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A equivocada compreensão do proveito econômico em demandas questionando atos em licitações

O trabalho analisa como a leitura equivocada do proveito econômico, critério subjacente à determinação do valor da causa, pode represar o acesso à jurisdição e inibir o controle dos atos da administração pública em licitações.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:34

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

O valor da causa atualizado é critério subsidiário à fixação dos honorários devidos pelo vencido (art. 85, § 2º, CPC).1 Considerando que o valor da causa é dimensionado a partir do proveito econômico buscado pelo autor - o que nem sempre é de fácil mensuração -, é oportuno refletir como uma leitura equivocada do proveito ou mais valia pode limitar o acesso à jurisdição de sujeitos de direito que não sejam economicamente hipossuficientes. É o que analisamos neste ensaio, no contexto da fiscalização dos atos da administração pública em procedimento licitatório.

O risco de sucumbência costuma ser estimado diante do possível acionamento da jurisdição. Ainda que não seja sua função primária, é inegável que a regra de sucumbência filtra o que chega ao judiciário; em alguma medida, concorrendo para evitar ações temerárias. Ocorre que a aplicação dessa regra à luz de uma leitura equivocada do proveito econômico pretendido (com implicações diretas no valor da causa), pode constituir um fator ilegítimo de restrição do acesso à jurisdição.

A preocupação com eventuais obstáculos econômicos ao acesso à jurisdição não constitui novidade entre nós. Em alguma medida, o tema não passou despercebido da legislação brasileira, cuja disciplina da assistência judiciária gratuita data de 1950 (lei 1.060/50). De toda sorte, este ensaio sugere reflexão mais ampla, em que a tensão entre os fatores econômicos e o direito de acesso à jurisdição - mormente quando estimado o risco de sucumbência -, não reste confinado ao universo dos pobres na forma da lei. Aos que não fazem jus à assistência judiciária gratuita, o risco da sucumbência e as próprias dificuldades em estimá-lo no Brasil, podem inibir, ilegitimamente, a busca de tutela jurisdicional.   

O mandado de segurança exerce papel fundamental no contexto da fiscalização dos atos da administração pública; aliás, cenário em que a tutela de direitos subjetivos por meio da declaração de nulidade de um ato administrativo ilegal ou abusivo, tem reflexos sobre o interesse público.2 A finalidade do ato administrativo, pressuposto à sua validade e eficácia, sempre se predispõe a uma finalidade pública. Um ato administrativo praticado com desvio de finalidade e/ou de poder, por exemplo, é viciado e passível de controle judicial que assegure a legalidade e escorreita prestação da atividade administrativa. Como sói, o mandado de segurança é amplamente explorado para tanto. 

Ocorre que o cabimento do writ está sujeito a um rigoroso exame que, não raro, inviabiliza a impetração. Sem o preenchimento dos requisitos de admissibilidade, não há direito ao remédio jurídico mandado de segurança. Em contraponto, para que o mandado de segurança cumpra sua missão constitucional, seu procedimento não autoriza condenação em honorários advocatícios (Enunciado 512/STF; Enunciado 05/STJ; art. 25 da lei 12.016/09).

A ausência de condenação em honorários em mandado de segurança é salutar para remover eventual óbice ao emprego do remédio constitucional,3 o que está na raiz dessa previsão;4 sem a possibilidade de condenação em honorários, o impetrante consegue dimensionar melhor seu risco ao ajuizar um writ, posto que tenha de recolher as custas processuais.5

Cediço que a impossibilidade do mandado de segurança não impede que a tutela jurisdicional seja postulada em ação pelo procedimento comum. Todavia, fora do espectro do remédio constitucional, a parte se sujeitará aos riscos da sucumbência. É com esse pano de fundo que voltamos à problemática exposta no início.

Em demandas questionando a legalidade de atos praticados em procedimentos licitatórios, o dimensionamento do possível proveito econômico e, pois, do valor que deve ser atribuído à causa, não pode ser realizado de maneira irrefletida ou atabalhoada, restringindo o acesso à jurisdição daqueles sujeitos de direito não alcançados pela assistência judiciária gratuita.

Sem embargo, porque realizaram leitura equivocada da ideia de proveito econômico, há julgados estabelecendo que o valor da causa em demandas que tais, deveria corresponder ao da própria licitação, do futuro contrato a ser celebrado ou do lance ofertado pelo licitante.Sobre ser uma interpretação equivocada do proveito econômico, essa perspectiva tem o efeito colateral de arrostar o acesso à jurisdição; outrossim, "blinda" a administração pública do controle judicial de seus atos.

