MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Dos riscos complexos à evolução sistêmica do direito dos desastres: Algumas lições da pandemia covid-19

Dos riscos complexos à evolução sistêmica do direito dos desastres: Algumas lições da pandemia covid-19

A pandemia traz a oportunidade de uma reativação transformadora. Todo desastre representa uma oportunidade de aprendizado e, portanto, aprimoramento jurídico, social, econômico e científico.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Atualizado em 23 de abril de 2021 09:01

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O desastre causado pelo SARS-CoV-2 e suas variantes tem em sua origem uma incógnita não completamente desvelada pela ciência.  Algumas análises genômicas sugerem que o vírus provavelmente evoluiu de uma cepa encontrada em morcegos.¹ Todavia, no último dia 31/03/21, a Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgou o relatório de sua visita de campo a Wuhan, realizada entre 14 de janeiro a 10 de fevereiro de 2021. No documento pede "mais estudos, dados sobre a origem do vírus SARS-CoV-2, reitera que todas as hipóteses permanecem abertas" e reconhece que "encontrar a origem de um vírus leva tempo", e que "nenhuma jornada de pesquisa pode fornecer todas as respostas".² A postura da OMS comunica algo importantíssimo sobre o tempo da ciência, e a necessidade do distanciamento histórico do fato social investigado para o melhor desenvolvimento científico. De toda forma, a continuidade das investigações sobre a origem do vírus não retira da pandemia a característica de desastre, que também pode ser reconhecida pela magnitude do evento e impacto nos subsistemas sociais em âmbito global.

Embora inúmeras perguntas persistam, a pandemia covid 19 já é pedagógica. A dualidade é uma das características do desastre. Se por um lado representa perdas e danos, por outro é um importante orientador de condutas para o futuro, desde que o aprendizado seja internalizado pelas pessoas, estruturas e instituições. A realidade de um desastre coletivo, coloca a todos, profissionais da área do direito ou não, a necessidade de repensar o status quo, o que deu certo, o que não foi bem-sucedido e de que forma aprimorar. Orienta a revisão de comportamentos, conceitos, classificações, legislações, bem como a assimilação de uma série de lições. 

O primeiro aspecto a ser ressaltado nesse contexto diz respeito à necessidade de revisão e atualização regulares dos quadros e grupos de categorização em matéria de ameaça e desastre. Ameaças são, por natureza, dinâmicas, logo, as definições e terminologias devem se adaptar a essa realidade. Em sua definição clássica, o desastre é entendido como "uma séria interrupção do funcionamento de uma comunidade ou sociedade em qualquer escala, devido a eventos que interagem com condições de exposição, vulnerabilidade e capacidade"³ (tradução livre). A interação entre ameaças "naturais" e ações ou omissões humanas, tradicionalmente vislumbradas por meio de estruturas urbanas, rurais e tecnológicas vulneráveis e de risco, orienta o reconhecimento da sobreposição de desastres híbridos em detrimento, por exemplo, dos "desastres naturais," e não permite desconsiderar o envolvimento humano no centro desse processo. Por que isso importa para o Brasil, ao Direito dos Desastres4 e outros ramos do direito correlatos? Porque temos uma classificação e codificação brasileira de desastres (Cobrade),5 assim como um arcabouço normativo específico que devem pautar-se pelo que há de mais contemporâneo, com vistas a serem farol de uma gestão de risco e de desastre efetiva e eficiente. Ademais, a forma como falamos sobre desastres, a maneira como os descrevemos e comunicamos, as metáforas que utilizamos, importa. As narrativas influenciam na conformação de legislações e políticas, e são determinantes para a delimitação de obrigações e responsabilidades.

