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A incidência do ITBI na cessão de direitos aquisitivos: STF julgou simplesmente a tese errada!

Notícias de um erro colossal: ao analisar o ARE 1.294.969/SP, que tratava da incidência de ITBI na cessão de direito aquisitivo, o STF acabou julgando a incidência do imposto na celebração da promessa de compra e venda.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Atualizado às 13:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)
Na sexta-feira dia 19/02/21 foi publicado o acórdão proferido nos autos do ARE 1.294.969/SP, em que o STF reconheceu a existência de repercussão geral da discussão sobre a incidência de ITBI na cessão de direito aquisitivo e reafirmou a jurisprudência da Corte.

O julgamento foi favorável aos contribuintes, tendo-se fixado a seguinte tese: "O fato gerador do imposto sobre transmissão intervivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro." No caso, o ente municipal pretendia cobrar o imposto sobre a cessão do direito aquisitivo, sendo certo que o contrato não havia sido registrado no cartório de Registro de Imóveis.

Uma decisão favorável aos contribuintes, em tempos de derrotas significativas e sucessivas, é sempre um alento. Mas qual não foi a minha surpresa ao notar que o STF decidiu escandalosamente contra o texto claro e cristalino da constituição! Uma decisão surpreendente que impõe uma derrota para todos - contribuintes e fisco - e que materializa o abandono, pela nossa Corte Suprema, que temos assistido em relação às discussões técnicas sobre o direito tributário. Sinal de uma patologia que vem sendo apontada já há algum tempo, mas que, por ser classificada como o exercício do jus esperinandi, não é lavada a sério. As lamúrias do perdedor não importam.

Passando agora à análise do caso, o STF confundiu dramaticamente duas teses: (1) a incidência do ITBI quando da cessão do direito aquisitivo representado pelo contrato de promessa de compra e venda; e (2) a incidência do imposto quando da celebração do contrato indicado. São teses absolutamente diferentes e que em nada se relacionam. A Corte julgou a tese (1), porém reafirmando sua jurisprudência quanto à tese (2). Ou seja, um desastre completo.

Um breve esclarecimento inicial se faz necessário. O fato gerador do ITBI vem disciplinado pelo art. 156, II, da CF/88, que assim dispõe:

"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(...)

II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição". (grifei)

Nos termos em que delineados pela Constituição, o fato gerador do ITBI, para fins didáticos, pode ser decomposto em três hipóteses diferentes entre si:

(a) transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis1, por natureza ou acessão física;

(b) transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de direitos reais2 sobre imóveis (exceto os de garantia); e

(c) cessão de direitos aquisitivos.

Como na época da promulgação da Constituição o direito do promitente comprador não tinha natureza real - o que só veio a acontecer com o Código Civil de 2002 (art. 1.225, VII) -, o constituinte mencionou expressamente a operação. Após a vigência do Código Civil de 2002, portanto, a hipótese do item (c) perdeu a razão de existir, ficando sem sentido, uma vez que a cessão ou transmissão do direito do promitente comprador - que é um direito real - passou a estar compreendida na hipótese do item (b).

Portanto, como se percebe, a CF/88 fez incidir o ITBI na transmissão de direitos reais, neles compreendida a cessão da promessa de compra e venda. Em outras palavras, incluiu como hipótese de incidência a cessão onerosa do compromisso de venda. Não há aqui a mais remota dúvida, pois o texto, de tão singelo, sequer permite interpretações.

Veja-se que não há necessidade de se registrar a promessa de compra e venda no Cartório de Registro de Imóveis, conforme reconhecido pelo STJ de longa data. Nesse sentido, as Súmulas 84 e 239 da Corte Superior.3 O entendimento foi reforçado por decisões mais recentes, o que é exemplificado pelo trecho abaixo, extraído do voto proferido no REsp 1.490.802/DF (relatado pelo Min. Moreira Ribeiro, DJe 24/04/18):

"De fato, a jurisprudência desta Corte consolidou o entendimento de que a promessa de compra e venda gera efeitos obrigacionais, não dependendo, para sua eficácia e validade, de ser formalizada em instrumento público (AgInt no REsp 1.325.509/PE, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Quarta Turma, DJe 06/2/17 - sem destaque no original).

É evidente, no entanto, que o registro, se existente, teria o condão de impedir a alegação de boa-fé, por terceiros, em virtude do desconhecimento do ajuste, não sendo, no entanto, a sua ausência, suficiente para subtrair os seus efeitos"

Com a previsão constitucional de incidência do ITBI na cessão de direitos aquisitivos, quis o constituinte originário gravar a operação realizada sem a formalização da transferência do imóvel, sendo esta concretizada via registro no Cartório de Registro de Imóveis. Ou seja, trata-se do caso em que o indivíduo tem a promessa de compra e venda, ainda não levada a termo definitivo, e vende o imóvel depois de 10 anos, por exemplo. Com isso, ele cede o seu direito aquisitivo àquele imóvel, sem passar nada pelo cartório de Registro de Imóveis.

Essa situação é muito comum hoje em dia, pois nem todos sabem que depois da promessa ainda deve-se registrar o imóvel para que a propriedade seja consolidada. Ou então simplesmente não o fazem por qualquer motivo. Se essa operação não for tributada, haverá uma transferência de imóvel não alcançada pelo imposto que possui vocação constitucional para fazê-lo.

