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Primeiras impressões sobre impactos familiares da lei 14.118/21

Algumas regras da lei 14.118/21, instituidora do Programa Casa Verde e Amarela, impactam decisivamente nos institutos jurídicos da guarda de filhos e do direito de propriedade.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Atualizado às 09:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Início de ano, últimos dias de recesso judiciário e profusão de normas: a combinação desses elementos desafia a comunidade jurídica, mais uma vez, a conhecer e interpretar novos regramentos.

São objeto de nossa atenção alguns dispositivos da lei 14.118, de 12/1/21 (que institui o Programa Casa Verde e Amarela e altera diversas leis) que tendem a impactar em diversas dinâmicas ligadas ao Direito de Família.

Eis o texto em análise, comparado com o teor da pretérita legislação vigente até o advento da nova lei1

 

Programa Casa Verde e Amarela

(lei 11.418/21)

Programa Minha Casa, Minha Vida

 (lei 11.977/09)

Art. 13. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa Casa Verde e Amarela serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)2.

Art. 35.  Os contratos e registros efetivados no âmbito do PMCMV serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher.

Art. 14. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS.

Art. 35-A.  Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS

Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída.

Parágrafo único.  Nos casos em que haja filhos do casal e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro, o título da propriedade do imóvel será registrado em seu nome ou a ele transferido.

 O novo regramento chama atenção em alguns pontos:

  1. Enquanto a legislação anterior determinava que em caso de divórcio ou dissolução de união estável o título de propriedade do imóvel seria registrado no nome da mulher ou a ela transferido (ressalvando dessa regra apenas as hipóteses de utilização de recursos do FGTS ou as situações em que a guarda dos filhos fosse atribuída exclusivamente ao marido/companheiro)3, a nova lei insere a curiosa expressão "preferencialmente" no texto - tal inclusão implica na alteração da legislação anterior, especialmente porque não traz critérios objetivos para dizer quando serão os imóveis registrados em nome da mulher ou em nome do homem;
  2. A lei utiliza o termo "chefe de família", expressão em desuso há anos: as relações familiares não mais são pautadas por relações hierárquicas de chefia. A expressão acabará sendo considerada como um critério subjetivo que padece de critérios para o estabelecimento de seu adequado sentido;
  3. A lei mantém as duas exceções criadas pela norma anterior (e que já traziam algumas discussões, conforme será visto adiante), acrescentando a esdrúxula possibilidade de alteração da propriedade vinculada à alteração da guarda dos filhos. A hipótese é ruim em muitos sentidos, que aqui sintetizamos:

a) a regra legal prevê guarda compartilhada, situação não abordada pela nova lei;

b) a vinculação da possibilidade de alteração da guarda à mudança da propriedade gera ofensa à proteção constitucional da propriedade, pois cria uma hipótese de expropriação sem qualquer relação com a função social da propriedade;

c) a lei não aborda situações decorrentes de guarda de fato;

d) o fato de a propriedade "acompanhar" a pessoa guardiã, podendo ser transferida em caso de mudança, gera instabilidade e insegurança;

e) além disso, o interesse na propriedade poderá ensejar postura calculista para contemplar o patrimônio e não pleito de guarda baseado na genuína intenção de cuidar melhor dos filhos incapazes, que poderão ser instrumentalizados como "moeda de troca".

  1. A lei cria um dever de indenização não previsto na lei anterior, conferindo ao marido (já que a mulher terá preferência no registro) o direito de cobrar perdas e danos pela propriedade que não ficou registrada em seu nome, ou seja, deixou não apenas de ser protetiva à mulher, como criou um dever indenizatório!

Para bem compreender como os temas poderão ser aplicados, vale conferir como foram apreciados alguns casos julgados com base na lei pretérita (lei 11.977/09, sobre o programa Minha Casa, Minha Vida). Como se notará, a aplicação da lei anterior já causava dúvidas significativas.

Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça catarinense, o pai detentor da guarda provisória da filha pediu a reintegração urgente no imóvel no curso da ação de dissolução de união estável e foi contemplado4.              

Em outra situação levada a juízo, o Tribunal Regional Federal da 1a. Região entendeu que, não havendo filhos e nem ciência sobre razões do abandono do bem, não caberia excluir a mulher da posição de titular do contrato, não se podendo concluir pelo desinteresse no imóvel pelo fato de tê-lo abandonado5.

Por fim, em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Sergipe, constou no acórdão que a regra sobre o registro do bem no nome da companheira  "não diz que o homem não terá qualquer direito ao imóvel, devendo ser aplicada a regra do Código Civil segundo a qual os companheiros terão direito a 50% dos bens adquiridos durante a constância da união.6

Como se nota, as decisões encontradas abordaram as questões de maneira diversa daquela estipulada pela nova legislação, sempre preservando a manutenção do registro do bem no nome da mulher por força da expressa previsão legislativa então existente.

A nova legislação, portanto, além de representar retrocesso em relação à proteção da mulher e do patrimônio familiar, contém hipótese de ofensa à Constituição no que toca à possibilidade de alteração da propriedade vinculada à alteração da guarda.

Apesar de considerarmos que as dúvidas expostas nesse breve artigo não encontrarão respostas claras tão cedo e precisarão ser alvo de debates e definições adiante, servindo as pessoas em conflito - infelizmente - como verdadeiras "cobaias" do atual sistema normativo, esperamos que estas primeiras impressões possam contribuir para a aplicação adequada das novas regras.

___________

1- A nova lei, publicada no DOU dia 13/01/2021, traz as seguintes regras de direito intertemporal: "Art. 25. A partir do dia 26 de agosto de 2020, todas as operações com benefício de natureza habitacional geridas pelo governo federal integrarão o Programa Casa Verde e Amarela de que trata esta Lei. Parágrafo único. As operações iniciadas até a data a que se refere o caput deste artigo, bem como os contratos que venham a ser assinados com pessoas físicas ou jurídicas em decorrência dessas operações, continuam a submeter-se às regras da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, ressalvadas as medidas que retroajam em seu benefício. Art. 26. Revogam-se: I - a Lei nº 13.439, de 27 de abril de 2017; II - as alíneas "a" e "b" do inciso I do § 1º (antigo parágrafo único) do art. 33 da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. Art. 27. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação." 

2- Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III - prestar fiança ou aval; IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada. Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la. Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou particular, autenticado.

3- Lei 11.977/2009, art. 35-A.  Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS. Parágrafo único.  Nos casos em que haja filhos do casal e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro, o título da propriedade do imóvel será registrado em seu nome ou a ele transferido.

4- AGRAVO DE INSTRUMENTO E AGRAVO INTERNO. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. DECISÃO QUE CONCEDEU TUTELA DE URGÊNCIA PARA REINTEGRAR O AGRAVADO/AUTOR NA POSSE DO IMÓVEL. INSURGÊNCIA DA RÉ. IMÓVEL ADQUIRIDO POR MEIO DO PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA. PMCMV, REGIDO PELA LEI Nº 11.977/2009. GENITOR/ AGRAVADO QUE DETÉM A GUARDA PROVISÓRIA DA FILHA E POSSUI, CONSEQUENTEMENTE, DIREITO A POSSE DO IMÓVEL, AO MENOS ATÉ A DEFINIÇÃO DA PARTILHA DE BENS. Aplicação analógica do art. 35-a, parágrafo único, da Lei acima referida: "nos casos em que haja filhos do casal e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro, o título da propriedade do imóvel será registrado em seu nome ou a ele transferido". (...) (TJSC; AI 4002095-96.2017.8.24.0000; Turvo; Sétima Câmara de Direito Civil; Rel. Des. Álvaro Luiz Pereira de Andrade; DJSC 14/04/2020; Pag. 151)

