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O rol mínimo da ANS é taxativo

A questão faz pensar - e muito o que dizer. A primeira consideração, que assoma, é política. Quais os limites da jurisdição?

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Atualizado às 09:08

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"(...) The interest involved is that of security, to every one's feelings the most vital of all interests (...) security no human being can possibly do without; on it we depend for all our immunity from evil, and for the whole value of all and every good, beyond the passing moment (...)". Stuart Mill1

"(...) It is always possible to obtain any conclusion we like if only we make our premises sufficiently strong (...)". Karl Popper2

Figuremos a hipótese, referente a um contrato de plano de saúde:

(a) uma cobertura não é contratada,

(b) nem consta do rol mínimo

(c) fixado pela ANS

(d) após amplos estudos.

Caberá ao Poder Judiciário, ex post facto, preencher esse - aparente - vácuo?

A quarta turma do Superior Tribunal de Justiça responde negativamente. E assim o decidiu, louvado em diversos pareceres técnicos3, ao julgar o RE 1.733.013/PR. O rol mínimo, assentou, é taxativo. A terceira turma, por sua vez, responde afirmativamente. Assim já o disse por quatro vezes.4 Para ela, o rol é exemplificativo. O desempate, com a uniformização da jurisprudência, caberá à segunda seção, quando julgar os embargos de divergência 1.733.013/PR.

A questão faz pensar - e muito o que dizer. A primeira consideração, que assoma, é política. Quais os limites da jurisdição? Onde termina o poder de dizer o direito e começa o impulso subjetivo de criá-lo? Há uma lógica de sistema, num regime democrático, a presidir as instituições. Estas, com efeito, não se apresentam isoladas umas das outras, mas articuladas. Não é difícil, então, fixar essas fronteiras - entre jurisdição e criação - (i) num Estado de Direito, que é um estado de legalidade; (ii) ainda mais quando se trata de um setor regulado - e fortemente regulado -, como é o da saúde suplementar; e (iii) mais ainda quando ele é marcado pela ampla concorrência.

É complexa, na hipótese em exame, a racionalidade do setor, mas coerente. E é ela que confere previsibilidade e certeza a seus atores e destinatários - preservá-la, portanto, é um dos deveres do Poder Judiciário. A legalidade, nele, está edificada na lei 9.656/1998. Ali foram estabelecidas as regras do jogo; e seu art. 10, §1º, remete a definição do rol de coberturas mínimas à ANS.5 O Estado, então - por sua agência competente, aparelhada com meios e agentes dotados de expertise -, exerce aguda ingerência na economia: ele fixa o conteúdo mínimo de um contrato de plano de saúde. Inúmeras variantes entram em conta nessa avaliação, desde a viabilidade atuarial até projeções de mercado (arts. 3º, 4º e 9º, XIV, da resolução normativa ANS 439/20186, v.g.). Preservado, no entanto, o mutualismo - a essência de um seguro -, as operadoras podem, por consenso, dentro das suas possibilidades econômico-financeiras, e atendida a lei da demanda, ampliar esse rol. Exercem, com isso, uma liberdade - constitucional: a liberdade de contratar. Quanto mais houver, e quanto mais for exercida, maiores, potencialmente, serão as opções de escolha pelos consumidores.

Abrir esse rol, por decreto judicial, poria em xeque a ordem democraticamente estabelecida. E o sistema iria a pique:

(a)      a legalidade, antes de mais, ficaria esmaecida (a lei seria reescrita, ao final, e de trás para frente, com a subversão das regras do jogo);

(b)     os feixes de competência ficariam borrados (o Judiciário, na prática, sem aparelhamento para tal, e sem (in)formação adequada, faria as vezes da ANS);

(c)      as funções, confundidas (o legislador não legislaria, o regulador não regularia, e o juiz, por fim, não julgaria, mas legislaria e regularia, no lugar daqueles);

(d)     e as garantias de previsibilidade e certeza, solapadas (os parâmetros normativos com base nos quais empresas optaram por investir no setor não seriam confiáveis).

