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A (des)necessidade de citação prévia na instauração do incidente de desconsideração de personalidade jurídica nos juizados especiais

Os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica variam conforme a relação jurídica na qual se pretende sua aplicação, com critérios distintos (ora mais rígidos e ora mais maleáveis).

quinta-feira, 25 de março de 2021

Atualizado às 12:35

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Um dos efeitos da personalidade jurídica é a total independência patrimonial e individual da entidade, relativamente aos membros que a constituem. Isso significa que a pessoa jurídica não responde pelos atos de seus membros, nem estes por atos daquela, salvo expressa disposição legal ou contratual.

Com o objetivo de coibir a possibilidade de utilização temerária e fraudulenta das sociedades por seus próprios sócios, o que em geral ocorre com o objetivo de prejudicar terceiros, é que surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Por essa teoria, permite-se que os credores invadam o patrimônio pessoal dos sócios que se utilizam maliciosamente da sociedade, com o objetivo de garantir a reparação dos prejuízos sofridos.

Os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica variam conforme a relação jurídica na qual se pretende sua aplicação, com critérios distintos (ora mais rígidos e ora mais maleáveis) previstos no Código de Defesa do Consumidor (artigo 28), na Lei de Proteção ao Meio Ambiente (artigo 4º), na Lei Antitruste (artigo 34) e na Lei Anticorrupção (artigo 14). Além das situações específicas que decorrem dessas leis, a desconsideração da personalidade jurídica também passou a ser aplicável de forma ampla com o advento do Código Civil de 2002, que tratou da hipótese em seu artigo 50, cuja redação foi recentemente alterada pela Lei da Liberdade Econômica.

Desde o advento do Código de Processo Civil de 2015, nos termos dos artigos 133 e 137, é obrigatória (artigo 795, § 4º, do Código de Processo Civil) a instauração de incidente para que seja possível pleitear a desconsideração da personalidade jurídica.

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica está localizado no Capítulo IV do Título III do Livro III do Código de Processo Civil, isto é, no Título que trata das intervenções de terceiros no processo. Implica, portanto, uma sobrevinda de sujeitos originalmente alheios à relação jurídica processual. E, nessa condição, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica seria, a princípio, inaplicável no âmbito dos Juizados Especiais, vez que a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, em seu artigo 10, veda qualquer forma de intervenção de terceiros nos processos por ela regulados. Contudo, essa conclusão não é aceitável.

A um, porque o próprio Código de Processo Civil dispõe expressamente em seu artigo 1.062 que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é aplicável nos processos de competência dos Juizados Especiais. A dois, porque a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais não faz qualquer vedação manifesta ao manejo do referido incidente nos processos por ela disciplinados.

Assim, sob qualquer ótica, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é plenamente aplicável aos processos que tramitem nos Juizados Especiais, em que pese tal possibilidade seja, por vezes, contestada nos planos doutrinário e jurisprudencial.

Questão mais controversa é saber se, mesmo quando o referido incidente é instaurado nos Juizados Especiais, há a estrita necessidade de citação prévia dos sócios ou da pessoa jurídica (se houver a chamada desconsideração inversa, isto é, que busca atingir o patrimônio da sociedade e não dos sócios) para manifestação e requerimento de produção de provas, como preceitua o artigo 135 do Código de Processo Civil.

Sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entendia que "a desconsideração da personalidade jurídica pode ser decretada sem a prévia citação dos sócios atingidos, aos quais se garante o exercício postergado ou diferido do contraditório e da ampla defesa"1.

Contudo, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, se passou a entender que a previsão contida em seu artigo 135, que determina a citação prévia do sócio ou da empresa, é de observância obrigatória, posto que traduz a necessária imposição do contraditório, mesmo com a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos Juizados Especiais.2

Tal conclusão, contudo, não pode ser absoluta. Primeiramente, é de se destacar a própria razão de ser dos Juizados Especiais.

A Constituição Federal de 1988 incumbiu à União e aos Estados a criação de Juizados Especiais, "competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo"3, e cujo processo deve ser orientado pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (artigo 2º da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais).

Não se ignora, ademais, que boa parte das demandas que tramitam nos Juizados Especiais abrangem matérias consumeristas, de maneira que o já mencionado art. 28/CDC, em seu §5º, dispensa o consumidor de demonstrar fraude ou abuso de poder, bastando a prova do estado de insolvência que imponha obstáculos ao ressarcimento dos prejuízos causados. Aplica-se, pois, em tais casos, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, acolhida por grande parte de nossas cortes4.