Outra questão completamente diferente é a discussão sobre a incidência do ITBI quando do estabelecimento do contrato de promessa de compra e venda, ou seja, quando a avença é celebrada. Nos termos de jurisprudência histórica do STF, o contrato de promessa de compra e venda, firmado por instrumento público ou particular, registrado ou não, não transmite direitos reais nem configura cessão de direitos a sua aquisição, motivo pelo qual sobre ele não incide o ITBI. A orientação ficou bem clara em voto memorável proferido pelo então Min. Moreira Alves, em 1983, nos autos da Representação de Inconstitucionalidade 1.121, leading case no qual analisou o tratamento então dado para o referido contrato:

"O compromisso de compra e venda, no sistema jurídico brasileiro, não transmite direitos reais nem configura cessão de direitos a aquisição deles, razão por que é inconstitucional a lei que o tenha como fato gerador de imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos. Representação julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso I do parágrafo único do artigo 114 da lei 7730, de 30 de outubro de 1973, do Estado de Goiás".4

A mencionada representação teve como alvo o art. 114 da lei 7.730/73, do Estado de Goiás, que incluía entre os fatos geradores do imposto o compromisso de compra e venda (§ único, inciso I). Com esse precedente, o STF firmou orientação segundo a qual a celebração do contrato de promessa de compra e venda não gera o dever de pagar o ITBI.

Como se nota do resumo feito até aqui, uma situação é a celebração do contrato de promessa de compra e venda, sobre a qual realmente não deve incidir o imposto, pois a transmissão da propriedade apenas se dá com o registro no cartório competente. Situação diversa é a cessão do direito aquisitivo, representado pela transmissão do imóvel só com a promessa; sobre essa operação, não há dúvida de que incide o ITBI, pois assim o determina a Constituição com todas as letras. E aqui não há a menor necessidade de registrar o contrato no Cartório de Registro de Imóveis para que o imposto seja devido.

A partir desses esclarecimentos, convido o leitor a reler o acórdão proferido pelo STF ora comentado e o erro colossal surge do tamanho de um dinossauro, difícil de esconder. Tive a curiosidade de consultar o inteiro teor do processo (disponível no site do STF) e confirmei que de fato se trata de uma cessão de direito aquisitivo, decorrente da cessão da promessa de compra e venda. Não há dúvidas sobre os fatos estabelecidos.

Nas informações trazidas pela Prefeitura de São Paulo, o ente alega que não se discute a incidência do imposto sobre a promessa de compra e venda, mas sim sobre a cessão de direitos aquisitivos e aponta que essa hipótese está expressamente prevista na CF/88; a questão é posta em LETRAS GARRAFAIS, veja-se: "Registre-se: NÃO SE TRIBUTA A OPERAÇÃO REPRESENTADA PELO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA, MAS SIM A CESSÃO DOS DIREITOS DELA ORIGINADOS." (fl. 133 do processo). Mas o grito não foi ouvido.

O STF acabou repetindo os fundamentos errados adotados pelas instâncias inferiores, sem critério. No julgamento, não houve debates. Fica uma pergunta que não cala: por qual razão o Tribunal reconhece a repercussão geral de uma discussão (o que evidencia sua importância para a sociedade), se o assunto é enfrentado de forma blasé e sem cuidado? Até mesmo os precedentes citados não se aplicam à hipótese fática dos autos: dos 12 acórdãos citados aleatoriamente, absolutamente nenhum trata da cessão de direitos, todos versam sobre a não incidência do ITBI na celebração da promessa de compra e venda.

Para mim, como advogado, esse episódio demonstra a importância que o Tribunal vem dando aos casos de direito tributário, especialmente às discussões que possuem repercussão geral. Como causídico privado, as sucessivas derrotas impostas aos contribuintes não me agradaram; mas como acadêmico, não escrevi nenhum artigo sobre essas teses, apesar de discordar veementemente de vários fundamentos adotados.

Mas o presente caso é um verdadeiro escândalo - e o afirmo com a imparcialidade de quem critica um acórdão potencialmente favorável a seus clientes. O sentimento aqui não é de vitória, mas de tristeza, que decorre da constatação de que o direito tributário se tornou um desprazer na pauta de um Tribunal cada vez mais ocupado com outros assuntos, mas um desprazer que as vezes deve ser enfrentado, porque lá chegam litígios fiscais também.

_________

1. "Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente."

2. Os direitos reais são aqueles relacionados no art. 1.225, do Código Civil: propriedade, superfície, servidões, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador do imóvel, penhor, hipoteca, anticrese, concessão de uso especial para fins de moradia, concessão de direito real de uso e laje.

3. "Súmula 84. É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro." "Súmula 239. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis."

4. STF, Rp 1.121, Rel. Min. Moreira Alves, Pleno, j. 09/11/1983. Veja-se trecho colhido do acórdão: "Sucede, porém, que, em nosso direito privado, o compromisso de compra e venda é contrato preliminar que gera obrigação de fazer e não de dar: as partes contratantes, nele, se obrigam a celebrar, posteriormente, outro contrato, que é o definitivo. Por isso mesmo, não é ele sequer título hábil à transmissão, pelo registro, da propriedade, sendo necessária, ainda quando dá ele margem à adjudicação compulsória, sentença de natureza constitutiva, que faz as vezes do título para a constituição do domínio. Em consequência, por ele não há a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou acessão física e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, nem configura ele cessão de direitos à aquisição desses direitos reais, únicos fatos geradores que, em face do inciso I do artigo 23 da Constituição Federal, dão nascimento à relação jurídica tributária concernente ao imposto de transmissão."

Luciano Gomes Filippo

Luciano Gomes Filippo

Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Panthéon-Assas (Paris II). Coordenador do Projeto Jurisprudência Tributária (PJT). Advogado no Rio de Janeiro. Membro da Associação Francesa de Doutores em Direito (AFDD). Membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF). Autor do livro "A Construção Jurisprudencial dos Impostos Sobre a Transmissão de Patrimônio".

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