Nesse ambiente, volátil, rarefeito, e de extrema insegurança:

(i) a solvabilidade das operadoras, sobretudo as de menor fôlego financeiro, tenderia a colapsar (empresas não sobrevivem sem planejamento e orçamento, tanto mais quando submetidos a solavancos impostos de cima para baixo);

(ii) a liberdade, a murchar (a livre iniciativa não medra em meio a um ambiente no qual prevalece a lógica paternalista da autoridade);

(iii) o mercado, a se encolher (não há mercado, quando a intervenção e o controle se tornam desproporcionais, sem qualquer racionalidade); e

(iv) as opções, a se concentrarem (nesse contexto só haveria espaço para poucos).

Ganharia, então, o CDC; ganhariam, também, as teses acadêmicas; e ganharia, ainda, a burocracria; perderiam, no entanto, os consumidores.

São, prima facie, considerações consequencialistas, às quais o intérprete está vinculado.7 Todas intuitivas e implacáveis, embora não se possa, desde logo, aquilatar o tamanho real do estrago. Mas consequencialismo vai além disso, de uma simples diretriz hermenêutica. Consequencialismo é, antes de mais, o dever de fidelidade à racionalidade do sistema, e de respeito à ordem posta.

Em ciência, seja física ou empírica, como são as ciências sociais, toda hipótese deve ser levada a julgamento, isto é, deve ser submetida a testes, seguida de uma avaliação crítica de resultados, com vistas a avanços setoriais. Assim ela se move, by trial and error. Só que, na vida-de-relação, a saber, quando se trata da organização e dinâmica da pólis, esses testes cabem a entes especializados, incumbidos dos estudos prévios, e responsáveis por empreendê-los, previamente a deliberações. Numa República, a testagem de hipóteses, que vem à luz na forma de políticas públicas, cabe ao Legislativo e ao Executivo. Se não resultarem, ou se não resultarem bem, trocam-se os representantes. Trocam-se, até, e eventualmente, as próprias leis. Assim gira a roda. Tais são os espaços de ação demarcados. Não cabe a interposição sub-rogante do Judiciário. Justiça não é espaço para laboratório ou poesia social. Juízes não são medicine man da sociedade. E não são mandatários da tese nº 11 de Feuerbach. Ao contrário, eles não se submetem ao controle popular pelo voto.

Uma consideração, ainda, de direito civil. Plano de saúde é modalidade de seguro. E, num contrato de seguro, assegura-se uma incerteza. O que o define, portanto, é a definição do risco que ele visa cobrir. Se esse risco pode ser aberto, ou variável, ou incerto - com a ampliação ad hoc, et a posteriori, mas com efeitos pretéritos, do rol de coberturas -, então já não é mais seguro, é outra coisa - sabe-se lá o quê! O contrato, enfim, fica desnaturado. O risco, nessa hipótese, não será o objeto do contrato; o risco será contratar - um contrato com objeto aberto, a ser preenchido no futuro.

Outra consideração, mais delicada, de direito constitucional. Fixar, de cima para baixo, o conteúdo de um contrato - v.g., um rol de coberturas mínimas - é definir um limite à faculdade de agir - essa é a valência privada da legalidade: "não farás o que for proibido". E se o Estado-Regulador impõe um fechamento de conduta, não poderá o Estado-Jurisdição, logo depois, reabrir esse fechamento, ainda mais para agravá-lo. O Estado não pode driblar ou saltar suas próprias regras. Antes, deve sofrer suas consequências - é a valência pública da legalidade: "só farás o que for permitido". O Poder Público, ao agir, há de guardar integridade e coerência. Nesse contexto, o rol tem de ser taxativo. Até porque não há exegese ampliativa quanto a normas restritivas. Seja como for, quem padece restrições há que saber, desde logo, sem surpresas, até onde elas vão. Não há teses acadêmicas, nem princípios de laboratório, que possam subverter essa garantia básica de clareza e proteção da confiança. O espaço, ademais, para subvenções impostas é o do público, não o do privado. Esse discurso valeria para o SUS. Mas é claro que esse é um problema muito mais grave. Mais fácil, então, é direcionar a solução para o lado. Aliás, a saúde suplementar existe também para desafogar o SUS, não o contrário. Transformar aquela, neste, seria um desastre social ainda maior - para o qual já estamos a caminho. Isso só aumentaria os níveis de ineficiência, abandono e precariedade na saúde.

