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Colaboração na nova lei de licitações: Modernização ou derrota?

O projeto de nova lei de licitações traz mecanismos inovadores para que empresas colaborem com a Administração Pública em suas contratações, mas qual o preço a pagar pelas exigências da modernidade?

quinta-feira, 4 de março de 2021

Atualizado em 5 de março de 2021 09:47

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Há no Brasil uma cultura de competição entre público e privado na qual empresas e órgãos públicos veem uns aos outros como inimigos, num ciclo de comportamentos oportunisticamente orientados que se retroalimentam.

Em algum momento de nossa breve história, em algum contrato público, uma das partes tirou vantagem da outra injustamente, e a partir daí, como que num pecado original, Administração Pública e licitantes "disputam" ao celebrar um contrato, a ver quem consegue se antecipar mais às condutas mal-intencionadas do outro.

O projeto de nova lei de licitações e contratos públicos (projeto de lei 4.253, de 2020) busca, inter alias, enfraquecer esta cultura, a partir do estímulo - muito acertado, ao nosso ver - a mecanismos de colaboração entre o Estado contratante e seus potenciais fornecedores privados.

Um desses mecanismos é o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Definido no artigo 80 do projeto, o PMI é apresentado como um procedimento auxiliar colocado à disposição dos gestores públicos. Seu objetivo, resumidamente, seria a elaboração por particulares de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras previamente à contratação pública, que em seguida viriam a ser pagos pela empresa vitoriosa na licitação a se realizar.

Em termos simples, uma empresa A participa do PMI solicitado pela Administração, realiza estudos avaliados em mil reais, e a Administração utiliza tais estudos como substrato para preparar uma licitação de dez mil reais. Uma empresa B vence a licitação, executa seu objeto com o suporte destes estudos e recebe nove mil reais, sendo os mil reais restantes utilizados para remunerar os estudos executados pela empresa A.

Outro mecanismo, ainda mais flexibilizador e, consequentemente, controverso, é o Diálogo Competitivo, uma modalidade de licitação nova que não possui semelhança com nenhum instrumento presente na legislação atual, e que será acrescentado, também, às leis de concessões (lei 8.987/95) e de parcerias público-privadas (lei 11.079/04).

No projeto de lei, o diálogo competitivo é definido como uma modalidade de licitação para aquisição de obras, serviços e bens, através da qual se poderá definir o objeto da contratação a posteriori, a partir de diálogos a serem realizados com algumas empresas previamente selecionadas (artigo 6º, "XLII" do projeto).

Ambas as inovações possuem origem no direito comunitário europeu (Diretiva 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia), sendo - mutatis mutandis - o PMI inspirado na chamada consulta preliminar ao mercado (artigo 40 da Diretiva) e o diálogo competitivo em seu equivalente, o diálogo concorrencial (artigo 30 da Diretiva).

Para posicionar o diálogo competitivo num quadro mais amplo, cabe observar que diferentemente da legislação atual, o novo projeto apresenta cinco modalidades de licitação a serem adotadas exclusivamente com base no objeto, ou seja, no que será contratado (artigo 28 do projeto de lei).

O pregão continuará sendo utilizado para adquirir bens/obras/serviços comuns, que possam ser objetivamente definidos por meio de especificações usuais de mercado. A concorrência, em sentido oposto, passará a ser utilizada para a contratação de bens/obras/serviços não comuns, de alta especialidade técnica.

O concurso permanecerá sendo empregado para seleção de trabalho técnico, científico ou artístico, e o leilão para a alienação de bens pela Administração a particulares. A nova modalidade do diálogo competitivo, por sua vez, poderá ser adotada apenas em situações bastante especiais, nas quais, grosso modo, a Administração Pública não sabe o que comprar.

Embora a redação do texto legal utilize termos como inovação técnica ou tecnológica, necessidade de definir a solução mais adequada ou impossibilidade de definir especificações técnicas com precisão (artigo 32), a realidade que se encontra subjacente à figura do diálogo competitivo é a incapacidade técnica dos órgãos públicos de definir objetivamente qual a solução de mercado adequada para atender sua necessidade.

