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Panorama dos crimes em matéria de arquitetura e urbanismo

Não é só na tipificação penal que nosso sistema se diferencia dos países europeus. Também nas penas isto ocorre.

terça-feira, 4 de maio de 2021

Atualizado às 14:33

1. O ordenamento jurídico brasileiro, em comparação com o de outros países, apresenta poucas figuras típicas em matéria de Arquitetura e Urbanismo, figuras criminais que punam, pois, graves violações a princípios e normas, legais ou técnicas, concernentes à ordenação dos espaços habitáveis, ao uso e ocupação do solo urbano, à transformação do solo para fins de assentamento populacional. 

Em especial, o abuso edilício ou excesso edilício ou, ainda, a desconformidade entre o projeto edilício aprovado e a execução posterior dele, que é crime grave na tradição europeia (Alemanha, França, Itália) desde o século XIX, não o é no Brasil, sendo aqui apenas ilícito administrativo, dando origem, no máximo, à sanção pecuniária (multa) e demolição parcial, em sendo possível. E até mesmo este desfazimento da obra ilegal pode ser afastada diante das chamadas "leis de anistia", que, locais e periódicas, permitem a regularização da obra edilícia ilegal se forem obedecidos certos parâmetros.

Entretanto, se entre nós não existe o crime de abuso edilício ou de construção clandestina (dado o direito à habitação), existem outras figuras criminais em matéria de Arquitetura e Urbanismo que precisam ser destacadas e estudadas até porque a lei, quando pune, é porque exige comportamento diverso. Assim, apontaremos, aqui, cinco delitos que podem ser praticados, dentre outros, por profissionais da Arquitetura no uso do território. Não são crimes próprios (aqueles que só os arquitetos podem cometer) mas se inserem, amplamente, no campo material de atuação do arquiteto e urbanista de modo tal que seu conhecimento se mostra indispensável para tais profissionais. É o caso típico do crime de desabamento, na modalidade culposa (art. 256/Parágrafo único do Código Penal), por erro de projeto ou de execução de projeto edilício - e daí a importância da gestão do risco no projeto. 

Noutro giro, em referência aos agentes, há crimes que só podem ser praticados por sujeitos específicos, qualificados, como, por exemplo, o médico, no caso da omissão de notificação de doença (art. 269 do Código Penal), ou o advogado, no caso do crime de patrocínio infiel (art. 355 do CP). Não é o caso. Todos os crimes que estarão indicados abaixo são crimes comuns, ou seja, podem ser praticados por qualquer pessoa (um construtor, um empreiteiro), mas, notadamente, pelos arquitetos porque as atividades respectivas aparecem no rol não exclusivo de atribuições dos arquitetos, na forma do disposto no art. 2º da lei 12.378/10 (lei do CAU), uma norma de grande importância. 

Assim, na França, o art. 408-4 do Código de Urbanismo afirma expressamente que a pena pecuniária e, em reincidência, de prisão por força da edificação ilegal pode ser aplicada inclusive aos arquitetos: "Les peines prévues à l'alinéa précédent peuvent être prononcées contre les utilisateurs du sol, les bénéficiaires des travaux, les architectes, les entrepreneurs ou autres personnes responsables de l'exécution desdits travaux". Já na Espanha, o Código Penal cogita de inabilitação profissional como pena, para profissionais e não profissionais, no art. 319.2, que trata do delito contra a ordenação do território: "Se impondrá la pena de prisión de uno a tres años, multa de doce a veinticuatro meses, salvo que el beneficio obtenido por el delito fuese superior a la cantidad resultante en cuyo caso la multa será del tanto al triplo del montante de dicho beneficio, e inhabilitación especial para profesión u oficio por tiempo de uno a cuatro años, a los promotores, constructores o técnicos directores que lleven a cabo obras de urbanización, construcción o edificación no autorizables en el suelo no urbanizable".

No Brasil, as figuras criminais vão tratar do loteamento ilegal (urbanização primária), da construção em solo não edificável ou no seu entorno (urbanização secundária), do desfazimento atécnico ou ruína da edificação, do patrimônio cultural ou ambiental (alteração de edificação/local protegido) e dos direitos autorais sobre a criação intelectual materializada pelo projeto ou pelo plano. São, como se vê, temas pertencentes ao campo de atribuições profissionais dos arquitetos, profissionais que devem conhecer e estudar os crimes que, em tese, podem praticar em sua atividade, sabendo-se que o desconhecimento da lei não elide a incidência da norma incriminadora. O art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe: "Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece". Ademais, o arquiteto é um profissional liberal e presume-se que tenha ciência plena dos deveres de sua profissão ou, mais tecnicamente, sua deontologia.

De outro lado, não é só na tipificação penal que nosso sistema se diferencia dos países europeus. Também nas penas isto ocorre. Aqui, as penas para os crimes em matéria de Arquitetura e Urbanismo são penas privativas de liberdade (reclusão ou detenção) acrescidas de pena pecuniária (multa). Na Europa, ao contrário, as penas são mais graves haja vista o elevado valor atribuído à ordenação do espaço urbano. Na Itália, por exemplo, o Texto Único das disposições legislativas e regulamentares em matéria edilícia (DPR 6 giugno 2001, 380), dispõe que a sentença definitiva do juiz penal que afirma a existência do loteamento ilegal determinará o confisco "dos imóveis abusivamente loteadores e das obras abusivamente construídas", que passam a pertencer à comuna ou ao Município em que se encontram (art. 44. 1, "c") . No Brasil, com efeito, isto não ocorre.

Quanto ao elemento subjetivo, todos os crimes abaixo referidos são dolosos, exigindo a vontade clara, deliberada, consciente, do agente em praticar a ação típica, ou, indiretamente, ocorrem os crimes quando o agente assume o risco de produzir o evento criminoso (dolo direto ou indireto, dito eventual). Mas há a exceção, já antes destacada, do desabamento, punido a título de dolo e de culpa (negligência, imprudência, imperícia), quando, mesmo sem intenção, o evento danoso ocorre por falha na atuação do profissional. E também, de outro lado, previsto na lei como crime e como contravenção haja vista a preocupação pública com a "destruição de uma edificação que cai ou alguém faz cair" (cf. o clássico dicionário de Littré). Quando alguém faz cair, por ação ou omissão, caracteriza-se o crime.

Desigualando-os, é possível fazer uma classificação não rigorosa deles conforme se refira mais especificamente à Arquitetura (à parte, ditos "reati edilizi") ou ao Urbanismo (ao todo, "reati urbanistici"). Tal distinção não é rigorosa porque, se é certo que há normas urbanísticas típicas (como as do plano diretor) e normas edilícias típicas (como as do código de obras), não poucas vezes elas se encontram e mesmo se confundem como, por exemplo, na lei de zoneamento de uso e ocupação do solo, que atende preceitos urbanísticos e edilícios. Daí referirem alguns, de modo amplo, à "legislação urbanístico-edilícia". 

Então, com base nesta distinção pouco rigorosa e no valor protegido pela tipificação penal, teremos a seguinte classificação que foca tanto a relação com a matéria de fundo (Arquitetura e/ou Urbanismo) quanto o objeto jurídico lesado pelo agente criminoso:

Quadro 1 - Classificação dos crimes/relação/objeto

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Os crimes de violação de direito autoral e de desabamento e desmoronamento estão previstos no Código Penal (arts. 184 e 256). Há também a contravenção de desabamento, que muitos questionam por envolver um perigo abstrato (Lei das Contravenções Penais, art. 29). O crime de loteamento ilegal - nas modalidades clandestino e irregular - encontra-se estabelecido na lei do parcelamento do solo (lei 6766/79, art. 50/I e II). Já os crimes de alteração de edificação ou local protegido e de construção em solo não edificável se inserem no capítulo referente aos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural da lei dos crimes ambientais (Lei nº 9.605/98, arts. 63 e 64). Cada um deles pode e deve ser estudado separadamente mas sempre vinculando-os à ordenação urbana, à conformação do espaço com destino urbano, ao projeto urbanístico ou edilício e sua execução. Para os arquitetos, num sentido amplo, a obra será a cidade ("la ville, c'est l'oeuvre"). 

