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Uma revisitação do pragmatismo - Método da abdução

Este artigo propõe a revisitação da obra de Charles Sanders Peirce, especialmente a teoria da abdução, que é a construção de hipóteses explicativas para fatos surpreendentes e suas repercussões no Direito Penal.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Atualizado às 14:32

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. CHARLES PEIRCE (1839 - 1914) - TEORIA DA ABDUÇÃO

Charles Peirce é um dos percussores do pragmatismo, um método filosófico cuja máxima estabelece que o significado de um conceito (palavra, frase, texto) consiste no seu êxito prático, isto é, nas consequências práticas de sua aplicação. Para Peirce (1974, p. 18), não é possível ignorar as crenças, ao contrário, deve-se considerá-las como guia da ação. Nesse sentido diz: "Não há de duvidar que um homem agirá de acordo com sua crença tanto quanto esta tiver efeito prático".

Peirce (1974, p. 47-52) entende que "o conhecimento repousa sobre juízos perceptivos, e a verdade do juízo consiste na correção lógica das inferências". Vale dizer, o bem lógico mais fundamental consiste na correção do argumento. Mas, em que consiste a correção ou excelência de um argumento? Para responder a esta pergunta retorna às três espécies de raciocínios (métodos) aristotélicos: dedução, indução e abdução. Destaca que a abdução, ao contrário da dedução e da indução, é a única operação lógica a introduzir ideias novas.

Operação lógica é uma inferência, que consiste em afirmar a verdade de uma proposição em decorrência de sua ligação com outras já reconhecidas como verdadeiras. Nesse sentido, a inferência (abdutiva) estabelece que para um fato reconhecido como verdadeiro deverá ter uma hipótese explicativa também verdadeira.

Peirce considera a abdução o verdadeiro método para a criação de novas hipóteses explicativas. A abdução sugere o que algo pode ser. O objetivo é descobrir alguma coisa que ainda não conhecemos a partir de algo que já conhecemos. O primeiro momento desse processo é o da escolha de uma hipótese que possa servir para explicar determinados fatos empíricos.

Nessa trilha Peirce mostra que não é preciso ir além das observações cotidianas para encontrar diversos exemplos nos quais a percepção é abdutiva e interpretativa. Paulo Serra (1996) anota o seguinte exemplo de juízo perceptivo (fato observável) em um dia de sol: "Está a cair água do telhado". A partir desse juízo, várias inferências abdutivas (hipóteses explicativas) são possíveis, por exemplo: "Alguém está a jogar água no telhado" ou "A neve acumulada no telhado está a derreter" ou "A caixa d'água está a transbordar". Como se nota, a inferência se distingue do juízo perceptivo; enquanto a inferência admite sempre a possibilidade de ser negada para afirmarmos outra, no caso do juízo perceptivo não nos é possível conceber a sua negação. Fica evidente que o objetivo do raciocínio abdutivo é descobrir alguma coisa que ainda não conhecemos (hipótese explicativa) a partir daquilo que já conhecemos (fato, juízo perceptivo).

A abdução consiste, assim, na adoção provisória de uma hipótese que pode revelar seu desacordo com o fato se desacordo houver. Enfim, a abdução faz uma mera sugestão de que algo pode ser.

A lógica da abdução é uma lógica da verdade procurada que tem aplicação na prática jurídica. Os inquéritos e os processos movem-se no sentido de estabelecer hipóteses explicativas para fatos considerados surpreendentes.

Aliás, é o confronto entre hipóteses explicativas que justifica o contraditório jurídico. Há no processo no mínimo duas hipóteses explicativas em confronto para explicar um fato surpreendente que pode ser, por exemplo, o não cumprimento de uma obrigação. O juiz, para ser imparcial, não deve fundamentar sua decisão na hipótese falsa ou fantasiosa. A propósito, o "caso Lula" (apartamento no Guarujá), escandalizou a comunidade jurídica, especialmente os juristas mais famosos, porque o juiz Sérgio Moro decidiu com base em hipótese fantasiosa, portanto, sem nenhum amparo em prova que pudesse justificar as pretensões do Ministério Público. Hoje sabemos que o ex-juiz Sérgio Moro e os membros do Ministério Público, liderados por Deltan Dallagnol, atuavam com motivos ocultos e inconfessáveis.

A abdução sugere o que algo pode ser. Portanto, trata-se apenas de uma inferência hipotética. A hipótese não pode ser admitida se não der conta de explicar o fato, por isso mesmo a hipótese explicativa admite sempre a possibilidade de ser negada. A abdução parte sempre de um resultado (fato surpreendente) para uma regra (hipótese explicativa), funcionando o primeiro (água caindo do telhado) como signo da segunda (caixa d'água vazando ou neve derretendo, etc).