Um segundo ponto, diretamente relacionado ao primeiro, liga-se à necessidade de abordar ameaças e riscos complexos e em cascata. Ou seja, há que se reconhecer a urgência de investigar as ligações e efeitos diretos e indiretos das ameaças naturais e as induzidas pelo homem, a fim de melhor identificar e compreender ameaças e riscos complexos e em cascata de forma sistemática. Por influência do desastre causado pelo vírus SARS-CoV-2, essa visão passou a ser defendida com maior ênfase pelo Escritório da ONU para Redução de Risco de Desastres (UNDRR) e o Conselho Internacional de Ciência (ISC). Nesse sentido, há uma orientação para que esforços sejam empenhados com vistas a aprimorar a compreensão e a natureza sistêmica do risco, incluindo a gestão de riscos sistêmicos. O reconhecimento de uma definição ampliada de ameaça como um processo, fenômeno ou atividade humana, requer um exame da relação entre os conceitos de ameaça, exposição, vulnerabilidade e capacidade.6

A noção de riscos sistêmicos contribui para esse desiderato, assim como representa uma ponte entre os estudos sobre risco e a ciência da complexidade. "Riscos sistêmicos são consequências dos sistemas altamente interligados e rede de riscos criados pelo ser humano. O fato de as redes serem interdependentes os torna ainda mais vulneráveis a falhas abruptas. Essas interdependências em um mundo hiperconectado estabelece hiperriscos",7 que podem levar a uma grande perturbação ou até mesmo o colapso de todo um sistema. Riscos complexos estão ligados a falhas em cascata, que são causados por "eventos desencadeadores". Por exemplo, muitas das chamadas ameaças naturais são influenciadas ou mesmo causadas por intervenções humanas. Este é o caso, por exemplo, das ameaças biológicos e das mudanças climáticas como fator que contribui para a propagação de doenças. Ou seja, considerando que mesmo os maiores riscos podem ser amplificados, novas vulnerabilidades resultam das crescentes interdependências entre os sistemas, dentre eles, os ecossistemas e o clima.

A ciência convive com essa interdependência, atitude que deve influenciar outros subsistemas sociais como direito, a política e a economia. Riscos sistêmicos demandam uma abordagem jurídica altamente interdisciplinar, tal qual se vislumbra nas bases estruturantes do Direito dos Desastres, que desempenha uma função pendular orientadora do processo de governança e políticas públicas voltadas à redução de vulnerabilidades e riscos por um lado, e ao estímulo à resiliência das comunidades atingidas por desastres por outro.

Sistemas complexos resultantes de interações não lineares, possuem algumas características típicas, que ao invés de apresentarem uma relação de equilíbrio, podem se mostrar profundamente diversificados. Isso ocorre porque além da não linearidade, possuem pontos de inflexão. Dessa forma, o estado permanência se dá em um período indefinido, mas uma vez que atinge determinado ponto, tudo muda drasticamente e em um período muito curto de tempo.  Por essa razão, a própria noção de plano de contingência precisa considerar o pior cenário possível.

Talvez pela complexidade, pelo fato de não serem lineares em suas relações causa-efeito, ou mesmo serem relativamente comuns, os riscos sistêmicos costumam ser subestimados tanto pela gestão pública, quanto pela sociedade. A mudança climática é um exemplo típico, de um fenômeno desencadeador publicamente conhecido, mas que carece de uma abordagem de governança coerente e, acima de tudo, eficaz. E nesse aspecto, vislumbra-se um terceiro ensinamento ou chamado da pandemia.

Todo risco de desastre requer uma estratégia forte de governança, mas os riscos sistêmicos a demandam ainda mais. A governança de risco sistêmico vai além da análise de risco tradicional para incluir o envolvimento e a participação de vários atores, bem como considerações dos contextos jurídicos, políticos, econômicos e sociais mais amplos, nos quais um risco é conhecido, avaliado e monitorado (gerenciado). O White Paper sobre Governança de Risco, do Conselho Internacional de Governança de Risco (IRGC), há alguns anos destacou que essa deveria ser uma "abordagem integrada, holística, interdisciplinar, transdisciplinar e adaptável."8

A abordagem de governança dos riscos e de desastres da atualidade precisa orientar-se cada vez mais pela observação das interações entre às ameaças naturais e as ações induzidas pelo homem, aportar contribuição de diversos atores e estratégias de comunicação, sintonizar atuação intrainstitucional e interinstitucional, isso tudo sem esquecer do papel da sociedade civil e comunidades. Envolve ação coordenada a nível comunitário, nacional, regional e local a fim de gerenciar riscos e reduzir a ocorrência de desastres, onde cidadãos articulam direitos, obrigações e têm ciência de potenciais responsabilidades.