Felizmente, vem multiplicando-se as decisões com a leitura de que o requerimento da tutela jurisdicional para anulação de atos administrativos ilegais e irregulares expedidos no bojo de procedimento licitatório, como os de homologação e adjudicação, tem como objeto precípuo o controle da legalidade.  Portanto, esse tipo de pretensão é desnuda de cunho econômico, razão pela qual não há como sustentar que o valor da causa deva espelhar o da própria licitação, do objeto do futuro contrato a ser firmado ou dos lances (no caso de pregões e leilões).7

Sendo assim, em ações ordinárias ajuizadas com o único desiderato de controle judicial dos atos administrativos eivados em uma licitação, ou seja, quando a pretensão deduzida não exigir a obrigatória contratação do autor, não é possível falar em proveito econômico imediato. Portanto, a determinação de atribuição de valor da causa com base no preço estimado da contratação viola não só o direito de acesso à jurisdição como, reflexamente, inviabiliza a fiscalização da licitação e, pois, a tutela do interesse público.        

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1- O valor da causa tem múltiplas funções no procedimento judicial: além de compor a base de cálculo da taxa judiciária (i), é relevante para fins de alçada (ii), presta-se como parâmetro normativo à aplicação de sanções processuais (iii) e pode assumir relevo em matéria de sucumbência.

2- "Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "antes o Judiciário se limitava a resolver conflitos de interesses individuais, hoje ele pode ter que resolver conflitos entre diferentes interesses públicos". DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionaridade administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 258.

3- Comentando o assunto, à luz da aplicação subsidiária do CPC ao procedimento do Mandado de Segurança, antes do advento da Lei nº 12.016/09, é dizer, antes de existir uma regra de direito positivo afastando a condenação em honorários, Cassio Scarpinella Bueno explicava o Enunciado nº 512/STF: "Negar juridicidade na condenação em honorários de advogado no mandado de injunção não é, destarte, menosprezar a função essencial à justiça expressamente reconhecida ao advogado pelo art. 133 da Constituição Federal. É, no entanto, negar subsidiariedade ao Código de Processo Civil na exata medida em que se enobrece, ainda mais, o acesso à justiça por esse especial mecanismo de tutela de direitos subjetivos públicos contra a prepotência estatal ou de quem lhe faça as vezes." BUENO, Cassio Scarpinella. Mandado de segurança. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 216-219.

4- Antes do Verbete nº 105/STJ, a Corte Especial enfrentou o tema nos Embargos de Divergência no REsp nº 18.649-8/RJ, Rel. Min. José de Jesus Filho, j. em 22 de outubro de 1993, cuja decisão foi unânime. Considerando que os votos dos ministros que tomaram parte nesse julgamento se limitam a fazer alusão ao entendimento já esposado, melhor analisar o voto do Min. José Cândido no REsp nº 27.879-3/RJ, apenas para ratificar que a preocupação com o acesso à jurisdição está na raiz do tema: "[...]. Trata-se de lei especial, garantidora do amplo acesso à Justiça a todo cidadão, que não pode ser amedrontado com eventual condenação em verba honorária, caso vencido."

5- O tema não restou infenso à crítica. Ibid., p. 220/221.

6- STJ - AgRg no AREsp 153202/RJ, Relator Herman Benjamin, 2ª Turma, Data de Julgamento 20/11/2020, DJE de 18/12/2012; TJSP - AGRI 2265974-05.2019.8.26.0000, Relator José Luiz Gavião de Almeida, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Julgamento 27/05/2020, DJE de 27/05/2020; TJRS Agravo 70080397524 - Relatora Laura Louzada Jaccottet, 2ª Câmara Cível, Data de julgamento 24/04/2019, DJE de 06/05/2019.

7- Ilustram esse entendimento, que ganha corpo jurisprudencial, os seguintes julgados: TJ-MG - AI: 10000191431758001 MG, Relator: Fábio Torres de Sousa (JD Convocado), Data de Julgamento: 10/03/2020, Data de Publicação: 13/04/2020; TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0024.13.345507-1/001, Relator (a): Des.(a) Heloisa Combat, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/02/2014, publicação da sumula em 26/02/2014; TJ-GO - AI: 02966667020208090000 GOIÂNIA, Relator: Des(a). GILBERTO MARQUES FILHO, Data de Julgamento: 05/10/2020, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 05/10/2020; TJGO, Apelação (CPC) 0066661-74.2016.8.09.0130, Rel. Des(a). MARCUS DA COSTA FERREIRA, 5ª Câmara Cível, julgado em 20/02/2020, DJe de 20/02/2020; TJ-RS - AC: 70080568975 RS, Relator: Lúcia de Fátima Cerveira, Data de Julgamento: 24/04/2019, Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 06/05/2019; TJ-SP - APL: 10181922020178260114 SP 1018192-20.2017.8.26.0114, Relator: Renato Delbianco, Data de Julgamento: 01/11/2018, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 01/11/2018; TJ-RS - AC: 70075087544 RS, Relator: Denise Oliveira Cezar, Data de Julgamento: 26/10/2017, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 01/11/2017; TJ-AC - AI: 10009035320198010000 AC 1000903-53.2019.8.01.0000, Relator: Eva Evangelista, Data de Julgamento: 14/11/2019, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 29/11/2019.

Deysianne Moura

Deysianne Moura

Pós-graduada em Direito Tributário. Sócia do da Fonte, Advogados.

Mateus Costa Pereira

Mateus Costa Pereira

Sócio do da Fonte, Advogados.

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