Por óbvio, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser compatibilizado às diretrizes regentes dos Juizados Especiais, de modo que a citação prévia dos sócios ou da pessoa jurídica poderia lesar a economia e a celeridade processuais, razão pela qual é perfeitamente possível que o contraditório seja diferido, tal como já era amplamente admitido na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Especialmente nos casos de aplicação da teoria menor, caso reste suficientemente demonstrado o estado de insolvência, é perfeitamente possível que o contraditório seja exercido a posteriori, a fim de não causar prejuízos ao consumidor.

Ao contrário do que se possa pensar, tal proposta não trata de atropelar as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal) em favorecimento da mera aceleração do trâmite do processo, mas sim de concretizar a dimensão material da garantia igualmente constitucional de acesso à justiça (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal), em benefício de sujeitos que, tendo razão em suas pretensões e já litigando em um procedimento sumaríssimo, não podem ter seus direitos lesados pela demora típica do procedimento comum. Afinal, a garantia de acesso à justiça, "ao assegurar o direito fundamental à proteção jurisdicional está necessariamente garantindo uma tutela adequada, efetiva e tempestiva"5. Como já afirmado, tal lógica ganha especial relevância caso se esteja diante de uma relação consumerista, já que, nos termos do art. 6º, incisos VI e VIII, CDC, são direitos básicos do consumidor a efetiva reparação de danos patrimoniais e morais, e a facilitação de seus meios de defesa. É dizer: se a prévia citação impuser riscos de obstacularização de ressarcimento dos prejuízos, dispensa-se a citação prévia do devedor.

Outrossim, merece reparo a crítica de que, na instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos Juizados Especiais, a desnecessidade de citação prévia dos sócios ou da pessoa jurídica implicaria em lesão ao contraditório e à ampla defesa. Ora, a ausência de citação não elimina tais garantias, eis que estas são apenas postergadas para serem exercidas nas manifestações futuras do sócio ou da pessoa jurídica. Trata-se, pois, de uma hipótese de contraditório diferido, o qual, inclusive, é plenamente admitido no processo civil, sobretudo através do instituto da tutela provisória.

Inclusive, é possível a oposição de embargos de terceiro6 por "quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte", como dispõe o artigo 674, § 2º, inciso III, do Código de Processo Civil. Assim, não há que se falar no completo prejuízo de quem eventualmente sofra uma medida constritiva em um incidente de desconsideração da personalidade jurídica, vez que, mesmo com o contraditório diferido, há medidas hábeis a reverter danos posteriormente reputados como indevidos. Entretanto, para o credor, há a possibilidade de que a citação prévia do sócio ou da pessoa jurídica seja um verdadeiro indicativo para que o devedor venha a dissipar ou ocultar seu patrimônio, dificultando ainda mais a obtenção do crédito devido.

Destarte, na instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos Juizados Especiais (especialmente em casos que envolvam a legislação consumerista), é possível a dispensa de citação prévia do sócio ou da pessoa jurídica, que poderá exercer o contraditório diferido sem sofrer um prejuízo irreversível, ao mesmo tempo em que o credor não terá ainda mais dificuldades na obtenção de seu crédito.

__________

1 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 1.735.004/SP. Rel.: Min. Nancy Andrighi. 3ª turma. J. 26 jun. 2018.

2 Essa é a opinião presente em: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 998.

3 Artigo 98, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

4 TJ/PR - 3ª turma Recursal - 0000143-04.2017.8.16.0056 - Cambé -  Rel.: Fernanda Karam de Chueiri Sanches -  J. 5/3/21.

5 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 18. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 918, grifo no original.

6 Enunciado 155/FONAJE: Admitem-se embargos de terceiro, no sistema dos juizados, mesmo pelas pessoas excluídas pelo parágrafo primeiro do art. 8 da lei 9.099/95.

Gabriel Alves Fonseca

Gabriel Alves Fonseca

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Colaborador do escritório Reis & Alberge Advogados.

Guilherme Alberge Reis

Guilherme Alberge Reis

Advogado mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Bacharel em Direito e Relações Internacionais. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial. Secretário da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Sócio do escritório Reis & Alberge Advogados.

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