Trata-se de um momento ímpar de uma reativação transformadora que aponta para alguns caminhos. Um deles parece ser a observância convergente das orientações do Quadro Sendai para Redução do Risco de Desastres 2015-2030; Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 e Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas. Uma série de agendas e políticas públicas precisam de articulação para dar efetividade aos objetivos propostos por esses documentos, mas esta parece ser a forma mais sensata de enfrentar jurídica, política e economicamente riscos sistêmicos e suas perdas e danos, quando materializados. A pandemia ressalta que a observação apenas dos possíveis impactos diretos de algumas ameaças, sem atentar para possíveis interações, fatalmente resultará em projetos e projeções inadequados. Exemplos de ação contrária à abordagem de governança dos riscos podem ser vislumbrados quando um município se propõe a atualizar o plano diretor sem conversar com a defesa civil; pelo planejamento urbanístico que desconsidera a agenda climática; ou mesmo pelo parcelamento do solo urbano que desrespeita a legislação ambiental. Este é um momento de releitura e alinhamento de uma série de agendas, como a ambiental, climática, de saneamento, regularização fundiária, educacional, dentre outras.

A pandemia exalta, ainda, a importância do local, e de se desenvolver instituições e estruturas do Município, onde realmente ocorre ou deve ocorrer a gestão de riscos e desastres. No Brasil, a expressão "proteção e defesa civil" representa um conjunto de ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação da mais alta relevância para o bom funcionamento do município. Sua efetivação, na prática, requer uma série de mudanças que demandam tempo e articulação de vontade política e do executivo para, dentre outras necessidades, garantir que níveis suficientes de capacidade e recursos sejam disponibilizados para prevenir, preparar, gerenciar e se recuperar de desastres. Há, contudo, um passo fundamental, cujo diferencial ressoaria de imediato no bem-estar da população. Trata-se do reconhecimento por parte do gestor público, acerca do que representa defesa civil municipal, e de sua importância no contexto da boa administração pública.

A pandemia é um momento mais do que oportuno para que se possa observar, atentamente as ressonâncias produzidas pelos desastres nos sistemas sociais, em especial nos subsistemas do Direito e da Política, acopladamente compreendidos como Estado de Direito.9 Sabe-se que não são poucos os desafios que o desastre em curso traz. Por outro lado, importante lembrar que a legislação brasileira é clara ao estabelecer que é "dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre". E que "a incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco."10

O gestor público municipal da contemporaneidade tem papel de destaque nessa quadra da história. O direito fundamental à boa administração, disciplinado na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, é entendido como o direito à administração pública eficaz e eficiente. Hoje, mais do que nunca, o atendimento a esse desiderato comtempla o gerenciamento de risco e de desastre. Nesse âmbito, o fortalecimento da Defesa Civil está atrelado ao princípio do interesse público, finalidade almejada de toda atividade administrativa.

Que o momento de crise sirva como farol para os tempos de normalidade.

_________

1. CHAN, Jasper Fuk-Woo et al. Genomic characterization of the 2019 novel human- pathogenic coronavirus isolated from a patient with atypical pneumonia after visiting Wuhan. Emerg Microbes Infect, v.9, 1, p. 221-236, 2020.

2. Disponível aqui.

3. Disponível aqui.

4. Apenas a título exemplificativo: lei 12.340/10; lei 12608/12, lei 12.983/12, dentre outras legislações e regulamentos.

5. Disponível aqui.

6. UNISDR (United Nations Office for Disaster Risk Reduction). 2015. Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015 - 2030. Geneva. UNISDR. Disponível aqui.

7. HELBING, Dirk. Globally networked risks and how to respond. Nature, v. 497, 7447, p. 51-59, 2013, p. 51-52

8. International Risk Governance Council (IRGC). 2005. Risk governance. Towards an integrative approach. Geneva. IRGC. Retrieved from. Disponível aqui.

9. DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A formação sistêmica de um Direito dos Desastres. Disponível aqui.

10. BRASIL. lei 12.608 de 10 de abril de 2012. Disponível aqui.

Fernanda Dalla Libera Damacena

Fernanda Dalla Libera Damacena

Advogada e Consultora no escritório Dalla Libera & Ambrozio Advogados Associados. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade de Caxias do Sul. Autora de obras e artigos sobre Direito dos Desastres e Direito Ambiental.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca