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O consequencialismo jurídico às avessas da Receita Federal

A Receita Federal, em verdade, acabou se apropriando do mecanismo para, através da Solução de Consulta COSIT 145/20, redesenhar a dogmática jurídica a seu serviço

quinta-feira, 4 de março de 2021

Atualizado às 08:32

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

No alvorecer de 2021, quando todos esperavam políticas públicas de amparo e incentivo à economia e aos empresários após um 2020 de profunda recessão, ou mesmo maior liberalismo econômico, delegando ao mercado o reflorescimento do ambiente econômico, diante da escassez de recursos públicos, acentuam-se, ao contrário, medidas governamentais de arroxo e desespero arrecadatório, numa espécie de consequencialismo jurídico às avessas, em que se busca, através da fiscalização predatória, criar subterfúgios jurídicos tendenciosos destinados a alavancar a receita tributária; todavia, matando a galinha dos ovos de ouro: o empresário. Não por acaso muitas empresas estão fechando as portas, entrando em falência ou simplesmente abandonando o país.

Entre tais medidas, encontra-se a Solução de Consulta COSIT 145/20, emitida pela Receita Federal do Brasil no apagar das luzes de 2020, que reforma e revoga Solução de Consulta anterior publicada há menos de um ano e que dava solução diversa a um tema sensível à indústria e ao comércio: o enquadramento dos incentivos de ICMS como subvenções para investimento.

A partir do conceito de consequencialismo malandro extraído do excelente artigo do Luis Fernando Schuartz1, constatamos que aqueles que deveriam combater tal estratagema, quem seja: a Receita Federal, em verdade, acabou se apropriando do mecanismo para, através da Solução de Consulta COSIT 145/20, redesenhar a dogmática jurídica a seu serviço, ainda que pontualmente e para o caso dos incentivos de ICMS, alimentando a desordem e a insegurança jurídica que propiciam um comportamento dos agentes econômicos tendente a acatar, por conservadorismo, o entendimento fiscalista.

Algo similar ao que a Receita Federal já fez em comunhão com a Procuradoria da Fazenda Nacional a respeito da tese vencedora no STF que definiu que o ICMS destacado em nota fiscal deve ser excluído das bases do PIS e da Cofins. Apesar de terem se sagrado vitoriosos há exatos 4 anos (março de 2017), os contribuintes enfrentam ainda hoje um ambiente fiscalizatório extremamente hostil, a saber, a Receita promete para 2021 uma devassa nas compensações dos créditos tributários originados desta tese tributária. É a lógica do malandro: dissimular a derrota para ganhar no tapetão.

Retomando o debate a respeito da Solução de Consulta COSIT 145/20, a Receita Federal inova no ordenamento jurídico, especialmente na interpretação do artigo 30 da lei federal 12.973/14, para exigir o cumprimento pelos contribuintes de mais um requisito para permitir a exclusão dos incentivos fiscais de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL: o requisito de que os incentivos de ICMS tenham sido concedidos como estímulo à expansão ou implantação de empreendimentos econômicos.

Ora, isto não é e nem nunca foi requisito para aproveitamento deste benefício de exclusão das subvenções para investimento das bases do IRPJ e da CSLL, pois que o estímulo a empreendimentos econômicos é inerente ao próprio conceito de subvenção para investimento. Vale dizer: não estaríamos diante de uma subvenção para investimento se a renúncia de receita tributária pelos entes federados não estivesse lastreada nesta justificativa de ordem econômica.

Em verdade, o único requisito elencado no artigo 30 da lei federal 12.973/14 para a exclusão das subvenções das bases do IRPJ e da CSLL assenta-se na exigência de que os valores sejam contabilizados em reserva de lucros não disponível aos sócios ou acionistas, requisito este, inclusive, julgado ilegal pelo Superior Tribunal de Justiça2.

Portanto, a Receita Federal busca artifício jurídico baseado num consequencialismo malandro para chamar de requisito aquilo que é apenas conceito inerente a uma subvenção para investimento. Em outras palavras: eu poderia desrespeitar o requisito de contabilizar os valores em reservas de lucros, perder o benefício do IRPJ e da CSLL, mas ainda assim estar diante de uma subvenção para investimento. Contudo, se o estímulo à expansão ou implantação de empreendimento econômico for desrespeitado, então eu não estarei diante da subvenção para investimento em si.

Neste ponto, o malandro poderia argumentar que a não observância deste preceito descaracterizaria, per se, a subvenção para investimento como tal, não havendo que se falar, portanto, em observância ou não de um requisito do artigo 30, pois a subvenção para investimento, em si, já não existiria. Ou seja: estaríamos diante de algo diverso de uma subvenção para investimento (por exemplo: uma subvenção para custeio), o que afastaria in totum a fruição do benefício de IRPJ e CSLL previsto no artigo 30 da lei federal 12.973/14 (apesar do entendimento diverso exarado pelo STJ por razões diversas).

Ocorre que a lei complementar 160/17, em seu artigo 9ª, trouxe um conceito objetivo de subvenção para investimento não atrelado a estímulo à expansão ou implantação de empreendimentos econômicos. Esta lei complementar qualificou objetivamente como subvenção para investimento os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao ICMS, e vedou a exigência de outros requisitos não previstos naquele artigo.

Ora, se estes incentivos de ICMS caracterizassem estímulo à expansão ou implantação de empreendimentos econômicos, já seriam subvenções para investimento per se, e não dependeriam da lei complementar 160/17 para usufruir do benefício de exclusão das bases do IRPJ e da CSLL. A redação antiga do artigo 30 da lei federal 12.973/14 já seria suficiente para resguardar o direito dos contribuintes.

Portanto, a ratio legis do artigo 9º da lei complementar 160/17 foi enquadrar todos os incentivos fiscais de ICMS como subvenção para investimento (critério objetivo), eliminando a celeuma em torno da comprovação de que tais incentivos teriam sido concedidos como estímulo à expansão ou implantação de empreendimentos econômicos. Em verdade, restou superada esta disputa. A partir da lei complementar 160/17 todos os incentivos de ICMS são objetivamente uma subvenção para investimento, a despeito de eles terem sido concedidos ou não como estímulo a empreendimentos econômicos.

O único requisito existente no artigo 30 da lei federal 12.973/14 é destinado à elegibilidade da subvenção ao benefício fiscal de exclusão das bases do IRPJ e da CSLL, e nada tem a ver com o conceito de subvenção para investimento. A contabilização dos incentivos de ICMS como reserva de lucros inacessível aos sócios e acionistas é mero requisito para tal exclusão, e não requisito para sua qualificação como subvenção para investimento.

Transcrevendo o último trecho do artigo do Luis Fernando Schuartz: "quanto ao malandro pra valer, ele de tudo isso sempre soube".

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1 SCHUARTZ, Luis Fernando, Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem, disponível clicando aqui (acessado em 2/3/21)

2 STJ, EREsp 1.517.492

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Bruno Henrique Coutinho de Aguiar

Bruno Henrique Coutinho de Aguiar

Advogado tributarista sócio do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.

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