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Afinal, a quais interesses serve a Petrobrás?

Como fundamentado neste artigo, acerta o presidente ao sinalizar que mudará a gestão da Petrobrás - mesmo que sem querer.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Atualizado às 17:06

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

A disputa na troca da gerência da empresa estatal trouxe à tona um velho debate que há anos divide a sociedade e os administrativista, qual seja o da identificação do interesse primordial na condução da Petrobrás. O presente artigo tenta contribuir com o debate.

Ao tardar da noite de sexta-feira (19/02), o presidente Jair Bolsonaro anunciou em uma de suas lives - destinada à comunicação direta com seus eleitores sem a interferência da imprensa e instrumento digital característico do chamado novo populismo1 - que a Petrobrás terá um novo presidente. O nome escolhido é o do general da reserva Joaquim Silva e Luna, diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional, que substituirá o atual presidente da empresa estatal, o economista liberal Roberto Castello Branco, após o término de seu mandato. Após o anúncio, a resposta do mercado foi instantânea: a Petrobrás perdeu quase R$ 100 bilhões em valor de mercado até segunda-feira (22/2), retomando parte do valor ao longo da semana, porém, com perdas ainda muito elevadas. Não que o mercado financeiro ache o indicado ao principal cargo da companhia incompetente ou desinformado, ou que tenha aversão à farda (observando que o então presidenciável Jair Bolsonaro obteve grande apoio deste segmento), mas sim porque paira na troca do comando um receio de que haja uma de mudança na política de preços da Petrobrás, a fim de baratear o custo final da gasolina e diesel e, consequentemente, diminuir o lucro dos acionistas.

A atual política de preços da Petrobrás começou a vigorar em 2016, com a indicação do economista liberal Pedro Parente para a presidência da empresa estatal. A nova política tinha (e tem) como base dois grandes núcleos: de um lado, a paridade com o mercado internacional (conhecido como PPI, política de paridade internacional) e, de outro, uma margem para remuneração dos riscos inerentes à operação da empresa, a exemplo da taxa de câmbio e dos preços sobre estadias em portos e lucro. Em suma, como premeditadamente já havia asseverado a Associação dos Engenheiros da Petrobrás2, a nova diretoria estabeleceu, à época, uma política na qual, doravante, os valores nominais nunca estariam abaixo do preço internacional: se a cotação do petróleo no mercado internacional estiver alta, também altos serão os preços finais.

Destarte, diante de todo a celeuma instaurada com a comunicação da mudança na gestão da empresa estatal, insurge-se uma velha questão que há décadas divide os administrativistas e as classes sociais como um todo: a quem serve a Petrobrás? E, mais do que isso, quais interesses devem prevalecer na gestão da empresa estatal? Tais questões são antes históricas do que momentâneas, porquanto dominaram o debate público na chamada República Populista (1946-1964) e, ainda hoje, são temas nacionalmente relevantes.

A fim de responder a questão, necessário é se debruçar quanto à história da companhia e, principalmente, perquirir-se sobre a natureza jurídica da empresa e seu fundamento legal. Criada pela lei 2.004/53, então sancionada pelo presidente Getúlio Vargas, a companhia Petróleo Brasil S/A (Petrobras) nasceu para exercer um monopólio sob o petróleo e outros hidrocarbonetos presentes no subsolo brasileiro (art. 1 e 2 da lei 2.004/53). Num contexto mais amplo de Guerra Fria, a disputa pelo destino do petróleo brasileiro iniciou-se em 1946 e dividiu a população em dois grandes grupos: um primeiro, pejorado de "entreguistas", defendiam a não monopolização do petróleo por parte do Estado, porque, em tese, travaria a economia privada nacional; e um segundo, apelidado de "nacionalistas", exortavam a existência de um interesse público endêmico na exploração e refinamento do petróleo, adeptos ao slogan "o petróleo é nosso".

Adianta-se que hoje a União não tem o monopólio "jurídico" do petróleo, este extinto em virtude da EC 9/95, o qual alterou o art. 177 da CRFB, e em decorrência da promulgação da lei 9.478/97, que revogou a lei 2.004/53. Porém, a Petrobrás ainda tem o monopólio de fato do petróleo, pois consegue monopolizar a oferta pelo seu tamanho e por possuir vantagens competitivas advindas do domínio da técnica da exploração e refino, bem como de prerrogativas consubstanciadas em legislação infraconstitucional, verbia gratia, a exclusividade na exploração do Pré-Sal (lei 12.351/10).

Em grande medida a constituição da Petrobrás como uma sociedade por ações, formatada hoje como uma sociedade de economia mista, conforme lei 9.478/97, tentou ponderar os interesses do mercado (i.e., o interesse dos acionistas minoritários) com o interesse público secundário (i.e., o interesse do Estado representando a população). Nota-se que a formação do conselho de administração Petrobrás é, até hoje, um reflexo de tais disputas políticas, eis que os membros do conselho de administração, formado por no mínimo 7 e, no máximo, 11 membros (situação atual)3, são indicados pela presidência da República, por acionistas minoritários e, em menor representação, pelos servidores da estatal.

