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Sistema de patentes e monopólio de fato: Quem é realmente prejudicado pela demora do INPI?

A demora do INPI causa grandes prejuízos ao Estado, aos consumidores e à concorrência. No entanto, contraditoriamente, há quem defenda uma compensação aos titulares das patentes por esse atraso. Essa é uma das principais questões debatidas no âmbito da ADI 5529.

terça-feira, 9 de março de 2021

Atualizado às 10:03

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Muito se tem discutido sobre os efeitos negativos da demora do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em analisar os pedidos de patente, especialmente em relação aos possíveis detentores de privilégios patentários. No âmbito da ADI 5529, por exemplo, há quem defenda que, caso o parágrafo único do art. 40 da Lei da Propriedade Industrial (LPI) não existisse, o titular da patente teria o prazo de exploração do seu monopólio indevidamente reduzido ou, até mesmo, eliminado.

Por trás desse raciocínio, parece haver um pressuposto equivocado: o monopólio patentário somente se iniciaria a partir da expedição da carta-patente. Os defensores dessa tese argumentam que, antes da concessão da patente, a invenção estaria desprotegida e que o depositante teria que aguardar a decisão do INPI para, enfim, usufruir de seus privilégios.

No entanto, não é bem assim que as coisas funcionam. Antes mesmo de gozar do monopólio de direito concedido pelo Estado, o titular da patente usufrui de um monopólio de fato durante todo o período de tramitação do seu pedido no INPI. Este monopólio se deve a uma série de fatores que restringem a entrada de concorrentes no mercado, o que, na prática, faz com que o depositante de um pedido de patente seja o único a oferecer um determinado produto.

Uma das restrições mais severas está prevista no art. 44 da LPI, segundo o qual o titular da patente tem o direito de obter uma indenização retroativa pela exploração indevida de sua invenção, inclusive durante o período anterior à concessão da exclusividade - independentemente de deslealdade, dolo ou culpa do infrator. Ou seja, ainda que antes da concessão haja apenas uma expectativa de direito, a invenção não se encontra desprotegida, já que a legislação brasileira impõe duríssimas restrições retroativas.1

Sem fazer qualquer distinção entre a violação ocorrida antes ou depois da expedição da carta-patente, a legislação brasileira estabeleceu uma das formas mais rigorosas para se apurar o valor dessa indenização, sendo extremamente favorável ao titular da patente. Chaves, Vieira, Dorneles e Vianna,2 em estudo que se debruçou sobre o tema do monopólio de fato, afirmam que a legislação brasileira "supera em muito a indenização adequada, prevê em realidade uma compensação total de todos os danos, além de perdas e danos e lucros cessantes fixados no critério mais benéfico em prol do titular da patente".

Em um mercado em que haja pedidos de patente pendentes, essa é uma conjuntura que impõe riscos demasiado altos para novos entrantes. Assim, destoando da experiência de outros países e indo muito além do que é exigido pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, em inglês), da Organização Mundial do Comércio (OMC), a forma de se definir o quantum indenizatório escolhida pela LPI é, portanto, uma barreira quase intransponível para a concorrência.

Aproveitando-se desse arcabouço jurídico favorável, é muito comum que as empresas abusem de suas prerrogativas e depositem vários pedidos de patente completamente infundados ou que apresentam mudanças insignificantes em tecnologias já existentes - prática conhecida como evergreening. Afinal, mesmo que esses pedidos venham a ser futuramente abandonados, arquivados ou indeferidos, somente o período em que eles ficaram tramitando já foi o suficiente para afastar potenciais competidores. Sem contar, é claro, que parte desses pedidos acaba sendo deferida - mesmo que indevidamente, já que não cumpre com os requisitos legais de patenteabilidade - e resultando em um número enorme de patentes frívolas, capazes de bloquear a concorrência por décadas.

As drásticas consequências desse cenário foram eficientemente apreendidas no estudo já citado acima. Ao analisarem uma amostra de 74 medicamentos em situação de "exclusividade pelo lado da oferta" - isto é, que possuem apenas um fornecedor no Brasil -, as autoras descobriram que 33 (44,59%) desses princípios ativos tinham, à época, apenas pedidos pendentes relacionados a eles.3

Ou seja, apesar de não haver patentes concedidas para quase metade dos medicamentos analisados, eles se encontravam em situação de exclusividade pelo lado da oferta. Isto indica que a mera existência de pedidos pendentes pode ter sido suficiente para desincentivar a entrada de concorrentes no mercado.

Entre os medicamentos analisados pelo estudo, chama a atenção o caso do antirretroviral dolutegravir, utilizado no tratamento do HIV. Embora houvesse apenas pedidos de patentes relacionados a este medicamento no Brasil, em 2017, ele era adquirido com exclusividade da multinacional GlaxoSmithKline (GSK). Via inexigibilidade de licitação, o Estado brasileiro pagava R$ 4,86 por comprimido, enquanto a versão genérica disponível no mercado internacional custava cerca de R$ 0,52 - um valor quase 90% mais baixo.[4]

Com efeito, a ideia de que a demora do INPI pode prejudicar os depositantes de pedidos de patentes ou mesmo os titulares de privilégios patentários se assenta sobre bases muito frágeis. Na verdade, os fatos indicam que esse atraso pode gerar benefícios diretos a esse grupo de indivíduos - os quais podem se ver incentivados, até mesmo, a provocar a demora da autarquia.5 Não é demais lembrar que o backlog de pedidos pendentes de análise pelo INPI é também consequência do excesso de pedidos sem mérito feitos pelos próprios depositantes.