A abdução também é usada para interpretar indícios, vestígios etc. No entanto, essa interpretação (como qualquer hipótese explicativa) pode falhar. Enfim, toda abdução envolve um ato de interpretação, de atribuição de significado, que não tem o rigor formal da dedução nem o caráter de conformação experimental da indução.

A lógica da abdução é uma lógica da descoberta ou lógica da verdade procurada, motivo pelo qual é amplamente utilizada nos inquéritos policiais que pretendem estabelecer uma "verdade" a partir de indícios. Nesse sentido, por exemplo, o representante do Ministério Público do Estado de São Paulo, no "Caso Yoki", ao constatar que o laudo da perícia apontava que o esquartejamento do corpo da vítima apresentava diferentes técnicas de cortes (fato surpreendente), estabeleceu a hipótese explicativa segundo a qual a ré teria tido ajuda no esquartejamento e solicitou novas investigações. Na forma da abdução: "O fato surpreendente C (cortes com técnicas diferentes) é observado. Ora, se a hipótese explicativa A fosse verdade (mais de uma pessoa participou do esquartejamento), C seria um fato natural. Assim, há razão para suspeitar que A seja verdadeiro". Não se pode perder de vista, porém, que o Promotor está sugerindo uma hipótese apenas possível, um tipo de insight, algo apenas provável.

O pragmatismo filosófico não autoriza a elaboração de abduções que não possuem a mínima possibilidade de serem verificadas, ou que, partindo de indícios mínimos propõe hipóteses explicativas fantasiosas, como aconteceu no famoso caso do powerpoint sobre Lula apresentado pelo promotor Deltan Dallagnol. As abduções apressadas a partir de indícios que não são verificáveis incorrem em excessos interpretativos. A boa abdução deve ter uma hipótese explicativa capaz de explicar certos fatos e remover toda surpresa ou dúvida.

Além disso, o pragmatismo filosófico dedica especial atenção à relação entre os signos e seus usuários. O pragmatismo compreendeu que, para além das dimensões sintática e semântica, há uma dimensão contextual ou pragmática. O signo não é independente da sua utilização, portanto, há sempre a possibilidade da participação da ideologia na interpretação (uso) dos signos.

2. QUESTÃO IDEOLÓGICA

A dogmática jurídica, ao postular a neutralidade do intérprete do direito positivo, pretende neutralizar o aspecto ideológico da linguagem. Na perspectiva de Bakhtin (1999) é impossível realizar essa neutralização porque todo uso que se faz da linguagem é ideológico, portanto, os enunciados jurídicos, prescritivos ou descritivos, expressam uma posição ideológica. A ideologia deixa marcas nos enunciados.

Mikhail Bakhtin (1999, p. 25-32) anota que a língua é a realidade material específica da criação ideológica. Segundo ele, a ideologia não é algo exterior ao semiótico, mas intrínseco a ele. Isso significa que o domínio ideológico coincide com o domínio do signo, portanto, esses domínios são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. Nesse sentido, qualquer enunciado é sempre ideológico porque expressa sempre uma posição avaliativa. Não existe enunciado neutro (não ideológico), portanto, a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica.

Para Bakhtin (1999, p. 46), os signos são impregnados de valores axiológicos contraditórios porque o mesmo sistema linguístico é utilizado por classes sociais distintas. Disso decorre que o signo torna-se a arena onde se desenvolve a luta de classes. E, nesse embate, a classe social dominante tenta tirar do signo seu caráter plurivalente, ocultar seus traços ideológicos e transformá-lo em monovalente.

Juristas e sociólogos criticaram a conduta de ministros do STF no julgamento da ação penal 470, apelidada de "Mensalão". Sustentam que as condenações estão amparadas em indícios que não possibilitam a elaboração de hipóteses explicativas consistentes, que os ministros têm se deixado influenciar por suas próprias ideologias ou pelos interesses do mercado e da grande mídia, que as decisões são dadas com absoluta falta de método e critério. Segundo alguns, a ação 470 transpira mais engajamento do que credibilidade, as fundamentações suscitam dúvidas razoáveis sobre a lisura do processo. Eis algumas manifestações:

A - J. Carlos de Assis (Carta Maior, 30-09-2012) entende que na Ação 470 houve insultos demais e provas de menos. Segundo ele, não houve provas suficientes para dizer que houve compra ou venda de votos; que tenha havido recursos públicos envolvidos nos pagamentos a parlamentares; que José Dirceu e José Genoíno tenham chefiado uma quadrilha para realizar crimes financeiros ou de corrupção ativa.

