Covid-19, vacina e avanços legislativos: Da MP 1.026/21 à lei 14.124/21
A vacinação é a solução contra a pandemia da covid-19. Essa importante medida de saúde pública depende de avanços legislativos que permitam tratamento excepcional.
sexta-feira, 19 de março de 2021
Atualizado às 16:30
A vacinação em massa é, sem sombra de dúvidas, a principal esperança para a contenção definitiva da pandemia da covid-19. Ela é possível. A comunidade científica internacional envidou esforços e, em tempo recorde, produziu imunizantes capazes de derrotar o atual "inimigo número um" da humanidade, salvar vidas e estabelecer uma perspectiva temporal mais concreta para a recuperação da economia.
O desafio é fazer com que as vacinas sejam disponibilizadas em doses suficientes para toda a população, no menor prazo e sem interrupções. Ninguém pode ficar para trás. Para tanto, cabe ao Poder Público, tal como coube à ciência, envidar os devidos esforços administrativos e políticos, suplantando diferenças e engajando todos os setores da sociedade, seja público ou privado. Promover ações integradas, objetivas e eficazes, tendo em mente a interdependência de nossas economias e os imperativos de moralidade e humanidade, é o maior teste possível de liderança que ora se impõe à comunidade política mundial.
Em artigos anteriores sobre aspectos legais e pragmáticos para a operacionalização da vacina, havíamos sugerido como desafiador paradigma social a implementação de uma coalizão nacional - harmônica, interpoderes e federativa - para o enfrentamento da covid-19. Nós o reiteramos aqui, não sem antes destacar a importância das intervenções legislativas para a promoção de políticas públicas marcadas pela eficiência, racionalidade regulatória e segurança jurídica, sobejamente necessárias na mais grave fase pandêmica do Brasil.
Introdução à MP 1.026/21
A medida provisória 1.026 foi editada pelo Governo Federal em 6 de janeiro de 2021, para dispor sobre medidas excepcionais relativas ao Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19. Com imediata força de lei, por desiderato constitucional, a norma trouxe avanços essenciais ao combate da pandemia no Brasil e permitiu que outros importantes aspectos fossem discutidos e pautados, num ritmo legislativo acelerado.
Isto porque as medidas provisórias - ainda que plenamente vigentes ao serem editadas - devem ser submetidas à aprovação congressual, apreciadas por deputados e senadores no prazo de sessenta dias, sendo seu conteúdo passível de alteração. Foi justamente isto o que ocorreu: a MP 1.026/21 foi aprovada, com alterações, e convertida na lei 14.124, de 10 de março de 2021.
Lei 14.124/21: ratificação e alterações à medida provisória
A essência da MP 1.026/21 foi mantida pelo Congresso Nacional. A lei 14.124, de 10 de março de 2021, a sucedeu com poucas alterações substanciais de conteúdo. Em análise comparativa, identificam-se 204 (duzentas e quatro) diferenças entre o texto constante da MP e o texto da lei em vigor. Em grande maioria, as intervenções foram relacionadas à forma, ao estilo de escrita, à técnica legislativa, à gramática e à concordância verbal. Não são desimportantes, porquanto modificações redacionais podem ensejar alterações semânticas. No caso em apreço, todavia, pode-se dizer que as alterações de fundo foram reduzidas.
A lei 14.124/21 ratificou a autorização concedida ao Poder Público para firmar contratos e instrumentos congêneres com dispensa de licitação e possibilitar a aquisição de vacinas e insumos e a contratação de bens e serviços essenciais ao enfrentamento da covid-19, todos em regime administrativo simplificado. A implementação há de observar o previsto no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, elaborado e coordenado pelo Ministério da Saúde.
A lei incluiu no rosário de exceções aos regimes jurídicos vigentes os medicamentos contra a covid-19 que, tal como as vacinas, insumos e outros itens essenciais, poderão ser previamente adquiridos ainda que pendentes de registro sanitário ou autorização de uso emergencial. Há, todavia, uma diferença fundamental entre os termos "aquisição" e "aplicação", sobretudo no que tange às vacinas.
De acordo com a novel legislação, a aplicação das vacinas no Brasil só deverá ocorrer após a Anvisa - no prazo de até 7 (sete) dias úteis ou até 30 (trinta) dias, em determinados casos - conceder autorização: (I) excepcional de importação; (II) temporária de uso emergencial; ou (III) de registro sanitário. A modalidade "excepcional de importação" não constava da medida provisória, tendo sido mais um caso de inclusão durante o processo legislativo.
Outra inovação promovida pelo Congresso Nacional foi permitir que os Estados, os municípios e o Distrito Federal pudessem adquirir, distribuir e aplicar vacinas contra a covid-19, condicionados à eventual inoperabilidade prática da União em cumprir o plano de ação por si coordenado. Neste ponto, em específico, há margem suficiente para variadas interpretações jurídicas, a amparar possíveis sendas políticas, impulsionadas pela vivência do momento mais severo da pandemia no país.
Nada obstante, imperioso destacar que o critério básico para regular a utilização, no Brasil, dos itens essenciais é a existência de registro ou autorização para uso emergencial aprovada por, no mínimo, uma autoridade sanitária estrangeira. O critério não desonera a apreciação técnica da Anvisa, mas simplifica os seus procedimentos internos.
A medida provisória contemplou, inicialmente, autoridades sanitárias de cinco países: Estados Unidos, União Europeia, Japão, China e Reino Unido. O Congresso, por sua vez, ampliou este rosário, homologando as autoridades sanitárias de diversos outros países, dentre os quais: Rússia, Índia, Coreia do Sul, Canadá, Austrália e Argentina. Em todos os casos, condição para o reconhecimento da autorização conferida por autoridade sanitária estrangeira é a obtenção de certificação internacional nível IV pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ou pelo International Council for Harmonisation (ICH) e Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme (PIC/S).
