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Dano moral de pessoa jurídica de Direito Público por ato de corrupção

Ignorar a prática jurisprudencial no exercício da administração é relegar ao Judiciário sobrecarga desnecessária e ineficiente.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Atualizado às 10:25

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em um Estado que se pretende democrático e de direito, há a premissa básica de que decisão judicial se cumpre, mas se discute. É justamente a discussão que permite o desenvolvimento do Direito e de suas instituições. A argumentação é corolário norteador dos paradigmas epistemológicos da Administração Pública, que não mais pode ser reflexo de postural autoritária e refratária. A legitimidade dos atos da administração reside no grau de coesão dialógica que ela consegue imputar.

A administração prudencial impõe que os paradigmas das ratio decidendi dos tribunais em suas práticas judicantes sejam observadas no momento da edição de ato administrativo, ainda que tal jurisprudência não seja de observância obrigatória por força de efeito vinculante.

Ignorar a prática jurisprudencial no exercício da administração é relegar ao Judiciário sobrecarga desnecessária e ineficiente. De igual modo, deve-se observada a necessidade de respeito aos próprios precedentes da administração¹, em respeito, dentre outros, ao princípio da impessoalidade, que impede o tratamento desigual a situação de similaridade teórica.

Para tudo isto ocorrer, é necessário empreender mecanismos de profissionalização da administração pública, onde a técnica seja o princípio reinante nas escolhas administrativas. Pois bem.

Diante da tais premissas, sobressai aos olhos, quando da leitura da interpretação eleita pelo Superior Tribunal de Justiça, o cabimento de dano à moral de pessoa jurídica de direito público. Por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.258.389, a Corte concluiu pelo descabimento com fulcro em duas teses principais: (i) a interpretação evolutiva da eficácia dos direitos fundamentais  não permite concluir ser cabível que estes tenham eficácia protetiva do poder público em face de privados; (ii) a indenização por dano moral à pessoa jurídica apresenta cunho pragmático, tratando-se, em verdade, de dano material de difícil definição de quantum.

No tocante ao segundo argumento, é preciso se ter fidedignidade a premissa teórica que se adote. Por bem se adote o cabimento da tese do dano moral à pessoa jurídica por lesão à honra subjetiva; ou, por bem, se adote seu descabimento. Realizar mistura hermenêutica para orientar institutos não condiz com a boa técnica. Com isso, aqui, adota-se a postura clara pelo cabimento da reparação por dano à moral de pessoa jurídica diante da ofensa de bem jurídico extrapatrimonial consistente na honra objetiva.

Ademais, há a necessidade de respeito à coerência aos próprios julgados da Corte. Sobreleva notar que o Superior Tribunal de Justiça admite o manejo da Ação Civil Pública com o fim de requerer reparação por dano moral coletivo e dano social.

Nessa vereda, portanto, a possibilidade do ajuizamento de demanda coletiva com o fim de obtenção de reparação por dano moral coletivo, apesar de certa resistência doutrinária², deve ser admitida.³ É facilmente demonstrável a possibilidade deste tipo de dano nos casos de violação ao patrimônio público, mormente em decorrência da prática de atos de corrupção.4

Com efeito, o nosso ordenamento jurídico possui normas jurídicas que fundamentam a possibilidade do dano moral coletivo, quais sejam, art. 5º, X, CR/88; art. 1º, caput, LACP e art. 6º, VI, CDC.5

Poder-se-á, ainda, seguindo esta toada, sustentar a possibilidade de a reparação por dano moral ser requerida no bojo da demanda de improbidade administrativa quando for narrada lesão à moralidade e probidade, conforme reconhecido pelo próprio STJ6, desde que exista a demonstração de que houve efetiva lesão à valores coletivos.7 Tal assertiva, por aplicação lógica das regras do microssistema de tutela do patrimônio público, poderá ser estendida para a ação civil pública prevista no art. 21, da lei Anticorrupção.

Além dos danos morais coletivos, também poderá ser requerida a reparação dos danos sociais, assim entendidos como aqueles que não geram somente lesões patrimoniais ou morais, mas que atingem toda a sociedade, com um direto rebaixamento da qualidade de vida da coletividade.8 Tal exercício judicial da pretensão de reparação dos danos sociais, conforme julgado do Superior Tribunal de Justiça, é exclusivo para demandas coletivas.9

Em relação ao primeiro argumento, um resgate histórico permite realizar algumas inferições: (i) originalmente, os direitos fundamentais serviam de proteção de privados em face do poder estatal; (ii) posteriormente, consagrou-se a tese de eficácia horizontal de direitos fundamentais, ou seja, a defesa de direitos fundamentais tem eficácia entre particulares.

