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O processo de seleção de "inimigos" e suas manifestações no direito penal de exceção

O presente artigo propõe-se a analisar a teoria do Direito Penal do Inimigo, apresentando a dicotomia Cidadão versus Inimigos e a relação dessa teoria com a concepção do Estado de Exceção permanente.

terça-feira, 9 de março de 2021

Atualizado às 13:11

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

1. ANTECEDENTES

Durante a evolução dos estudos da dogmática penal, algumas teorias surgiram na tentativa de compreender os mais diversos institutos do Direito Penal e o seu desenvolvimento histórico. Verificou-se nesses estudos a existência de concepções clássicas, que, em síntese, entendiam o crime como uma manifestação exclusiva do livre arbítrio do indivíduo e da sua escolha racional; concepções positivas, que baseavam seus entendimentos em conceitos advindos de ciências naturais, chegando, inclusive, em uma de suas fases, a entender que o criminoso tinha pré-disposições genéticas que o tornavam um agente delituoso em potencial e que por isso, o sujeito criminoso seria diferente daqueles considerados "normais"; e concepções mais direcionadas ao entendimento do crime como um fenômeno jurídico, sem qualquer influência de outros saberes que não fossem exclusivamente técnicos-jurídicos. Nesse sentido, o crime estaria relacionado a uma construção social discursiva operada por pessoas ou grupos que detinha um poder de definição.

Dentro desse contexto, desenvolveram-se, ainda, sistemas penais que tinham como finalidade básica compreender, de um modo amplo e geral, a estrutura dos principais institutos do direito penal e delinear os caminhos seguidos por eles. Foi dentro dessa perspectiva que se desenvolveu o que, para alguns doutrinadores, seria um movimento e para outros seria uma teoria, denominada de Funcionalismo.

O funcionalismo, como o próprio nome sugere, tem como propósito responder a grande indagação acerca da finalidade do Direito Penal, através da análise de qual seria a sua função, ou seja, parte-se da indagação "para que serve o Direito Penal, qual sua finalidade na democracia contemporânea?" e não mais "o que é o Direito Penal?".

Para os autores defensores do funcionalismo, portanto, o conceito de crime, a figura do criminoso e o próprio conceito de pena deveriam ser lidos à luz da função do Direito Penal. Assim, identificando-se tal função, poderiam ser delineados os contornos elementares desses institutos essenciais ao entendimento da ciência do Direito Penal, buscando um entendimento pautado na realidade concreta, não se limitando a meras abstrações, permitindo um diálogo entre teoria e práxis, Direito Penal e Política Criminal.

Em continuidade, para uma melhor compreensão sobre essa teoria, sabe-se que o Funcionalismo como movimento pode ser compreendido melhor sob duas vertentes, quais sejam, o funcionalismo teleológico ou moderado e o funcionalismo sistêmico ou radical. A primeira vertente, que teve como maior expoente Claus Roxin, compreendia que a função do Direito Penal na democracia seria a de proteção dos bens jurídicos considerados essenciais, de forma crime poderia ser entendido como a violação dos bens jurídicos mais importantes, aparecendo o direito penal, assim, como última ratio; o criminoso, por sua vez, seria aquele indivíduo responsável por praticar essa conduta violadora e a pena seria uma resposta estatal ao ato de violar os bens jurídicos essenciais.

Já para a segunda vertente, defendida pelo autor alemão Gunther Jakobs e diretamente influenciada pela Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann, a função do Direito Penal seria assegurar a vigência e o império da norma e, consequentemente, do sistema. Não teria, portanto, relação direta com a violação de bens jurídicos essenciais, e sim, com aquelas condutas ou comportamentos que, de alguma forma, pudessem colocar em risco a vigência e a normalidade do sistema.

A função da pena seria assumir, essencialmente, um caráter de prevenção geral positivo e constituiria uma necessidade do sistema em estabilizar os anseios da sociedade. Depreende-se que, para Jakobs, a pena não se destinaria ao infrator, como forma de puni-lo ou como forma de evitar a prática de novos delitos (caráter retributivo); pelo contrário, destinar-se-ia aos membros da coletividade enquanto potenciais vítimas, por meio da valoração positiva da fidelidade ao direito.

Com a adoção da prevenção geral positiva em detrimento da prevenção especial, ocorre a legitimação de uma postura mais intimidatória ou, até mesmo, mais vingativa, uma vez que se baseia em mecanismos de proteção da coletividade em detrimento dos indivíduos, insculpidos não no medo da cominação de uma pena, mas na eventual tranquilidade advinda do regular andamento do sistema, que mesmo tendo sido afetado pela prática de um delito, voltou à normalidade pela aplicação da reprimenda.

Além de tais concepções teóricas, algumas mudanças estruturais podem ser observadas na atual conjuntura do Direito Penal como precedentes de desenvolvimento do Direito Penal do Inimigo. Nesse contexto, pode-se destacar, inicialmente, a construção dos modelos societários atuais, baseados em uma maior intensificação das situações de risco e na tutela de bens jurídicos que outrora não estavam inseridos no rol de proteção do Direito Penal.

