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Não há interpretação jurídica que retire da lei de segurança nacional o seu ranço autoritário

O presente artigo de opinião visa demonstrar que os atuais usos da lei de segurança nacional, mesmo que bem-intencionados, não obstam a ratio legis autoritárias de seus tipos penais.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Atualizado às 10:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A prisão em flagrante delito do deputado bolsonarista Daniel Silveira por decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes (inquérito 4.781), ratificada por unanimidade pelo Plenário do STF, reanimou uma disputa que marca, com altos e baixos, a relação entre o poder executivo e o poder judiciário desde 2018. De um lado, tece o chefe de Estado críticas quase que semanais ao STF, afirmando que se encontra impedido de governar por decisões da corte. Não por acaso, participou o presidente em 2020 de manifestações pró Ato AI-51 , o qual, como bem se sabe, foi o ato de exceção responsável por aprofundar o arbítrio da ditadura militar e cassar os então ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, todos do STF. Por outra via, o supremo exorta que atua conforme a CRFB e exerce o seu papel contramajoritário nos limites da competência interpretativa delegada pela constituição ao órgão (art. 102, caput, CRFB), defendendo o regime democrático de eventuais empreitadas autoritárias dos outros poderes e de extremistas. Eis a justificativa, por exemplo, para a peculiar instauração ex officio do Inquérito dos atos antidemocráticos (INQ 4.781).

A prisão do deputado Daniel Silveira em flagrante delito (arts. 301 a 303 do Código de Processo Penal) por crime inafiançável, única possibilidade de prisão de membros do congresso nacional, conforme art. 53, § 2 da CRFB, foi questionada pelos mais diversos penalistas e processualista penais. Cezar Roberto Bitencourt2, por exemplo, afirmou que caberia reflexão crítica quanto à fundamentação para a prisão cautelar do deputado, eis que o Min. Alexandre de Moraes fundamentou o ato por meio do criticado flagrante delito continuado, aduzindo que a disponibilização do vídeo em que se pratica um tipo delituoso na internet consuma o flagrante no tempo. O problema do uso (e abuso) de tal prisão processual para crimes continuados é evidente: abre-se um espaço para enquadramento penal demasiadamente grande, o que atenta à própria razão da tipicidade penal, a saber o de limitar o poder punitivo do Estado.

Todavia, não é objeto deste breve artigo a questão da flagrância ou não do crime. Objetiviza, na verdade, a análise de uma segunda grande crítica realizada à decisão que prendeu o deputado, isto é, aquela que foca no aspecto material da decisão: o uso dos tipos penais de incitação à crime, calúnia e difamação contra ministros do STF, assim como o de grave ameaça ao Estado de direito, todos postos na famigerada lei de segurança nacional (arts. 17, 18, 22, incisos I e IV, art. 23, incisos I, II e IV e art. 26). A lei de segurança nacional (lei 7.170/83) foi sancionada pelo último presidente da ditadura militar, João Figueiredo, o qual revogou, expressamente, a antiga lei que tratava sobre a matéria (lei 6.620/78). Do ponto de vista penal, a lei de segurança nacional de 1983 coloca o Estado (essencialmente o território e a soberania) e os seus respectivos gestores em cada um dos poderes (presidente da República, ministros do STF, presidente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e outros) em dois planos: ora como bem jurídico a ser defendido, ora como possíveis vítimas de crimes.

Em que pese o ano de 1983 (ano de promulgação da lei) já se enquadrar no contexto de abertura do país à democracia, rememorando que foi apresentado em março daquele ano a Proposta de emenda constitucional Dante de Oliveira a fim de restaurar as eleições diretas para presidente da República, não se pode olvidar que o Brasil ainda era uma ditadura - mesmo que fingisse não ser. Ironicamente, o art. 1, II da lei de segurança nacional prevê que os seus dispositivos versam sobre crimes contra "o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito"; ocorre, porém, que a própria lei foi sancionada num contexto de ditadura militar, momento em que inexistia Estado de Direito e regime democrático no Brasil. Ademais, a aparência de legislação democrática e penalmente correta se desfaz quando da leitura dos seus dispositivos, a exemplo os contidos no título III "Da Competência, do Processo e das normas Especiais de Procedimentos", o qual estabelece a competência da Justiça Militar para julgar os crimes previstos na lei, mesmo que o agente fosse civil.

Em suma, é indubitável que a lei de segurança nacional foi criada em um contexto autoritário e possuía, na origem, o desiderato de perseguição aos dissidentes do regime, o qual a oposição ao regime chamava de "crimes de política". Com a transição pacífica da ditadura à democracia, finalizada com a Constituição de 1988, não passou a legislação de segurança nacional por uma análise de recepção ou não ao novo ordenamento. Conclui-se, portanto, que os dispositivos da legislação analisada são, até hoje, existentes, válidos e eficazes (ao menos normativamente). Sendo assim, os juristas divergem quanto à utilização ou não dos tipos descritos na lei de segurança nacional por órgãos que compõem o Estado Democrático de Direito. Em outros termos, a pergunta que se faz é: devem instituições comprometidas com a democracia, mesmo que com as melhores das intenções, utilizar normas maculadas pelo autoritarismo?

