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Lei 14.133/21 e expectativas emergentes no plano das licitações e contratações públicas

A redação da "nova lei de Licitações", como já é popularmente conhecida a lei 14.133/21, revela opção legislativa de integrar os institutos já existentes em legislação esparsa e positivar práticas já conhecidas, acrescentando-lhes inovações potencialmente revolucionárias.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Atualizado às 07:46

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em vigor desde 1º de abril de 2021, a lei 14.133/21 é o novo marco legal dos procedimentos licitatórios e das contratações públicas, carregando consigo grandes e legítimas expectativas de efetivas mudanças em tais procedimentos no Brasil. Em dois anos, o novo diploma substituirá a lei Geral das Licitações (lei 8.666/93), assim como a lei do Pregão, lei 10.520/02 e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, lei 12.462/11, sendo possível que até o final do biênio a Administração Pública opte por qual normativo licitará, indicando-o expressamente no instrumento convocatório, vedada a aplicação combinada, art. 191.

A redação da "nova lei de Licitações", como já é popularmente conhecida a lei 14.133/21, revela opção legislativa de integrar os institutos já existentes em legislação esparsa e positivar práticas já conhecidas, acrescentando-lhes inovações potencialmente revolucionárias, perseguindo a ambiciosa e necessária missão de conferir maior qualidade e eficiência nas contratações públicas no país, ao mesmo passo em que se tenta combater a corrupção crônica em tais procedimentos.

Dentre os diversos destaques do novo marco legal, comenta-se inicialmente sobre significativas alterações nas modalidades de licitações, ao exemplo da extinção da carta convite e da tomada de preços, afastando o critério de valor na determinação das modalidades. Especula-se que a extinção da carta convite funcionará como um desestímulo às fraudes frequentemente associadas à modalidade, enquanto a extinção da tomada de preços seria decorrência lógica da supressão exercida pela modalidade de concorrência, agora dotada de maior celeridade pela inversão de fases (como regra, o julgamento de propostas antecederá à fase de habilitação), importada do pregão, (art. 4º, lei 10.520/02) e do RDC, (art. 12, lei 12.462/11).

Outra relevante mudança é o advento do diálogo competitivo, art. 28, inc. IV e art. 32, nova modalidade de licitação dividida em duas fases: a primeira consiste no diálogo entre a Administração Pública e licitantes previamente selecionados por critérios objetivos, visando o desenvolvimento de alternativas capazes de solucionar impasses e conferir eficiência na execução de contratações públicas complexas; com a apresentação das propostas finais, inicia-se a segunda fase, esta competitiva. O diálogo competitivo advém de literal tradução da língua inglesa (competitive dialogue) de procedimento previsto desde 2004 nas Diretivas de Contratações Públicas da União Europeia e prestigia a consensualidade no âmbito administrativo, aproximando pelo diálogo a Administração Pública da expertise dos particulares para temas complexos, normalmente relacionados a inovações tecnológicas. A nova modalidade é recebida com euforia, mas já se delineiam alguns pontos de atenção, como o estabelecimento de critérios objetivos para pré-seleção dos licitantes¹, art. 32, §1º, incs. I e II, a confidencialidade dos documentos sensíveis dos particulares, o risco de cherry picking, entre outros receios que apenas o tempo responderá.

Mais um aspecto relevante é o forte estímulo provocado pela nova lei para a concretização de princípios constitucionais sendo mantido o destaque para a necessária observância de princípios e regras jurídicas constitucionais, como igualdade, transparência, publicidade, moralidade, desenvolvimento sustentável e tantos outros, a lei 14.133/021 vai além ao estabelecer ações afirmativas e verdadeiros métodos para efetivação desses princípios que transpassam o microssistema licitatório. Pensando nisso, podem ser destacadas algumas inovações legislativas diretamente relacionadas com as garantias constitucionais, a iniciar pelo art. 25, §9º, em que o legislador oferece a possibilidade ao edital de exigir que o percentual mínimo da mão de obra seja constituído de "mulheres vítimas de violência doméstica", inciso I, e "oriundos do sistema prisional", inciso II. Em sentido semelhante, o art. 60, inciso III, estabelece que o 3º critério de desempate é o "desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho", ao passo que o 4º critério é o "desenvolvimento pelo licitante do programa de integridade", que significa, em resumo, a adoção de mecanismos para denúncia de irregularidades e aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta.

Assim, percebe-se que ao estabelecer tais ações afirmativas, a lei 14.133/21 privilegia a valoração do trabalho humano e a existência digna dos cidadãos, nos termos do art. 170, VII e VIII, CF, mormente ao considerar que tais grupos, mulheres em situação de violência e ex-detentos, em regra, se encontram em posição de extrema vulnerabilidade econômica e social.