Resumindo, o conflito entre o interesse dos acionistas minoritários e o interesse público na administração da empresa faz parte da própria conformação jurídica da Petrobrás. Nesse sentido, conforme rememora por Irene Nohara4, Bilac Pinto já havia previsto, ainda na década de 50, que o modelo de sociedade de economia mista possuía uma contradição interna quase que insuperável, pois tentava conciliar interesses que tendem ao antagonismo. Previu o autor, ainda, que haveria um declínio na utilização de tal formatação jurídicas para empresas estatais a longo prazo, o que não ocorreu com a Petrobrás, ao menos até o presente momento. Assim, cabe indagar qual interesse deve prevalecer em situações drásticas de aumento do preço dos combustíveis fosseis no mercado internacional: o interesse no aumento no lucro das ações, corroborado pela atual política de paridade internacional, ou o interesse público, qual seja o dos administrados em diminuir o preço dos combustíveis, o que, em larga medida, também traz ganhos macroeconômicos, já que arrefece a inflação que tem a gasolina como grande variante.

A resposta à perquirição passa, necessariamente, por uma análise constitucional da fundamentação da intervenção econômica do Estado no âmbito econômico, o qual justifica a existência de empresas estatais. Preliminarmente, conforme recente obra lançada por Virgílio Afonso da Silva, concordando ou não, é a CF/88 uma constituição dirigente, que "tem um objetivo mais amplo e ambiciosos do que apenas proteger liberdades e definir as regras básicas de organização estatal"5, ou, em outras palavras, que há um desiderato explícito nas razões constitucionais em mudar o status quo da sociedade, o que engloba a distribuição dos recursos e a sua ciência: a economia. Este é o motivo pelo qual há um título específico na Constituição destinado à ordem econômica e financeira do país e, mais do que isso, um artigo que regulamenta quando e como se dá a exploração direta de atividade econômica pelo Estado: o art. 173 da CRFB.

Conforme ensinamentos de Gilberto Bercovici6, não deve prosperar os argumentos daqueles que identificam no art. 173 da CRFB uma referência ao princípio da "subsidiariedade". Em suma, prega tal princípio que a atuação do Estado no âmbito econômico deve ser suplementar ao mercado, ou seja, só pode existir quando o mercado não possa fazer ou não queira determinado aspecto econômico. Caso fosse essa a interpretação dominante do artigo, não haveria a necessidade da PEC 32/2020 (reforma administrativa) introduzi-lo no caput do art. 37 da CRFB. A bem da verdade - e eis o ponto fulcral deste excerto - a melhor interpretação ao art. 173 é a adução de que em determinadas áreas da economia, por força da deliberação legislativa, deve o Estado se imiscuir, coordenando e/ou intervindo na atividade de distribuição ou exploração de bens, porque se objetiviza, primeiramente, o interesse coletivo ou a segurança nacional. Este é o caso de todo o ramo e cadeia produtiva que envolve a atividade petrolífera.

Por conseguinte, em que pese a existência de um interesse gerencial privado na administração da empresa estatal, típico da formatação de uma sociedade de economia mista, torna-se evidente que o interesse público deve prevalecer na administração da Petrobrás, conquanto constitucionalmente alicerçado no art. 173 da CRFB; em outros termos, é a Petrobrás uma sociedade de economia mista exatamente porque o seu fim visa o interesse coletivo, sua razão primária de sua existência. Outrossim, o Estado é acionista majoritário da companhia e detentor de prerrogativas por conta do interesse público, e não se olvida o seu pertencimento à administração pública indireta pela sua gerência de direito privado e forma de sociedade anônima. Dessa forma, conclui-se que a de política de paridade internacional, o qual teme o mercado financeiro ser revista pelo General Joaquim Silva e Luna, é atentatória aos fins da companhia e, ao fim e ao cabo, aos interesses da maioria, a quem verdadeiramente serve a Petrobrás. Isso não porque preza pelo interesse dos acionistas minoritários - que, como repito, existe e faz parte das sociedades de economia mista - mas sim porque sacrifica demasiadamente o interesse público, elevando a inflação e corroendo os salários dos administrados, além de prejudicar a segurança nacional e a higidez da atividade econômica.

Consumada ou não a mudança na direção da empresa estatal, não se deve enxergar este artigo como uma congratulação ao presidente pelas suas ações, até porque o seu objetivo na troca de comando da Petrobrás é meramente eleitoreiro, qual seja o de manter o apoio de uma das categorias que o alavancaram ao Palácio do Planalto: os caminhoneiros. Do contrário, i.e., se fosse um árduo defensor do interesse público, que tem como uma das suas facetas a intervenção do Estado na economia, não teria entregado ao Congresso nova medida provisória para privatização da Eletrobrás7, crucial para a integração nacional. Contudo, como fundamentado neste artigo, acerta o presidente ao sinalizar que mudará a gestão da Petrobrás. E até o pior dos atiradores - ou pior dos paraquedistas - às vezes acerta o alvo... mesmo que sem querer.

__________

1- ORTELLADO, Pablo. Um populista em ascensão. Disponível aqui. . Acesso em: 25/2/21.

2- Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET). Editorial: Política de preços de Temer e Parente é "America First!". Disponível aqui. Acesso em: 25/2/21.

3- Folha de São Paulo. Entenda como funciona o conselho da Petrobras que vai decidir o comando da estatal. Disponível aqui. Acesso em: 25/2/21.

4- NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 642.

5- SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021. P. 90.

6- BERCOVICI, Gilberto. A administração pública dos cupons. Acesso em: 25/02/2021.

7- AMATO, Fábio. Privatização da Eletrobras busca mais reduzir tarifas que arrecadar, diz secretário de Energia. Disponível aqui. . Acesso em: 25/02/2021.

Leonardo Soares Brito

Leonardo Soares Brito

Discente de Direito da Universidade Federal do Paraná e membro do Centro de Estudos da Constituição - CCONS/UFPR.

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