martins

Robson Martins

Doutorando em Direito. Mestre em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral e Direito Civil. Professor da Pós latu sensu da Uninter e ITE. Docente da ESMPU. Procurador da República.

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