Dessa forma, a legislação federal também encontra guarida no art. 5º da CF, que estabeleceu, no primeiro dos setenta e oito incisos, a equidade entre homens e mulheres; no art. 1º, III e IV, que traz a dignidade humana e os valores sociais do trabalho; bem como a concretização dos objetivos do país determinados pelo art. 3º, CF, que, dentre outros, traz a promoção do bem sem discriminação e redução das desigualdades sociais. Deve ser ressaltado, entretanto, que há um valor a ser investido para a promoção dessas ações afirmativas e, caso não sejam bem aplicados e fiscalizados, pode se tornar uma medida sem qualquer proveito social e com desperdício de verbas públicas.

Sobre a perspectiva do cumprimento dos princípios básicos da Administração Pública, precipuamente no que tange a publicidade e eficiência, art. 37, caput, e §1º, CF, a lei 14.133/21 tem como um de seus principais propósitos a desburocratização. A contradição aparente causada por sua extensão e complexidade é logo justificada pelo tamanho descompasso entre as previsões normativas até então vigentes e a realidade informatizada em ascensão experimentada no plano social brasileiro - e global.

Exemplificativo do empenho da nova lei de Licitações em modernizar e desburocratizar as licitações e contratações públicas é a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas ("PNCP"), art. 174. Trata-se de site oficial, que concentrará diversos atos procedimentais, assim como informações cadastrais e gerenciais, conferindo-lhes publicidade e promovendo a transparência e participação da sociedade civil, especialmente pelo sistema de gestão compartilhada de informações referentes à execução dos contratos. Indaga-se, entretanto, se esse padrão exigido pelo art. 94 da nova lei respeita as particularidades de um país com regiões de acesso à internet desigual, o que acaba trazendo como solução as disposições da LINDB, aplicada à nova lei de licitações por intermédio do art. 5º, para que sirvam como alternativa para adequar a realidade de cada região do país.

Além da desburocratização, o combate à corrupção tem sido umas das grandes bandeiras da sociedade brasileira nos últimos anos. Em resposta, a nova lei inseriu um novo capítulo ao Código Penal, que promove um claro enrijecimento das penalidades aplicadas: praticamente todos os tipos penais que já existiam passaram por uma elevação das penas. Além disso, novas condutas foram tipificadas, como é o caso dos crimes de frustação de caráter competitivo de licitação, art. 337-F do CP, patrocínio de contração indevida, art. 337-G, modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo, art. 337-H, perturbação de processo licitatório, art. 337-I, violação de sigilo de licitação art. 337-J, afastamento de licitante art. 337-K, fraude em licitação ou contrato administrativo, art. 337-L, contratação inidônea, art. 337-M, impedimento indevido, art. 337-N, e omissão grave de dado ou de informação por projetista, art. 337-O.

Similarmente, sanções cíveis também foram inseridas no corpo da nova lei. Dentre essas medidas, destaca-se a Desconsideração da Personalidade Jurídica, agora prevista no art. 160 da nova lei de licitações, para os casos em que: "...utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial". Tudo isso com o objetivo de efetivar os valores de moralidade prescritos no texto constitucional de 1988.

Portanto, considerando que o instrumento para contratação promovida pela Administração Pública deve ter como finalidade efetivar a Constituição da República nos processos licitatórios - pois, caso contrário, contradiria o próprio interesse público - conclui-se que a lei 14.133/21 persegue tal finalidade máxima, justificando o entusiasmo de muitos. É aconselhável, todavia, certa dose de ceticismo e cautela acerca da eficácia das inovações trazidas pela nova lei de licitações no Brasil, visto que os paradigmas que se pretendem alterar representam indubitavelmente um enorme desafio. Por fim, segundo ensinamentos de Carlos Ayres Britto, fica o convite:

"Busquemos, assim, na tela da Constituição as imagens que fazem da licitação um vívido instituto jurídico. É o mesmo que falar: pincemos diretamente do Magno Texto as regras que dão à licitação uma perfeita identidade jurídica, assim como os princípios que com ela mantêm uma relação de maior pertinência lógica" (BRITTO, Carlos Ayres. O Perfil Constitucional da Licitação. Curitiba: Znt Editora, 1997. p. 13)

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1 No direito europeu a Administração Pública exerce sua discricionariedade na pré-seleção dos licitantes do diálogo competitivo.

Laura Cardoso Kalil Vilela Leite

Laura Cardoso Kalil Vilela Leite

Advogada integrante do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

Natália Rocha Damasceno

Natália Rocha Damasceno

Assistente Jurídica do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. Atuação principal no STJ e no STF. Pós-graduanda em Direito Digital pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Membra do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais - CBEC.

Rodrigo Barbosa Araújo

Rodrigo Barbosa Araújo

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB. Pós-graduando em Direito Tributário pela PUC/MG. Pós-graduando em Direito Constitucional pelo Circulo de Estudos pela Internet - CEI. Advogado júnior do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

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