O fato é que pelo aprimoramento da especialidade, característica da iniciativa privada, somado ao veloz desenvolvimento tecnológico, os bens, serviços e obras atualmente já alcançam um grau de complexidade técnica tão elevado que em determinadas situações, tornou-se impossível para os órgãos públicos definir, unilateralmente, qual a melhor solução para sua necessidade.

Imaginemos, meramente a título de exemplo, uma solução de automação predial, ou de eficiência energética, ou a customização de sistemas de informação. São (quase) infinitas as possiblidades diferentes de arranjos de layout das instalações, hardwares e softwares que podem ser utilizados, com diferentes níveis de complexidade, preço e funcionalidades, todas, porém, para atender a uma única e mesma necessidade.

Nesse sentido, sugere-se que tais mecanismos de cooperação (PMI e diálogo competitivo) sejam não meramente inovações jurídicas de modernização, mas sim sinais de uma possível derrota - nesta quebra-de-braço entre público e privado - por parte do Estado, que já não é mais capaz de deter informações técnicas tão precisas quanto as empresas especializadas nestes assuntos.

Observa-se, portanto, que estes mecanismos possuem sua origem num fenômeno económico de assimetria de informação cada vez mais acentuado entre os órgãos públicos e a iniciativa privada. Quando um gestor público identificar uma necessidade e perceber que é incapaz de delimitar o objeto mais adequado para atende-la, poderá seguir dois caminhos: (a) iniciar um Procedimento de Manifestação de Interesse, caso a coleta de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras seja suficiente para definir o objeto a ser contratado; ou (b) iniciar uma licitação na modalidade diálogo competitivo, cuja fase primeira (diálogo) servirá para definir o objeto, enquanto a fase subsequente (competitiva) servirá, de fato, para selecionar a proposta mais vantajosa.

Como mencionado linhas atrás, parece-nos tarefa difícil para o direito público dar conta de conciliar de um lado o interesse público e o respeito rígido a princípios clássicos como legalidade, isonomia, vinculação a instrumento convocatório e seleção por critérios objetivos, e de outro o avanço acelerado de complexas soluções tecnológicas no mercado privado, sem necessariamente socorrer-se de instrumentos controversos.

Embora seja fundamental ver tais mecanismos sendo aplicados na prática para que se possam elaborar análises mais densas, permitimo-nos aqui suscitar algumas ideias provocadas pela redação atual do projeto. Parece-nos evidente que há no PMI e no diálogo competitivo, verbi gratia, uma clara mitigação do caráter objetivo da licitação, motivada, porém, por razões de interesse de público (seja essa uma justificativa válida ou não).

O risco de a aplicação destes instrumentos levar à uma condução anti-isonômica do procedimento licitatório é tão sensível, que há na redação legal uma forte preocupação em evitar quaisquer condutas capazes de implicar numa discriminação ou distorção da concorrência no certame (ver artigo 32, § 1º, IX). Reforça esta visão, inclusive, a criação de um tipo penal novo, criminalizando a conduta do projetista que omite, modifica ou entrega à Administração informações distorcidas, capazes de frustrar o caráter competitivo da licitação em diálogo competitivo ou PMI (artigo 337 - O acrescentado ao Código Penal).

Além disso, a forma como o diálogo competitivo é apresentada prevê que após a fase de diálogo a proposta vencedora será considerada "mais vantajosa" a partir de critérios objetivos previamente indicados, o que sugere a utilização do critério de técnica e preço. No direito comunitário europeu - de onde a modalidade nova retira sua inspiração - contudo, o critério utilizado tem de ser, obrigatoriamente, o da melhor relação qualidade/preço, que envolve aspectos qualitativos, ambientais e sociais. Embora nos pareça que este critério qualidade/preço seja mais adequado ao diálogo competitivo, é necessário sublinhar que não há equivalência com ele entre os critérios presentes no projeto brasileiro.

Sendo estas apenas algumas provocações iniciais que se somam a tantas outras já suscitadas acerca do novo projeto de lei, espera-se contribuir com o cenário brasileiro, mais detidamente no que se refere ao tema da contratação pública, advogando pelo fortalecimento de uma cultura de parceria e cooperação, em detrimento da persecução oportunista da vantagem unilateral.

Ivson C. Araújo

Ivson C. Araújo

Mestrando em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa (Portugal). Advogado do escritório da Fonte, Advogados.

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