B - Sepúlveda Pertence (Notícias UOL: 25-10-2012) entende que o domínio do fato é um primeiro indício do delito. Mas não dispensa a indagação do dolo com que tenha agido o partícipe, ainda que, teoricamente, tivesse ele domínio do fato. Não for assim, o Presidente da República acabaria culpado de todos os fatos de corrupção que inevitavelmente ocorrem em todos os governos do mundo.

C - Antonio Carlos Mariz de Oliveira (FSP 27-10-2012) observa que é da tradição do direito penal moderno a necessidade da certeza para a condenação. Mariz de Oliveira anota que para alguns ministros, nos crimes de difícil comprovação, o juiz não precisa de provas cabais, bastando indícios ou até a sua percepção pessoal para proferir uma condenação. Em outras palavras, permite-se que o magistrado julgue por "ouvir dizer", com base na verdade tida como sabida, mas não provada, neste caso estará julgando não com as provas.

D - Para Wanderley Guilherme dos Santos (Valor Econômico: 21-09-2012), a interpretação do domínio do fato é a espinha dorsal para a condenação sem provas. Segundo ele, o procurador e o ministro, paralelamente aos autos, construíram um enredo perverso que ligaria todos os ilícitos como se tudo fosse uma coisa só. Essa conexão seria o eixo em torno do qual giraria o seguinte raciocínio: quanto mais elevada for a posição do criminoso na hierarquia social, mais fácil seria a ocultação de provas. Nesse sentido, não havendo provas é forte o indício de que há o mando de uma autoridade. Isso implica ato para o momento em que não houver prova alguma e os juízes condenarem assim mesmo. Para Wanderley Guilherme dos Santos a Ação Penal 470 constituiu um julgamento de exceção.

E - Luiz Moreira (Carta Maior: 25-10-2012) afirma que na ação penal 470 não se considerou o direito penal e o direito constitucional do cidadão em ter sua conduta individualizada, saber exatamente qual é a acusação, saber quais são as provas que existem contra ele e ter a certeza de que o juiz não utiliza o mesmo método do acusador. Nesse processo, a individualização das condutas e a presunção de inocência foram substituídas por uma peça de ficção que exigiu que os acusados provassem sua inocência. Segundo Moreira, a inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre as partes de modo que se chegava a suspeita de que algo houvera ali. Como essa suspeita nunca se comprovou, atribuíram forma jurídica à suspeita, estabelecendo penas para as deduções.

Enfim, a ação penal 470 colocou em destaque algumas questões jurídicas que merecem ser aprofundadas, a saber: a) a neutralidade ou imparcialidade dos juízes; b) o uso de indícios como provas incontestes; c) o princípio da presunção de inocência; d) a elaboração de hipóteses explicativas fantasiosas para explicar determinados fatos; e) a extensão da teoria do domínio do fato na esfera penal; f) a sentença como ato de vontade do juiz; g) a influência da mídia sobre a vontade do juiz; f) a lógica da presunção da culpa, além de outras.

Tudo isso justifica uma releitura da obra de Charles Sanders Peirce, especialmente a teoria da abdução (construção de hipóteses explicativas para fatos surpreendentes) e suas repercussões no direito penal.

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ASSIS, J. Carlos. Revista Carta Maior. (2012).
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo. Hucitec. (1999).
MOREIRA, Luiz. Revista Carta Maior. (2012).
OLIVEIRA, Antonio Carlos Mariz de. Jornal Folha de São Paulo.(2012).
PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos. São Paulo. Abril Cultural. (1974).
PERTENCE, Sepúlveda. Universo Online - UOL. (2012).
SANTOS, Wanderley Guilherme. Valor Econômico. (2012).
SERRA, Paulo. Peirce e o signo como abdução. Universidade da Beira Interior. Covilhã. Portugal. (1996).

 

Jesus Henrique Peres

Jesus Henrique Peres

Mestrando em Direito na Faculdade de Direito do Sul de Minas - FDSM. Advogado. Membro do Grupo de Estudos Avançados GEA - IAZL. Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia ABJD.

Márcia Aparecida de Freitas

Márcia Aparecida de Freitas

Mestra em Direito no Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM. Advogada. Presidenta do Instituto dos Advogados da Zona Leste de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos Avançados GEA - IAZL.

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