Contudo, o fato de o momento histórico não ter concebido, até o presente, a eficácia dos direitos fundamentais em prol do poder público em face dos particulares não parece ser impeditivo teórico apriorístico para negar-lhes existência. Inclusive, vale destacar que o momento histórico diverso é capaz de ensejar o distinguishing hermenêutico histórico para amparar.

Atualmente, o papel desenvolvido pelas pessoas jurídicas de direito público é muito diverso daquele desempenhado em momento anterior, razão pela qual, já serviria de fundamento suficiente para ensejar uma releitura de institutos e interpretações clássicas.

A adaptabilidade dos institutos, sem desnaturá-los, é consequência do que Zygmunt Bauman avoca como modernidade líquida. A liquidez dos institutos é fundamental para sua operacionalização em mundo contemporâneo que demanda constante adaptação. Dar as mesmas respostas, quando as perguntas foram alteradas em nada contribui para o desenvolvimento social.

Em matéria de direitos fundamentais, o corolário é a emancipação da tutela da dignidade da pessoa humana, sob os seus mais variados aspectos. Interpretações estanques e restritivas em nada contribui para a máxima efetivação dos direitos fundamentais, razão fundante da república federativa do Brasil.

Refutar a ideia de que a administração pública é detentora de moral que merece tutela é desguarnecer valores de profissionalização da administração gerencial, comprometida com o atingimento de fins públicos democráticos.

Ademais, os padrões éticos, a eficiência administrativa e o controle da gestão pública são características indissociáveis da gestão pública pós-moderna.10

Da mesma forma que a Administrativa precisa ter seus atos orientados pela higidez da probidade administrativa, aqueles que com ela celebram atos, sejam por vínculos estatutários ou pelas vias contratuais, precisam nortear a sua conduta pela mais correta atuação.

Aqueles que violarem os deveres anexos da boa-fé das relações, sejam contratuais ou estatutárias, devem responder pelos danos materiais a que concorrerem e, também, pela lesão à moral a instituição que veio a abalar.

A credibilidade institucional da administração pública é bem jurídico que merece tutela reforçada no ordenamento, razão pela qual também permite a sua possibilidade de pleitear reparação por dano a sua reputação através de ações indenizatórias por dano moral.

À guisa de ilustração, O art. 5º da lei Anticorrupção indica que são tutelados os seguintes bens jurídicos: patrimônio público nacional ou estrangeiro, os princípios da administração pública e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

O primeiro deles encontra-se definido no art. 1º, §1º da lei de Ação Popular, como "bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico", bem como os arts. 98 e 99, do Código Civil e o art. 1º, I, III e VIII, da LACP.11 Além disso, também se protege o patrimônio público estrangeiro12.

A lei Anticorrupção, por toda a sua sistemática, tutela as parcelas econômica e não econômica do patrimônio público, pois este abarca os bens imateriais que pertencem a todos os indivíduos e compõem, juntamente com os bens materiais, o patrimônio cultural, ambiental e moral.13

Os princípios da Administração Pública, por sua vez, não se limitam àqueles expressos no art. 37, caput, da CR/88, mas incluem todos os princípios orientadores da atividade estatal, previstos de forma expressa ou implícita no ordenamento jurídico pátrio, tais como: licitação pública, prescritibilidade dos ilícitos administrativos, responsabilidade civil da Administração, isonomia, motivação, autotutela, continuidade da prestação do serviço público, razoabilidade e economicidade.

Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, por seu turno, dizem respeito a diversos instrumentos jurídicos regulados no âmbito do Direito Internacional, como tratados, convenções, protocolos e acordos.14 Sobre o tema de combate à corrupção15, podem ser elencadas as seguintes convenções assinadas e ratificadas pelo Brasil: Parceria para Governo Aberto; Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC), ratificada pelo Decreto Legislativo 348/2005 e promulgada pelo Decreto Presidencial 5.687/06; Convenção Interamericana contra a Corrupção (CICC), elaborada pela OEA, ratificada pelo Decreto Legislativo 152/2002 e promulgada pelo Decreto Presidencial 4.410/02 e Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, elaborada no âmbito da OCDE, ratificada pelo Decreto Legislativo 125/2000 e promulgada pelo Decreto Presidencial 3.678/2000.

Assim, servidor público ou contratado da Administração Pública que pratique ato que viole a reputação da pessoa jurídica de direito público deverá responder por ressarcimento por danos morais.