5- Neste sentido: ADMINISTRATIVO. PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA. DISSOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL. ABANDONO DO IMÓVEL PELA MULHER. EXCLUSÃO DE TITULARIDADE DO CONTRATO. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 35-A, DA LEI Nº 11.977/2009. SENTENÇA REFORMADA. 1. O artigo 35-A, da Lei nº 11.977/2009, dispõe expressamente que o registro do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV será em nome da mulher, no caso de dissolução da sociedade conjugal, excetuando as hipóteses trazidas no parágrafo único do dispositivo, em que o título da propriedade do imóvel será transferido ao marido, havendo filhos do casal sob sua guarda. 2. No caso, o autor afirma não haver filhos da relação conjugal, de forma que a sua situação não se enquadra na exceção prevista no parágrafo único do dispositivo citado, inexistindo, assim, a alteração pretendida. 3. Não se pode concluir pelo desinteresse da mulher no imóvel por tê-lo abandonado, sem deixar notícias do seu paradeiro, posto que não está esclarecida a circunstância em que tal fato se deu, de sorte que persiste o seu interesse econômico sobre o bem, sendo que a solução poderá ser encontrada em eventual partilha de bens a ser promovida em ação de dissolução de união estável. (...) (TRF 1ª R.; AC 0002011-47.2014.4.01.4300; Quinta Turma; Relª Desª Fed. Daniele Maranhão; DJF1 17/07/2019)

6- APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA, CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C ALIMENTOS, GUARDA E PARTILHA DE BENS. CONTROVÉRSIA LIMITA-SE À PARTILHA DE BEM IMÓVEL ADQUIRIDO DURANTE A CONSTÂNCIA DA UNIÃO. ART. 35 - A DA LEI Nº 11.977/09 (PMCMV) - INTERPRETAÇÃO EM CONJUNTO COM OS ARTS. 1.725, 1.658 E 1.660 DO CÓDIGO CIVIL- IMÓVEL FINANCIADO. PARTILHA DAS PARCELAS EFETIVAMENTE PAGAS NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO DO COMPANHEIRO EM METADE DAS PRESTAÇÕES PAGAS- HONORÁRIOS RECURSAIS ARBITRADOS- RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. UNÂNIME. I- Sabe-se que a finalidade da Lei nº 11.977/09, PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida), dentre outras, é criar mecanismos de incentivo à aquisição de unidades habitacionais para famílias de baixa renda mensal; II- Nesse contexto, impõe o art. 35 - A da mencionada legislação que, em caso de divórcio ou dissolução de união estável, o título de propriedade será registrado em nome da mulher ou a ele transferido, sendo com base nesse dispositivo que se baseou a decisão do juízo de piso; III- Referida redação não suprime absolutamente nenhum direito do homem e tão somente determina que o imóvel se for permanecer em propriedade de algum dos "ex" membros do casal, o mesmo deverá ficar com a mulher, cabendo a esta ressarcir ou compensar por meio de outros bens o valor pertencente àquele; IV- Portanto, tal dispositivo não diz que o homem não terá qualquer direito ao imóvel, razão pela qual deverá ser aplicada a regra prevista no Código Civil, segundo a qual os companheiros terão direito a 50% dos bens adquiridos durante a constância da união, nos termos dos art. 1.725, art. 1.658 e art. 1.660 do Código Civil; V- Nesse aspecto, vale frisar que durante o período da união foram pagas as prestações referentes aos meses de dezembro de 2011 até outubro de 2015, segunda a própria Apelada informou na contestação, cabendo ao Autor somente a metade dos valores desembolsados (...) (TJSE; AC 201800804118; Ac. 6690/2018; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Luiz Antônio Araújo Mendonça; Julg. 27/03/2018; DJSE 03/04/2018)

Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave

Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave

Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

Fernanda Tartuce Silva

Fernanda Tartuce Silva

Doutora e mestra em Processo Civil pela USP. Professora permanente no programa de Mestrado e Doutorado da FADISP. Professora e coordenadora de Processo Civil na EPD. Advogada, mediadora e autora de publicações jurídicas.

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