A resposta pelo sim pode ser sintetizada, em alguma medida, no texto "Deus morreu e agora pode tudo?", de Lênio Streck3. O grande jurista, de fato, coloca em xeque a recepção da lei de segurança nacional após 1988, e não nega o seu ranço autoritário. Porém, ressalta que não se deve realizar Contempt of Court quanto à decisão do Ministro Alexandre de Moraes, isto é, fazer coro "legal" aos aliados do deputado bolsonarista que desonrou a figura dos ministros e ameaçou a continuidade do regime democrático. Para o autor, o correto seria existir no ordenamento uma lei de defesa da democracia que fosse oriunda do texto constitucional e, portanto, compatível com o ordenamento jurídico pós-1988. Entretanto, como válida é a lei de segurança nacional, devem seus dispositivos, que são textos, ser compreendidos a partir de uma interpretação democrática, a fim de consubstanciarem em normas democráticas, pois o "direito é o seu tempo".

Em contrapartida, uma segunda visão advoga pela não utilização da lei de segurança nacional por órgãos que se pretendam defensores do regime democrático e da Constituição. Tal posição aparece, por exemplo, no parecer jurídico pela revogação da lei de segurança nacional redigido pela comissão de juristas formada para confeccionar o anteprojeto de um novo CP, em 20164. Por este ponto de vista, impossível é retirar os traços autoritários de uma lei que foi forjada sob os ditames da "Doutrina de Segurança Nacional". Por conseguinte, o vício ditatorial permanece nos dispositivos da lei 7.170/83 e, mesmo que não se revogue ou não se conteste juridicamente sua constitucionalidade, deve-se retirar a eficácia social da lei ou, em outros termos, parar de usá-la.

Destarte, consigna-se que a segunda posição aparenta ser a maneira mais correta de se encarar a lei de segurança nacional. Isso porque não se pode contar sempre com as boas intenções (as democráticas) do intérprete dos textos. Hoje, utiliza-se a lei de segurança nacional para prender, com bons fundamentos, um deputado extremista de direita, que proclamara contra toda a ordem democrática; amanhã, os extremistas se utilizarão de tal lei para sancionar os seus desafetos políticos. E aqui está o ponto principal do artigo: não se deve pretender democrático algo que não é. Exemplo mediato que corrobora com tal argumento foi a utilização da lei de segurança nacional para enquadrar um jornalista por uma charge satírica ao Presidente da República publicada em 2020.5 Porém, o que choca é o exemplo imediato, ocorrido dias atrás não contra um jornalista de um grande meio de comunicação, mas sim com um mero estudante mineiro.

Conforme amplamente noticiado6, um jovem de Uberlândia (MG), por conta de um tuíte irônico contra o presidente Jair Bolsonaro, foi preso enquadrado pela Polícia Militar de Minas Gerais no tipo de incitação à prática de crime previsto na lei de segurança nacional (art. 23, IV). Pelo entendimento da polícia militar, o jovem preencheu o tipo do delito por, em tese, incitar crime contra a vida do Presidente da República, que visitou a cidade de Uberlândia na mesma semana. O estudante, posteriormente, foi liberado por alvará de Justiça. Pode-se argumentar que o enquadramento do estudante no tipo é ilegal e arbitrário ao mesmo tempo em que se defenda tratar-se de um caso totalmente diferente daquele atribuído ao deputado Daniel Silveira, pois este possui mandato político de âmbito federal capaz de concretizar e incitar milhares (ou até milhões) de seguidores a atacar a ordem democrática e a integridade física dos ministros do STF, enquanto aquele é um mero estudante de uma cidade mineira.

Entretanto, o caso do jovem de Uberlândia exemplifica bem o que está a se tratar aqui. Não há interpretação que desvincule a lei de segurança nacional, por mais benéfica ao regime democrático que seja, da sua origem ditatorial e arbitrária. Seus dispositivos foram pensados para a repressão, formulados como armas, e não se pode contar que todos interpretarão a lei pelas lentes democráticas, ou ao encontro da defesa da ordem constitucional. Se o exame de recepção da lei ao ordenamento pós-88, via ADPF, parece distante de ocorrer, o melhor é parar de utilizá-la.

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1- IG Último Segundo. Bolsonaro discursa em ato a favor do AI-5 e contra o Congresso; veja vídeo. Disponível em: aqui.. Acesso em: 29/02/2021.

2- BITENCOURT, Cezar Roberto. A prisão em flagrante e o estado de flagrância em tempos de cólera. Acesso em: 04/03/2021.

3- STRECK, Lênio Luiz. Deus morreu e agora tudo pode? Reflexões sobre a prisão do deputado. Acesso em 05/03/2021.

4- Lei de segurança nacional em xeque. Disponível em aqui. Acesso em: 05/03/2021

5- CARVALHO, Daniel. Governo usa lei de segurança nacional para investigar jornalista que publicou charge de Bolsonaro. Disponível aqui. Acesso em: 05/03/2021.

6- CONOFRE, Fernanda. Jovem é preso em Minas Gerais por publicação em rede social sobre visita de Bolsonaro. Disponível aqui. Acesso em: 05/03/2021.

Leonardo Soares Brito

Leonardo Soares Brito

Discente de Direito da Universidade Federal do Paraná e membro do Centro de Estudos da Constituição - CCONS/UFPR.

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