2. O aproveitamento do solo urbano - uso, ocupação e parcelamento - são regrados precisamente pela lei sobretudo municipal, tal como prevê a Constituição de 88 no art. 30/VIII. Portanto, o aproveitamento urbanístico ilegal do solo gera punições várias, penais, administrativas (demolição, multa, embargo de obra, interdição de atividades) e corporativas. As penais são as mais graves de todas porque o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, o último recurso de que dispõe o Estado para garantir o cumprimento da norma legal, tendo também uma função de prevenção geral, ou seja, de tentar evitar a delinqüência. O art. 59 do Código Penal diz exatamente que a aplicação da pena visa a "reprovação e prevenção do crime". 

No que tange aos arquitetos, tais ilícitos dão origem a processos disciplinares e a processos judiciais de punição, sendo certo que a lei do CAU determina que constitui infração disciplinar deles "deixar de observar as normas legais e técnicas pertinentes na execução de atividades de arquitetura e urbanismo" (lei 12.378/10, art. 18/IX). Se constitui infração desrespeitar as leis é porque a atividade profissional do arquiteto não se pauta apenas pela imaginação criadora ou pela estética ou ainda pela pura funcionalidade: mas pelo marco da norma urbanística ou edilícia, legal ou técnica, democrática e racionalmente estabelecida. Assim, as sanções corporativas e as penas aplicadas judicialmente para os ilícitos elencados podem ser severas de tal modo que o estudo dos crimes de Arquitetura e Urbanismo deveria, certamente, constituir tema fundamental nas graduações da área, formando profissionais conscientes dos seus direitos e obrigações, de seus deveres e prerrogativas. Porém, não é o que ocorre na maioria das graduações brasileiras, que nem têm qualquer matéria jurídica específica e sistemática - o que pode contribuir para fazer o profissional, até pelo real desconhecimento, incidir na norma penal, submetendo-se, nada obstante, às sanções respectivas.

Por fim, deve-se lembrar que o tema não tem nenhuma novidade na teoria clássica da Arquitetura, naquela pré-moderna, que a desenvolvia com largueza: professor da Escola de Belas-Artes de Paris, Julien Guadet (1834-1908), no último capítulo do seu conhecido tratado Éléments et théorie de L'Architecture (vol. IV, que apareceu em 1904), sob o título de "As responsabilidades", cuida das responsabilidades civil, penal e moral ("interior", pela inexistência de corporação profissional à época) do arquiteto.

A responsabilidade penal, diz ele, é aquela "a que o arquiteto está exposto, se, por sua imprudência, ele causar acidentes com pessoas, mortes e lesões. Estes acidentes podem estar conexos com fatos que geram a responsabilidade civil, por exemplo, se um desabamento ["écroulement"] causou um dano material e ao mesmo tempo um acidente com pessoas. Eles podem ocorrer também sem nenhuma indenização civil, por exemplo, se operários sem herdeiros sofrem uma queda mortal". Os herdeiros seriam os beneficiários da indenização. Dá como exemplos de crimes "homicídios por imprudência", "lesões corporais por imprudência", ou seja, sem intenção, para concluir que "se uma falta é imputada a um arquiteto, deve-se provar que tal falta foi cometida e provar ainda que ela foi a causa do acidente". E faz então um aviso  ou um conselho: "notificado, intimado ou acusado, o arquiteto tem só uma coisa a fazer: defender-se contra a acusação".

O direito de defesa é, de fato, um direito fundamental tal como se verifica no art. 5º/LV da Constituição Federal. Uma vez acusado da prática de um delito, o arquiteto, assim como qualquer outra pessoa, tem direito a um julgamento que respeite o devido processo legal, o que determinará, em especial, um conjunto probatório robusto que inclua prova pericial. Deve-se ressaltar que, na Europa, há farta bibliografia a respeito do tema que inclui, na Espanha, ALMIRÓN, Francisco Rodríguez. Delitos urbanísticos. Navarra: Aranzadi, 2018; na  Itália, D'ANGELO, Nicola. Abusi e reati edilizi. 6ª ed. Santarcangelo: Maggioli, 2016 e, mais antigo, ZANETTI, Massimo. I reati in materia urbanistica (a cura di). Napoli: Scientifiche, 1992, dentre muitas outras obras.

José Roberto Fernandes Castilho

VIP José Roberto Fernandes Castilho

Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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