Uma consideração processual agora. Também por esse ângulo a abertura do rol seria nefasta. Ela traria, na prática, ainda mais insegurança, e estimularia a judicialização, já por demais desenfreada. Aberta a porteira, repetitivos, ao cabo de anos de litígios em série nas instâncias ordinárias, suceder-se-iam, um após o outro, numa sequência alucinante, a cada vez para se definir, em cada hipótese, se determinada cobertura, ou tratamento, ou medicamento estaria previsto no rol mínimo da ANS. Seria, pois, um caminho sem volta: ao auto autorizar-se a legislar, o Judiciário não poderia mais deixar de fazê-lo. O que a ANS prescrevesse valeria pouco mais do que nada. Tudo seria resolvido, com anos de defasagem e atraso8, segundo a sorte judicial.

Por fim, uma consideração democrática. Democracia não se confunde com burocracia, ou com os ritos públicos estabelecidos. Não se cinge, tampouco, a atos de poder, ou a atos de última palavra. Democracia, e ainda estamos muito longe de caminhar para isso, é a democracia do (respeito ao) indivíduo. É o cidadão poder se expressar, defender suas ideias, circulá-las, e submetê-las, com tolerância, à concorrência. É poder sair para a rua tranquilo e voltar a casa em paz. E é, sobretudo, ele poder moldar sua vida, firmar acordos, celebrar contratos, e autodeterminar-se, delimitando, assim, sua liberdade. Mas somos reféns da sombra paternal da autoridade. É cláusula não escrita, entre nós, a noção de que o público deve prevalecer sobre o indivíduo, e de que este é apenas uma célula servil daquele. Um discurso que recrudesce de tempos em tempos, para sempre se fortalecer e autolegitimar-se, e que hoje ganha coro, na mídia, na academia e nos espaços públicos, no jargão da "uberização da vida". Não admira nada, nesse contexto bourbônico-napoleônico anacrônico, que contratos sejam considerados favores, ou meras permissões, que o Estado concede, e, justamente por concedê-los, sente-se em condições de, a qualquer tempo, poder intervir na sua economia, para revê-lo. "A liberdade", dizia Clarice, "ofende". É preciso ter sempre alguém que diga o que é melhor.

Voltamos, então, ao começo: ao político. Jurisdição, afinal, é poder. E todo poder é poder sobre pessoas; é poder de invadir, influenciar, determinar e até de submeter suas vidas. Exercê-lo, então, é um desafio constante, o de vencer, diariamente, por autocontenção, a sua sedutora, e ingente, tentação: a da omnipotência. Jurisprudência, por sua vez, é uma prudência. E a prudência recomenda que se ouça, antes de mais, a experiência. No Direito, após longa caminhada civilizatória, cheia de marchas e contramarchas, a experiência está insculpida em garantias fundamentais, gravadas na Constituição. Dentre elas - e a primeira delas - a de que todo o poder, republicano e democrático, é limitado. A jurisprudência, portanto, deve filtrar a jurisdição, para que esta não se perca, e se exceda.

