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Dados pessoais podem afetar os direitos da personalidade?

Análise de um caso concreto à luz da doutrina e da legislação vigente, com apresentação de hipóteses que podem exemplificar como os dados pessoais podem afetar os direitos de personalidade.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Atualizado às 12:39

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em abril de 2020, João da Silva1, desempregado, foi aprovado em programa de proteção social instituído pela lei 13.982/20, conhecido popularmente como "auxílio emergencial".

Após receber 4 (quatro) das 5 (cinco) parcelas previstas, teve seu auxílio cancelado sob argumento de que fora identificado vínculo empregatício com agente público estadual, distrital ou federal.

Ao pesquisar em sua carteira de trabalho digital, identificou a existência de registro de vínculos empregatícios com uma empresa pública.

Ocorre que o Sr. João da Silva nunca trabalhou para a referida empresa, sendo inclusive residente e domiciliado em Estado diverso, de modo que analisando a situação, foram levantadas algumas hipóteses, sendo três delas: (I) compartilhamento de número de inscrição de CPF, provavelmente a um homônimo; (II) resultado de fraudes por compartilhamento de dados pessoais, (III) erro na hora da inserção do número de CPF para o registro do vínculo.

A partir do caso apresentado, tentaremos abordar no presente artigo como os dados pessoais podem afetar os direitos da personalidade.

Os direitos da personalidade são um conjunto de particularidades referentes ao desenvolvimento físico, moral, espiritual e intelectual do indivíduo, que versam sobre todas as áreas que envolvem cada ser humano.

Esses direitos possuem como base a autonomia da vontade, alteridade e dignidade e têm como objetivo assegurar que uma pessoa pratique sua individualidade e possa defender aquilo que é seu.2

Desta forma, verifica-se que se relacionam diretamente com a proteção da imagem, da liberdade, da honra e da autoria, sendo direitos indisponíveis e que se aplicam a todos igualmente.3

Já, quando falamos sobre dados pessoais, devemos ter em mente que se tratam de quaisquer informações referentes a pessoa natural identificada ou identificável, conforme definição trazida pela lei 13.709/18, a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD.4

Com a entrada em vigor da LGPD, eis que surge de maneira mais evidente a necessidade de proteção das informações do indivíduo, com a população passando a compreender que suas informações são preciosas, e que a má utilização delas pode vir a gerar danos em diversas esferas.

Isto porque a referida Lei, no seu artigo 2º, disciplina como fundamentos da proteção dos dados o respeito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, entre outros.5

Sobre a primeira hipótese levantada, nota-se que o Cadastro de Pessoas Físicas - CPF foi criado pelo decreto-lei 401/68 e é regulamentado pela instrução normativa 1.548/15 da Receita Federal.

Nessa instrução normativa, o art. 5º dispõe que "O número de inscrição no CPF é atribuído à pessoa física uma única vez, vedada a concessão de mais de um número de CPF".

Verifica-se que o dispositivo apresentado trata da impossibilidade de serem atribuídos a duas ou mais pessoas o mesmo número de CPF, bem como veda a atribuição de mais de um número de cadastro por pessoa. Assim, o CPF se torna um identificador inconfundível de uma pessoa natural, uma vez que, idealmente, cada número é vinculado exclusivamente a uma única pessoa.

Por certo, tem-se que atualmente o número de CPF está relacionado a uma extensa variedade de informações privadas mantidas em bancos de dados públicos ou particulares, que vão desde cadastros em sites de compras, até sistemas bancários, eleitorais e trabalhistas.

Por esse motivo, demonstra-se a extrema importância do respeito à unicidade da inscrição e de titularidade do número de CPF.

A referida unicidade liga-se com o direito fundamental à intimidade e à privacidade da pessoa natural, cuja proteção decorre da Constituição Federal (art. 5º, X)6 e reflete na legislação infraconstitucional, na forma do direito à titularidade da pessoa natural sobre suas informações, previsto no art. 17 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais -LGPD (lei 13.709/18).

O mencionado artigo determina que "Toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, nos termos desta Lei."

Desta forma, considerando as disposições acima, fica claro que, caso haja erro na designação inicial do número de CPF, por qualquer motivo que seja, e duas pessoas acabem vinculadas sob o mesmo número, restam configurados danos à ambas as pessoas, já que não mais é possível garantir a cada uma a titularidade sobre suas informações, nem, tampouco, se garante a intimidade e privacidade dos indivíduos, ferindo-se o direito de personalidade de cada um.

Quanto a segunda possibilidade, a fraude é, em si, uma fonte inegável de dano, mas ao associarmos a utilização indevida de informações pessoais de outros, temos que o dano passa a afrontar, também, o direito individual à personalidade, uma vez que passam a ser atribuídos fatos, dívidas, obrigações, ou outras situações indevidamente a pessoa que, geralmente, está alheia a situação.

De fato, na atual sociedade, fica cada vez mais possível reconhecer que a fraude envolvendo dados pessoais de terceiros causam danos de maior impacto, pois afetam diretamente a personalidade da pessoa envolvida, sua moral e relação para com a sociedade.

A cada nova notícia de "vazamento de informações pessoais", é possível ver reações cada vez maiores da população, que demanda a proteção e guarda devida de suas informações, pois cada vez mais reconhecem seus dados como uma verdadeira extensão do seu ser.

No caso em análise, ainda não se sabe ao certo o motivo que ensejou o lançamento equivocado. Não obstante, tal lançamento levou ao cancelamento de um benefício que o Sr. João da Silva, desempregado, necessitava, gerando um dano patrimonial, afetando também a esfera física que é englobada pelo direito de personalidade.

Dessa forma, a partir da análise pontual da circunstância apresentada, é possível identificar a relação direta entre o direito de personalidade e a utilização de dados pessoais, seja para garantir a disponibilidade do direito de personalidade no tocante à individualidade, privacidade e titularidade de dados à pessoa natural, como para garantir a proteção do indivíduo que se encontra em situação em que seus dados são ilicitamente ou erroneamente utilizados para fins que lhe são desconhecidos.

_________

1 João da Silva foi um nome inventado, usado no presente artigo para não expor o verdadeiro nome da parte.

2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. Teoria Geral do Direito Civil. 27. ed. são Paulo: Saraiva, 2010.

3 Idem.

4 Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável;

5 Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

I - o respeito à privacidade;

II - a autodeterminação informativa;

III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

6 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Bárbara do Nascimento Pertence

Bárbara do Nascimento Pertence

Advogada colaboradora do escritório Petrarca Advogados.

Isadora Sagmeister de Melo

Isadora Sagmeister de Melo

Advogada colaboradora do escritório Petrarca Advogados.

Igor Cançado

Igor Cançado

Graduando de Direito. Colaborador do escritório Petrarca Advogados.

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