Sendo assim, é preciso perguntar: quem são os verdadeiros prejudicados pela demora do INPI?

De imediato, percebe-se que, graças ao cenário de incertezacausado pela associação entre o art. 44 da LPI (indenização retroativa) e o evergreening, a demora do INPI causa grande prejuízo para potenciais concorrentes. Enquanto o pedido de patente está em tramitação na autarquia, em detrimento dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, atores públicos e privados se veem indeterminadamente impedidos de explorar invenções que poderiam estar em domínio público.

A indeterminação não se dá apenas durante o período de pendência do pedido, mas também interfere com o planejamento para produção futura, uma vez que, sem saber a data de concessão da carta-patente, não é possível saber a data de expiração do privilégio patentário até que ele seja concedido. Diferentemente da regra geral do art. 40 caput da LPI, que determina que a patente tenha validade de 20 anos a partir da data de depósito do pedido, o parágrafo único determina a contagem do prazo de 10 anos de privilégio a partir da data de concessão.

Consequentemente, encontrando-se reféns de preços monopolistas, o Estado, os consumidores e a população brasileira como um todo também são bastante prejudicados pela demora do INPI. Em prejuízo do direito à saúde e de outros direitos fundamentais, por exemplo, a comercialização de tecnologias de saúde a preços exorbitantes coloca em risco o bem estar e a vida de milhões de pessoas.

Para se ter uma ideia, de acordo com um estudo realizado pelo Grupo de Economia da Inovação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenado pelo professora Julia Paranhos, entre os anos 2014 e 2018, não fosse a extensão das patentes de apenas 9 medicamentos, o poder público poderia ter economizado entre R$ 1,2 bilhão e R$ 3,9 bilhões nos gastos do SUS.7

Mesmo assim, por incrível que pareça, há quem defenda que, em razão da demora do INPI, o Estado brasileiro deve garantir uma compensação aos próprios titulares das patentes. E, como se não fosse suficientemente absurdo, para eles, essa compensação deve ser feita através da ampliação do período de monopólio - tal como está previsto, sem qualquer paralelo internacional,8-9 no parágrafo único do art. 40 da LPI.

Baseando-se em uma ideia vaga de incentivo à inovação e na presunção injustificada de prejuízos, os defensores deste dispositivo advogam pela ampliação automática e indeterminada de seus próprios privilégios. Assim, para além dos prejuízos causados aos concorrentes, ao Estado, aos consumidores e a toda a sociedade brasileira durante o período de monopólio de fato, reivindicam encargos ainda mais severos para a população - os quais se intensificam consideravelmente em tempos de pandemia.

Em suma, o desafio da construção de um sistema de pesquisa, desenvolvimento e inovação em que novas invenções estejam, de fato, a serviço do bem público passa necessariamente por um equilíbrio delicado entre interesses diversos. E, a forma como o sistema patentário está estruturado hoje é demonstração flagrante de uma situação de desequilíbrio.

Tudo isto está em discussão no âmbito da ADI 5529, que questiona a constitucionalidade do parágrafo único do art. 40 da LPI. Em pauta para julgamento em abril deste ano, o caso recebeu diversas contribuições da sociedade civil como amigos da corte e seu resultado poderá representar um ponto de inflexão na dinâmica da propriedade intelectual no Brasil.

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1- BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 1510. Tomo II - Patentes.

2- CHAVES, Gabriela Costa et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz, ENSP, 2018. p. 88. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

3- CHAVES, Gabriela Costa et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz, ENSP, 2018. p. 88. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

4- CHAVES, Gabriela Costa et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz, ENSP, 2018. p. 88. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

5- LONDON ECONOMICS. Patent Backlogs and Mutual Recognition: an economic study by London Economics. London: London Economics, 2010. p. 39. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

6- BRASIL. Centro de Estudos e Debates Estratégicos. Câmara dos Deputados. A revisão da Lei de patentes: inovação em prol da competitividade nacional. Brasília: Câmara dos Deputados, 2013. p. 228. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

7- PARANHOS, Julia; MERCADANTE, Eduardo; HASENCLEVER, Lia. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública (CSP), Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2020.

8- SALOMÃO FILHO, Calixto et al. A Inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único, da lei de propriedade industrial sob uma perspectiva comparada. São Paulo: Grupo Direito e Pobreza, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

9- BARBOSA, Denis Borges. A inexplicável política pública por trás do parágrafo único do art. 40 da Lei de Propriedade Industrial. 2013. p. 23. Disponível aqui. Acesso em: 05 mar. 2021.

Walter Britto Gaspar

Walter Britto Gaspar

Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (CTS/FGV).

Marcela Vieira

Marcela Vieira

Advogada especialista em Direito da Propriedade Intelectual e Novas Tecnologias da Informação pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e mestre em Política e Gestão em Saúde pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da Knowledge Network for Innovation and Access to Medicines do Global Health Centre do Graduate Institute of Geneva.

Pedro Villardi

Pedro Villardi

Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Alan Rossi Silva

Alan Rossi Silva

Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).

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