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Os universos paralelos das operações de fusão e aquisição de empresas

É preciso oferecer um ambiente jurídico seguro e estável para o mercado de fusões e aquisições.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Atualizado em 15 de abril de 2021 12:34

De acordo com levantamento divulgado em fevereiro deste ano1, o volume de fusões e aquisições (mergers & acquisitions) no mercado brasileiro, em 2020, equivaleu a 1.038 transações, um aumento de 14% em relação ao mesmo período de 2019, com 912 transações. O número já seria espantoso por si só. Mas causa ainda mais surpresa quando se percebe que sua apuração leva em conta um ano impactado duramente pela crise econômica provocada pela pandemia do covid-19.

A alvissareira notícia, porém, deixa na boca um gosto doce-amargo para aqueles que atuam na área. A perspectiva de aumento no volume de operações traz à pauta preocupação antiga, mas que não perde atualidade, sobre a adequação do sistema jurídico brasileiro em oferecer um ambiente juridicamente seguro para o desenvolvimento do mercado de fusão e aquisição de empresas.

A provocação tem origem no fato de que, no Brasil, contratos desse tipo não possuem previsão específica em lei. Seu funcionamento e os limites daquilo que é e não é permitido são frequentemente determinados pela própria prática dos contratantes e, com menor frequência, pela jurisprudência e doutrina.

E o que é pior: esses mundos - o aplicador do direito e a literatura jurídica - nem sempre se conversam, surgindo dessa falta de diálogo opiniões divergentes nos mais variados assuntos envolvendo transações de M&A.

Valendo-se da ampla liberdade conferida pelo Direito Civil, advogados negociam pelos seus clientes com base no que consideram experiências bem-sucedidas - isto é, operações (ainda) não submetidas à apreciação de um juiz ou árbitro ou que, ainda que tenham sido apreciadas, não chegaram a ser consideradas fundamentalmente ilegais - e na prática contratual de outros países, sobretudo a dos Estados Unidos. O parâmetro, assim, não é tanto a compatibilidade da estrutura contratual às regras jurídicas vigentes no Brasil; antes, a frequência de sua utilização na prática e a ausência de questionamento da sua legalidade em alguma contenda de que se teve notícia.

Tal maneira de agir conduz à estranha situação em que determinada prática contratual encontra boa ressonância no mercado e ganha ares de legalidade sem que se tenha investigado sua real conformidade com a legislação brasileira, ou até mesmo ponderado possíveis custos de transação decorrentes da apreciação, por juízes ou árbitros brasileiros, de mecanismos contratuais importados do estrangeiro.

A jurisprudência, de sua parte, não raro apresenta comportamento vacilante na apreciação de conflitos em contratos de M&A. Avessos à ideia de interferir no que foi livremente pactuado, os aplicadores do direito muitas vezes justificam decisões tímidas alegando desconhecimento de institutos jurídicos estrangeiros. A postura, embora deva ser aplaudida por demonstrar desejada cautela, tem um lado pernicioso, ao pôr em xeque a efetividade do sistema jurisdicional, sujeito a levar a pecha de omisso diante da lesão ou ameaça de violação aos direitos dos cidadãos.

Há, por fim, a doutrina. Ocupada em assimilar conceitos jurídicos de outros países em vista dos institutos e princípios que vigoram em nosso sistema legal, a literatura jurídica, nesta tarefa, acaba muitas vezes pecando por teorismos e abstrações em excesso. Isso a torna alvo fácil de críticas, na medida em que sua utilidade como fonte de orientação de comportamento para os agentes de mercado mostra-se reduzida.

Casos recentes que ilustram esse quadro jurídico tormentoso não faltam: o embate entre Laureate e Ser Educacional envolvendo cláusula de go-shop; a contenda entre J&F e Paper Excellence pelo controle da Eldorado, por não cumprimento da cláusula de condições precedentes; e a disputa pela compra da Linx entre Stone e Totvs, que versa sobre cláusula de no-shop e cláusula de break-up fee e que despertou o debate para os limites da autonomia privada dos contratantes ao estabelecerem obrigações excessivamente onerosas. 

Mas o que fazer para permitir um maior diálogo entre esses três mundos?

Aos advogados cabe agir com moderação e reflexão crítica na formulação de contratos com conceitos importados. Soluções contratuais bem sucedidas lá fora não necessariamente aproveitarão aqui da mesma receptividade. Afinal, cada país dispõe de um sistema legal com lógica e valores próprios, a refletir um contexto econômico, cultural, social e histórico de todo particular.

Igualmente apropriado se mostra manter um atento olhar às lições desenvolvidas pela doutrina. Incompreensivelmente, não é incomum notar em advogados certo desdém para o que é produzido pela literatura jurídica, apontada como sendo teórica e descolada da realidade dos negócios. Esquece-se, contudo, que a doutrina é onde juízes e árbitros vão buscar respostas quando a lei e a jurisprudência não as oferecem.

No âmbito da jurisprudência, impõe repensar a real utilidade do sigilo das arbitragens e quais os seus limites. Grande parte das discussões envolvendo contratos de M&A costuma ser resolvida por arbitragem, procedimento sigiloso como regra - ao contrário de processos judiciais, geralmente públicos. Com isso, não se uniformizam entendimentos e não se formam parâmetros de interpretação das regras jurídicas.

Aos doutrinadores, por fim, cabe buscar soluções que conciliem a perspectiva normativa com a dinâmica econômica contida no contrato. O dado econômico não pode ser negligenciado pelo Direito. Na célebre observação de Vincenzo Roppo, o contrato nada mais é do que a veste jurídica de uma operação econômica.

Um ambiente jurídico com regras pouco previsíveis e estáveis tornam os negócios mais complexos e arriscados. Isso por sua vez implica elevados custos de transação e investidores temerosos. É passada a hora, portanto, de a discussão ser retomada.

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1 Relatório preparado pela PwC Brasil, disponível em clique aqui.

Rafael Setoguti J. Pereira

Rafael Setoguti J. Pereira

Advogado. Professor do Insper, mestre em direito comercial pela Universidade de São Paulo.

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