Há princípios, no entanto. E princípios para todos os lados. E há também essa patologia jurídica infantil, alimentada nas academias, de intumescê-los, manipulá-los e agitá-los, como cadinhos num experimento. Basta, então, invocá-los, colocando-os como premissas cimeiras, e tudo, a partir de um simples artifício retórico, fica aparentemente certo e justificado - para além de banalizado. Assim, muitas vezes, com essa linha direta, ao invés de julgarem, juízes legislam (à margem do sistema): a lei, afinal, é o que eles dizem que é. Não é esse o desfecho que se espera para a questão aqui debatida. Mas não bastará, para que isso aconteça, que se resgate a memória de que o Direito não é uma superestrutura - embora, entre nós, nisso tenha se tornado - definidora da vida. Não bastará, também, que os operadores estudem mais, ou quem sabe, até mesmo, comecem a estudar agora, outras matérias que não o Direito - das quais este é instrumental, e não sobranceiro. A Justiça precisa voltar a calcar, descalça, o solo de barro do rés do chão. E aceitar seus limites. A Justiça precisa ser consequente, mais do que consequencialista. A Justiça precisa ser prudente.

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1 MILL, John Stuart, in "Utilitarianism", Chigado, University of Chicago, 1980, p. 471.
2 POPPER, Karl, in "The Open Society and its Enemies", New Jersey, Princeton, 2020, p. 351.
3 Dentre eles: Agência Nacional de Saúde - ANS; União Federal; Ministério Público da Justiça e Segurança Pública; Conselho Federal de Farmácia - CEF; Federação Nacional de Saúde Suplementar - FENASAÚDE; Instituto Brasileiro de Atuária - IBA; Associação Brasileira de Planos de Saúde - ABRAMGE; Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização - CNSEG; União Nacional das Instituições de Autogestão de Saúde - UNIDAS
4 RESP 1.769.557/CE; AG. INT. ARESP 1.442.296/SP; AG. INT. RESP 1.724.233/MG; e AG. INT. ARESP 1.431.842/SP.
5 De igual forma dispõe o art. 20 da resolução normativa ANS 428/2017.
6 Art. 3º Os ciclos de atualização do Rol ocorrerão a cada dois anos e terão como finalidade a revisão da Resolução Normativa que estabelece a cobertura assistencial mínima obrigatória.
Art. 4º O processo de atualização periódica do Rol observará as seguintes diretrizes: I - a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, de modo a contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país; II - as ações de promoção à saúde e de prevenção de doenças; III - o alinhamento com as políticas nacionais de saúde; IV - a utilização dos princípios da avaliação de tecnologias em saúde - ATS; V - a observância aos princípios da saúde baseada em evidências - SBE; e VI - a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor. (...)
Art. 9º Serão consideradas elegíveis, para análise pelo órgão técnico competente da ANS, apenas as propostas de atualização realizadas via FormRol que cumprirem os seguintes requisitos de informação: (...) XIV - descrição das evidências científicas relativas à eficácia, efetividade, acurácia e segurança da tecnologia em saúde proposta, comparadas às tecnologias alternativas em saúde, por meio de apresentação de revisão sistemática ou parecer técnico-científico - PTC, desenvolvido de acordo com a edição atualizada das diretrizes metodológicas de elaboração de PTC e de revisão sistemática e metanálise de estudos, publicadas pelo Ministério da Saúde;
7 arts. 20, 21, 24 e 30, do decreto-lei 4.657/42, incluídos pela recente lei 13.655/2018, art. 926 do CPC/15, e art. 3º, III e V, da lei 13.874/2019.
8 Mais um contrassenso, na medida em que uma das fundamentações para ser entender o rol da ANS como exemplificativo é justamente a circunstância de que a atualização ordinária, e bienal (porque há situações extraordinárias a respeito da quais a ANS emana regras imediatamente, vide, v.g., o teste do covid-19), feita pela ANS, é precária/deficitária. E o Judiciário não é mais rápido do que a vida.

Bruno Di Marino

Bruno Di Marino

Advogado do escritório Basilio Advogados.

Álvaro Ferraz

Álvaro Ferraz

Mestre em Direito Processual Civil, especialista em Direito Processual Civil, e advogado sênior do escritório Basilio Advogados.

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