Como exemplo, podem ser citados diversos escândalos de corrupção envolvendo pessoas jurídicas de direito público (Estados, Município, União, empresas públicas e sociedades de economia mista). Nestes casos, são legitimados passivos aqueles servidores, bem como as contratadas que concorreram para a prática do dano.

Frise-se, aqui, que não se trata de faculdade do ente público em demandar em face daqueles que causaram lesão, pois a Administração não tem poderes de não fazer, ou seja: diante da identificação da lesão ao patrimônio moral da pessoa jurídica público é dever de seus representantes empreender os meios disponíveis no ordenamento jurídico para retornar o status quo ante da moral administrativa, sob pena de ser passível de responsabilização por omissão.

Relembrando as lições do saudoso professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto: à Administração não é facultado poderes, e sim deveres.

O dever de probidade administrativa tem eficácia irradiante para toda Administração Pública e deve orientar a interpretação dos institutos existentes no ordenamento jurídico, sob pena de tornar letra morta o ditame constitucional de administração pública eficiente.

O caráter poliédrico dos comportamentos de corrupção exige a necessidade de buscar uma coerência sistêmica da aplicação das regras previstas no microssistema de tutela do patrimônio público, com a possibilidade de complementar as regras já existentes.16

Por fim, forçoso concluir que os bens jurídicos protegidos pelas normas que compõem o microssistema de combate à corrupção, por certo, englobam o patrimônio público com a necessidade de uma reparação em decorrência de qualquer tipo de lesão verificada.

_____________

1. Sobre precedentes administrativo, vale a leitura: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Precedentes no Direito Administrativo. São Paulo: Método, 2018.

2. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela dos direitos coletivos e tutela coletiva dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 41-43.

3. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Processo Coletivo. 11ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 351. LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 270.

4. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Processo Coletivo. 11ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 351.

5. GÓES, Gisele. O pedido de dano moral coletivo na ação civil pública do Ministério Público. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita (coord.). Processo Civil Coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 470-481. RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, v. 25, p. 81. BITTAR FILHO, Carlos Alberto. "Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, v. 12, p. 50.

6. REsp 1681245/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., j.15.08.2017. Na doutrina, vale mencionar MOREIRA, Egon Bockmann; BAGATIN, Andreia Cristina; ARENHART, Sérgio Cruz; FERRARO, Marcella Pereira. Comentários à lei de Ação Civil Pública. Revisitada, artigo por artigo, à luz do Novo CPC e Temas Atuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 85.

72ª Turma, AgRg no AREsp 809.543/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, j. em 8/3/16; REsp 1221756/RJ, Rel. Min. Massami Uyeda, 3ª T., j. 2/2/12; REsp 1.145.083/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., DJe 4/9/12; REsp 1.178.294/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª T., DJe 10/9/10; AgRg nos EDcl no Ag 1.156.486/PR, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª T., DJe 27/4/11; REsp 1.120.117/AC, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª T., DJe 19/11/09; REsp 1.090.968/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJe 3/8/10; REsp 605.323/MG, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Albino Zavascki, 1ª T., DJ 17/10/05; REsp 625.249/PR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJ 31/8/06, entre outros REsp 1328753/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., j. 28/5/13.

8. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano da responsabilidade civil: o dano social. Revista Trimestral de Direito Civil. Ano 5, vol. 19, jul-set, p. 211-218. Rio de Janeiro: Padma Ed.

9. Rcl 12.062/GO, 2.ª S., rel. Min. Raul Araújo, j. 12.11.2014.

10. NEVES, Daniel Amorim Assumpção e OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade administrativa - direito material e processual. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 3.

11. MARINELA, Fernanda; PAIVA, Fernando; RAMALHO, Tatiany. lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 86.

12. BITTENCOURT, Sidney. Comentários à lei Anticorrupção, 2ª edição, São Paulo: RT, 2015, p. 56.

13. PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JÚNIOR, Rubens Naman. lei Anticorrupção - origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 54.

14. BITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção, 2ª edição, São Paulo: RT, 2015, p. 57.

15. NEVES, Daniel Amorim Assumpção e OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade administrativa - direito material e processual. 8ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 329.

16. PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JÚNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção - origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 17.

Thaís Marçal

Thaís Marçal

Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

Fabrício Rocha Bastos

Fabrício Rocha Bastos

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro - Doutorando e Mestre pela Università Degli Studi di Roma Tor Vergata - Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - Membro do International Association Of Prosecutors.

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