Para Manuel Cancio Meliá (2007), tais mudanças estruturais constituiriam duas abordagens essenciais, as quais ele denomina de "direito penal simbólico" e o "ressurgir do punitivismo". Para o autor, a discussão direta desses dois fenômenos, proporciona uma visão mais completa e efetiva dessas novas direções do Direito Penal.

Sob a perspectiva do Direito Penal simbólico, observa-se a sua manifestação prática através da falsa sensação de tranquilidade embasada pela criação de novos tipos penais que são muitas vezes utilizados para fazer valer determinados anseios sociais.

Assim, verifica-se que, diante do apelo midiático e da crescente sensação de insegurança por parte da coletividade, o Legislativo, utiliza sua função típica como meio de criar novos tipos penais ou como forma de enrijecer as reprimendas já postas e, com isso, repassar uma ilusória impressão de controle, quando, na verdade, o que vem observando-se é, justamente, um maior agravamento das bases do problema, gerando um verdadeiro efeito paradoxal.

Ademais, como, na prática, tais medidas não se mostram eficazes, além da criação de novos tipos e do aumento das penas, há uma medida ainda mais gravosa, qual seja, o desenvolvimento de um Direito Penal com a finalidade identificar um certo tipo de autor, em detrimento do fato.

Observa-se, ainda, que o simbolismo está intimamente ligado ao ressurgimento do punitivismo, estando ambos intimamente interligados. O punitivismo surge como uma ideia de que é cada vez mais necessário o aumento quantitativo das punições, como uma forma de resolver os conflitos que se impõem em nossa sociedade contemporânea.

Dentro dessa linha de raciocínio, tomando como base as proposições de Jakobs, no sentido de privilegiar o respeito à normalidade do sistema e a aplicação de uma prevenção geral positiva, somadas às diversas modificações concretas sofridas pelo Direito Penal ao longo dos anos, findou-se por constituir as bases para o desenvolvimento da teoria do Direito Penal do Inimigo.

Nesse sentido, sob a perspectiva de Meliá (2007), interpretando os conceitos desenvolvidos por Jakobs, constata-se que o Direito Penal, sob o enfoque da proteção da sociedade contra os inimigos, tem como objetivo precípuo desenvolver uma visão prospectiva do ordenamento jurídico, ou seja, utilizando-se como ponto de referência um fato futuro que poderá vir a violar um bem juridicamente protegido pelo Direito Penal. Tal perspectiva é totalmente oposta ao que é buscado habitualmente, na qual se busca adotar uma perspectiva retrospectiva, que tem como ponto de referência um ato já cometido e sobre o qual recairá uma sanção penal. Assim, o Direito Penal deixa de ser entendido como última ratio e passa a manifestar-se como a primeira linha de atuação do Estado.

2. A DICOTOMIA CIDADÃO VERSUS INIMIGO

Como exposto, verifica-se que a partir das lições desenvolvidas por Jakobs, de fundamental proteção da normalidade do sistema e da necessidade de implementação de uma segurança geral, surgem os elementos essenciais para o desenvolvimento do conceito de Direito Penal do Inimigo, surgindo como um meio de "cuidar" daquele considerado infiel ao sistema.

Esse indivíduo infiel ao sistema, seria taxado como "inimigo", ou seja, aquele indivíduo que se desvia das normas postas e é incapaz de dar garantias suficientes de que não colocará a coletividade em situação de risco. Assim, em virtude dessa situação de ameaça, a intervenção do Estado contra esses inimigos mostra-se necessária e urgente.

Para Jakobs (2007), o desenvolvimento dessa figura e as medidas intervencionistas por parte do Estado seriam essenciais, uma vez que aquele indivíduo que se desvia do que a norma e o sistema impõem, é destituído da sua condição de pessoa e, diante do risco que representa, deve ter a sua condição de cidadão negada, devendo ser combatido como um verdadeiro inimigo.

O autor alemão afirma, ainda, que, em decorrência disso, haveria nitidamente a necessária separação entre dois tipos básicos de indivíduos: os cidadãos e os inimigos, o que levaria, consequentemente, à existência de dois tipos de Direito Penal.

Haveria, dessa forma, o Direito Penal do cidadão, que seria destinado àqueles indivíduos que cumprem as normas e não violam os tipos penais incriminadores, sendo, portanto, merecedores dos títulos de cidadania e civilismo. Além de abarcar os cidadãos, esse Direito Penal destinar-se-ia, ainda àqueles indivíduos que viessem a cometer pequenos deslizes de natureza leve, os quais não seriam suficientes para retirar o seu status de cidadão.

O Direito Penal do Inimigo, em contrapartida, seria direcionado aos delinquentes, ou seja, aqueles indivíduos que desrespeitam as normas e findam por efetivamente afetar a ordem social e violar as regras do sistema ou, ainda, aqueles que possivelmente poderão vir a cometer delitos graves, ou seja, delinquentes em potencial, bem como, podemos ver uma manifestação específica em nosso caso, do inimigo como sendo o corrupto, ou o líder do partido opositor.

Assim, tomando como base essas duas realidades antagônicas existentes, o Direito somente regularia as relações entre cidadãos, sendo estes os que gozariam de toda proteção trazida pelos direitos fundamentais. Os "inimigos", por sua vez, estariam excluídos dessa relação de proteção, pelo fato de não serem titulares de direitos e deveres. Em síntese, apenas a relação entre cidadão poderia ser considerada jurídica, a relação do inimigo, lado outro, não poderia ser considerada do mesmo modo, por estar baseada principalmente na coação.

No entanto, a prática demonstra que a dicotomia Cidadão versus Inimigo põe em risco a própria razão racionalista de ser do Estado Constitucional Democrático de Direito, fundamentada na existência de um conjunto composto pelo povo, bem como de uma gama de direitos e garantias fundamentais universais que servem de anteparo ao poder do Leviatã, e não na divisão maniqueísta entre "amigos" e "inimigos".

Dessa forma, à luz do nosso ordenamento jurídico, seria contraditório (e inconstitucional) legitimar a adoção desses conceitos, visto que, em um Estado Democrático de Direito, o poder emana do povo, não podendo ser utilizado para segregar grupos, privilegiando, assim, um determinado seguimento e perseguindo indiscriminadamente outro, como podemos extrair da contemporânea Operação Spoofing.

O Direito Penal serve, neste sentido, justamente, para racionalizar e impor limites ao poder. Este poder, por outro lado, somente pode manifestar-se através do devido processo legal. Os meios servem para justificar os fins, e jamais o contrário. Entender de forma contrária é legitimar o Estado de Exceção permanente, nos termos expostos por Giorgio Agamben.

Nesse ponto, importante mencionar que há uma noção básica de que o Estado de Exceção Legal ou Constitucional, que se exterioriza através de uma supressão momentânea da ordem democrática em situações expressamente previstas no texto constitucional de determinado país, prevendo hipóteses excepcionais, inesperadas e imprevisíveis em que serão autorizadas as supressões de direitos fundamentais dos cidadãos, sob o fundamento de salvaguardar o Estado e a ordem vigente. No entanto, conforme entendimento do filósofo italiano Agamben, esse instituto vai além de um simples instrumento jurídico previsto no ordenamento para normatizar e regular determinadas situações de anormalidades temporárias enfrentadas pela sociedade.

Observa-se que a visão de que o instituto é um mero dispositivo legal a ser aplicado em contextos de crise nos é apresentada como exclusiva, e revela um interesse em mascarar, eventualmente, sua real aplicação e possível razão de ser nas democracias atuais. Neste sentido, para Agamben (2004), constata-se que, na realidade, a utilização dessa medida excepcional tem se mostrado cada vez mais corriqueira no contexto político, confirmando a sua adoção como paradigma de governo.

Assim, para o mencionado autor, o Estado de Exceção deixa de ser apenas uma medida excepcional e passa a ser constituído como um paradigma de governo, dado que deixou de ser utilizado mediante a estrita observância de seus requisitos específicos, quais sejam, a absoluta necessidade e o caráter temporário, para ser utilizado, em verdade, como regra na atuação política dos governos.

Feitas tais considerações elementares, parece-nos ser evidente que há uma relação entre o pensamento filosófico que justifica o Direito Penal do Inimigo com o pensamento de Agamben sobre a manifestação contemporânea do Estado de Exceção, podendo aquele ser compreendido como uma materialização do Estado de Exceção como paradigma de governo, uma vez que não apenas favorece, como também legitima a supressão e relativização de direitos e garantias constitucionais, despersonalizando o indivíduo e fundamentando a aplicação de um direito penal seletivo e discriminatório, em detrimento do suposto inimigo.

Observa-se que o Direito Penal do Inimigo se utiliza da imposição de medo, terror e vingança, colocando em voga um sentimento de insegurança coletivo responsável por legitimar e disseminar o entendimento segundo o qual a sociedade em geral está correndo riscos e, em virtude disso, é necessário que os responsáveis, ou seja, os "inimigos", sejam identificados e extintos para garantir o bem geral.

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AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

BARATTA, Alessando. Principios del derecho penal mínimo (para uma teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal), Bueno Aires, Argentina: Revista "doutrina Penal", 1987.

JAKOBS, Gunter. CANCIO MELIÁ, Manuel. O direito penal do inimigo: noções e críticas. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A Terceira Velocidade do Direito Penal: o 'Direito Penal do Inimigo'. Disponível aqui. Acesso em: 13 mar.2018.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo do direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2007.

Clara Skarlleth Lopes de Araújo

Clara Skarlleth Lopes de Araújo

Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande. Pós-Graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri. Pós-Graduanda em Ciências Criminais pelo CERS. Foi professora de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri.

José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

Advogado. Juiz Leigo do TJCE. Pós-Graduando em Direito Constitucional pela ABDConst. Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Interpretação e Decisão Judicial (NUPID).

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