Por fim, no que atine à lei 14.124/21, cumpre observar que ela se aplica, in verbis, aos atos praticados e aos contratos ou instrumentos congêneres firmados até 31 de julho de 2021, independentemente do seu prazo de execução ou de suas prorrogações. A partir de então, restará inócua para novos atos. Ao que tudo indica, far-se-á necessário intervenção legislativa para dilação desse prazo, o qual, cogita-se, foi assim estipulado para pressionar o Poder Público a agir em caráter de urgência urgentíssima.
Resolução 475/21: A regulamentação da Anvisa
Nos termos da lei 14.124/21, a Anvisa publicou a resolução 475, de 10 de março de 2021, que dispõe sobre procedimentos administrativos e requisitos técnico-operacionais, e se aplica, sobretudo, às empresas aptas e interessadas a titular registros no Brasil, fabricar ou importar medicamentos, relacionados ao enfrentamento da covid-19.
Para que a autorização seja concedida pela autoridade sanitária brasileira, a empresa deve apresentar pedido de acordo com as diretrizes normativas e disponibilizar informações, relatórios, dados e resultados, capazes de comprovar as boas práticas de fabricação, qualidade, eficácia e segurança do medicamento ou da vacina objeto da solicitação. A Anvisa, vale constar, poderá conceder autorização, de acordo com seus critérios, independente de aprovação prévia de outra autoridade sanitária internacional.
No que tange ao prazo de análise decisória, a Resolução estabelece que, tratando-se de vacina, há que se efetivar a autorização em até 7 (sete) dias úteis, quando o desenvolvimento clínico for realizado no Brasil ou o parecer técnico de autoridade estrangeira comprovar padrões de qualidade, de eficácia e de segurança. Caso não haja relatório estrangeiro ou o produto não seja desenvolvido no Brasil, o prazo será de até 30 (trinta) dias - o mesmo atribuído a todos pedidos relacionados à medicamentos contra a covid-19,
Dentro do prazo estabelecido, fica a critério da Anvisa aprovar pedido de autorização sob compromisso de posterior atendimento a condicionantes, ou requerer a realização de diligências para eventual complementação de documentos e esclarecimentos técnicos, caso em que a contagem do prazo é suspensa.
Consta da regulamentação, ainda, que medicamentos e vacinas autorizados devem ser destinados, preferencialmente, a programas de saúde pública do Ministério da Saúde. Não se vê, portanto, qualquer proibição legal ou normativa à utilização por parte da iniciativa privada. O Poder Legislativo, por sua vez, se debruçou sobre o tema ao apreciar o projeto de lei 534, de 23 de fevereiro de 2021, de autoria do Senador e ora presidente do Senado Federal Rodrigo Pacheco, o qual foi transformado em norma jurídica no mesmo 10 de março de 2021, com a promulgação da lei 14.125/21.
Lei 14.125/21: Responsabilidade civil e inserção da iniciativa privada
A lei 14.125, de 10 de março de 2021, dispõe sobre a responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a covid-19; e a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.
Na prática, a norma ampliou o rol de cláusulas especiais admitidas nos instrumentos contratuais de excepcionalidade pandêmica para, em notório atendimento a condicionantes apresentadas pela fabricante Pfizer - que já detém registro sanitário definitivo autorizado pela Anvisa - garantir a disponibilidade de mais doses de vacinas e propiciar segurança jurídica aos servidores e gestores públicos.
Noutra vertente, a Lei permitiu a aquisição direta de vacinas pela iniciativa privada, com regramentos específicos: (a) até que finalizada a imunização dos grupos prioritários, qualquer eventual dose adquirida há de ser doada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e inserida no plano nacional de vacinação; e (b) após imunização dos grupos prioritários, metade das doses adquiridas devem ser também doadas ao SUS e, as demais distribuídas e aplicadas gratuitamente pela entidade.
Importante registrar que a lei 14.125/21 foi objeto de 3 (três) vetos presidenciais, a serem apreciados a qualquer momento em sessão do Congresso Nacional. Atenção especial é devida à possibilidade de o Parlamento tornar eficaz dispositivo que permite - dessa vez, enquanto perdurar a pandemia - Estados, municípios e Distrito Federal adquirirem vacinas em caráter suplementar e com recursos da União. Permite, ainda, a aquisição direta e, excepcionalmente, com recursos próprios, caso o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação atrase ou seja descumprido.
Reflexões conclusivas
Os esforços legislativos são muitos e devem ser reconhecidos. Decerto distam do horizonte do ideal, mas oferecem avanços inegáveis, os quais permitem a efetivação de políticas públicas emergenciais. Em plena pandemia, o Congresso Nacional se reinventou e passou a deliberar de forma 100% remota ou híbrida. Os sistemas de deliberação remota do Senado Federal e da Câmara dos Deputados do Brasil foram respostas pioneiras e tempestivas à crise mundial.
No caso concreto sob análise, há ainda diversas lacunas e incertezas, as quais, em grande parte, serão judicializadas. Cabe ao Poder Judiciário, portanto, agir com a urgência requerida, mas também com a responsabilidade e o equilíbrio esperados, para uniformizar entendimentos e pacificar relações.
Não basta que a vacina exista, ela precisa estar disponível, chegar a todos e ser aplicada, no menor prazo e sem interrupções. Para tanto, compete a todos os Poderes estar de mãos dadas, com independência e harmonia, insertos numa coalizão nacional interinstitucional e com efetivo engajamento da sociedade civil, da iniciativa privada e das instâncias diplomáticas. O inimigo de todos é invisível, mas tem nome e pode ser derrotado: covid-19.