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O simbolismo da vedação pelo STF da tese de legítima defesa de honra

A tese de legítima defesa da honra tem base nas Ordenações Filipinas (sem vigência no Brasil desde 1916), que autorizava o marido a matar a sua mulher infiel.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Atualizado às 12:24

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Março é internacionalmente reconhecido como o mês das mulheres, mas, no Brasil, a data ainda é comemorada de forma "romântica" (com propagandas valorizando a sensibilidade feminina, promoções para a aquisição de produtos de beleza e entregas de flores), descaracterizando sua essência - que é política: relembrar as conquistas políticas e sociais das mulheres e, colocar em pauta os direitos ainda não alcançados.

Não é por acaso que a ONU pautou para o dia 08 a assinatura da declaração pelos direitos de mulheres e meninas (relacionados à saúde) em Genebra, firmado por mais 60 países e rejeitado pelo governo brasileiro.

Nesta perspectiva alguns dados nacionais têm fundamental importância: I) em 2015 foi sancionada a Lei do Feminicídio, colocando a morte de mulheres no rol de crimes hediondos; II) ocupamos a 5ª posição dentre os países que mais mata mulheres no mundo e; III) 90% dos crimes de feminicídio são praticados por atuais ou ex-maridos/companheiros/namorados da vítima.    

É neste cenário e, diante de um crescimento em 22,2%  de violência letal e diminuição em mais de 25%  nos registros de lesão corporal decorrentes de violência doméstica durante a pandemia (covid-19), que o julgamento concluído pelo Supremo Tribunal Federal no dia 12 assume protagonismo, pois veta a utilização da tese de legítima defesa da honra nos crimes de feminicídio.

A tese de legítima defesa da honra tem base nas Ordenações Filipinas (sem vigência no Brasil desde 1916), que autorizava o marido a matar a sua mulher infiel. Contudo, mesmo sem base legal, esta tese ainda é perpetuada por advogados e aceita pelo judiciário (em geral Júri), o que motivou a análise pelo STF.

Quanto ao conteúdo da decisão da ADPF 779, por maioria de votos os ministros entenderam que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da defesa da vida e da igualdade de gêneros. E mais, decidiram que a sua argumentação, em qualquer fase processual (ou pré-processual), causa nulidade do ato e do julgamento. A decisão, então, tem poder político no combate à violência - real e simbólica - contra as mulheres.

Neste sentido, é dever do Supremo defender os direitos constitucionais e garantir direitos fundamentais de grupos minoritários - combatendo injustiças e preconceitos. Isso porque a Constituição Federal (1988) segue diretriz neoconstitucionalista, ou seja, em que há uma releitura da ideia clássica e rígida da separação dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), permitindo o chamado ativismo judicial em defesa dos valores constitucionais - aqui a igualdade de gênero.

E é por esta matriz, de princípios e valores que abrem portas entre direito e moral, que os ministros puderam fazer uma leitura da legislação penal e do problema relativo à violência doméstica e vetar a utilização da tese retrógrada em questão.

Neste ponto, por mais que a violência de gênero são seja um tema recente, a luta contra ela é. E, não há dúvidas de que a decisão do Supremo tem o efeito pedagógico de inibir que advogados, promotores e demais membros da justiça articulem teses sexistas (como ocorre com frequência nas causas de família e de violência doméstica) na tentativa de culpar as mulheres pelas agressões que sofrem.

Ademais, se até os dias de hoje há o crescimento significativo da violência de gênero e, ainda permanece a aderência da tese em questão para o fim de absolvição de homens, significa que há uma cultura machista estrutural perpetuando violências concretas e simbólicas a ser modificada e, ante a notável inércia dos demais poderes na promoção de leis e políticas públicas eficazes para tanto, o Poder Judiciário tem legitimidade para agir na garantia de direitos das mulheres para reequilibrar a representatividade majoritária (masculina) e fazer valer os valores de equidade da Constituição.

Não há dúvidas de que a baixa representatividade das mulheres nos cargos políticos gera justamente a dificuldade de articulação de leis que garantam seus diretos. Portanto, a pertinência do papel do Supremo Tribunal Federal de garantidor dos diretos das minorias e fiscalizador dos demais poderes, o que deverá ser mantido até que elas sejam devidamente representadas em nosso sistema democrático.

Nós, mulheres, não podemos ser eternamente culpadas pelas violências que sofremos e o silêncio da justiça implica em cumplicidade tácita com os agressores.

Diana Karam Geara

Diana Karam Geara

Advogada e sócia do Núcleo de Direito de Família e Sucessões do Escritório Professor René Dotti.

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